quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23972: Historiografia da presença portuguesa em África (351): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Abril de 2022:

Caros amigos,
Continuamos em 1949, o comandante Sarmento Rodrigues regressou a Lisboa mas deixou um acervo legislativo que continuou em discussão no Conselho de Governo. Em 3 sessões realizadas em maio deste ano, discutiu-se de novo as condições de acesso aos medicamentos, as responsabilidades das farmácias, a distribuição por grosso dos medicamentos e os requisitos para o exercício da profissão de odontologista. São matérias que alguns poderão considerar dispensáveis para o conhecimento da História da Guiné, mas que, em minha modesta opinião, marcam uma viragem no processo civilizacional, a organização dos Serviços de Saúde à luz dos direitos que todos na Guiné teriam na acessibilidade ao medicamento; e em termos de Saúde Pública discutiam-se igualmente os requisitos dos profissionais de saúde. Entendi que estes elementos eram de extrema importância, é um dos pontos de visibilidade da extensão do que foi a governação de Sarmento Rodrigues na sua conceção de colónia-modelo.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (5)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que se procurava fazer durante o seu mandato.

O Governador agora chama-se Manuel Maria Sarmento Rodrigues, é Capitão-Tenente e está a imprimir, de forma gradual, uma nova vitalidade orgânica à colónia, um perfil organizacional, uma dinâmica de desenvolvimento, uma reformulação da política de Saúde.

Sarmento Rodrigues deixa a Guiné no início de 1949, mas muita da legislação que ele idealizou prossegue em discussão e é aprovada, continuamos a apreciar diplomas que têm a ver com a área da Saúde, mormente a dispensa de medicamentos, a atividade farmacêutica e, pasme-se, o exercício da profissão de odontologista, o que deu imensa discussão pois já havia protésicos na Guiné, a legislação aprovada não os deitou fora.

Estamos agora em 12 de maio de 1949, o Conselho de Governo reúne presidido pelo Encarregado, Tenente-Coronel Pedro Pinto Cardoso, entra-se na discussão de uma proposta acerca da Inspeção Superior dos Serviços de Saúde. Volta-se a referir que têm direito ao fornecimento de medicamentos gratuitos pelas farmácias e ambulâncias do Estado, além dos indígenas, indigentes, pessoal missionário, assalariados do Estado, praças de pré do Exército e da Armada, internados em estabelecimentos de beneficência e presos e detidos nos presídios e cadeias mencionados no Regulamento dos Serviços de Saúde; de novo se referem os proventos globais do agregado familiar, para saber quem está isento de pagamento ou beneficia de descontos ou terá de pagar pelo preço de fatura; tal como na legislação anteriormente aprovada, menciona-se que todos os servidores do Estado e suas famílias têm direito ao fornecimento gratuito de sais de quinino e medicamentos anti palúdicos quando receitados pelos médicos dos Serviços de Saúde, beneficiando os servidores do Estado do fornecimento gratuito de medicamentos tripanocidas; estabelecem-se os requisitos para o fornecimento de medicamentos pelas farmácias, prevê-se a existência de documentos; aos indígenas não é exigido documento algum para a sua apresentação nas consultas dos estabelecimentos de assistência do Estado, mas o fornecimento de medicamentos é feito mediante receita passada pelo médico de Serviço de Saúde; o receituário a todos aqueles que têm direito a medicamentos gratuitos deve obedecer, quanto possível, ao formulário oficial dos Serviços de Saúde.

Na reunião seguinte, que se realizou em 19 de maio do mesmo ano, presidida pelo mesmo Encarregado de Governo, entrou em discussão o projeto de diploma respeitante ao fornecimento de medicamentos ao Estado, por grosso. No início houve para ali uma grande discussão, o Encarregado de Governo disse que este projeto tinha origem numa exposição apresentada pelo Diretor Técnico da Farmácia Moderna, Dr. Estarrenho Valentim, quem pôs ordem foi o Delegado do Procurador da República que lembrou aos presentes que o que estavam em causa era a importação e o fornecimento de medicamentos ao Estado por grosso. O Chefe dos Serviços de Saúde afirmou que em Angola e Moçambique não só as farmácias e drogarias podiam fornecer medicamentos por grosso mas também os representantes da Metrópole até mesmo firmas estrangeiras, sem farmacêuticos a dirigi-los, e na Guiné era obrigatório um diretor técnico, exigência que se pode considerar um tanto exagerada; a legislação que agora se procurava aprovar sobre o fornecimento de medicamentos por grosso exigiam que na Guiné houvesse um simples procurador, e que os medicamentos especializados ou não, de origem estrangeira, ainda não verificados em qualquer território do Império colonial português, passariam a ser analisados à entrada na colónia no laboratório de análises químicas, bromatológicas e toxicológicas dos Serviços de Saúde.

O Conselho de Governo volta a reunir em 20 de maio, a discussão agora incide sobre o projeto de diploma sobre o exercício da profissão de odontologista, há quem entenda que a clínica dentária só pode ser exercida por médico odontologista, há quem replique que os atuais práticos dentistas da Guiné podem exercer cirurgia e prótese dentária mas não a clínica dentária; é sugerido que devem ser respeitados os direitos dos dentistas atualmente existentes na Guiné, como ato de justiça, no futuro é que não devem ser admitidos outros nas mesmas condições; há que observe também que os dentistas atuais devem ser submetidos a um exame, e há quem discorde com tal critério, dizendo que não faz sentido o indivíduo que durante 10 ou 15 anos exerceu uma profissão a contento do público seja agora obrigado a fazer exame. Após discussão assentou-se que ficavam autorizados os atuais práticos dentistas, já coletados pelo exercício da profissão, a executarem trabalho de odontologia desde que se inscrevessem na Repartição Central dos Serviços de Saúde. E o Conselho também deliberou no projeto de diploma respeitante ao fornecimento de medicamentos por grosso ao Estado que os farmacêuticos que fornecessem substâncias medicinais em desacordo com a receita médica podiam ser condenados a penas de prisão e ao pagamento de multas.

(continua)

Almirante Sarmento Rodrigues
Hospital de Cumura, a leprosaria da Guiné
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23948: Historiografia da presença portuguesa em África (350): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (4), veja-se hoje como Sarmento Rodrigues pretendeu instituir mudanças no sistema de saúde, incluindo as farmácias e os medicamentos (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23971: "Una rivoluzione...fotogenica" (5): Roel Coutinho, médico neerlandês, de origem portuguesa sefardita, cooperante, que esteve ao lado do PAIGC, em 1973/74 - Parte IV: escolas no mato para adultos


Guiné-Bissau > s/l > 1974 > PAIGC > Escola para adultos / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - 6 24 - School for adults in Guinea-Bissau - 1974


Guiné-Bissau > s/l > 1974 > PAIGC > Escola para adultos / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - 6 25 - School for adults in Guinea-Bissau - 1974


Guiné-Bissau > s/l > 1974 > PAIGC > Escola para adultos / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - 6 26 - School for adults in Guinea-Bissau - 1974


Guiné-Bissau > s/l > 1974 > PAIGC > Escola para adultos / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - 6 27 - School for adults in Guinea-Bissau - 1974


Guiné-Bissau > s/l > 1974 > PAIGC > Escola para adultos / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - 6 29 - School for adults in Guinea-Bissau - 1974.



Guiné-Bissau > s/l > 1974 > PAIGC > Escola para adultos / Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - 6 29 - School for adults in Guinea-Bissau - 1974. (Tudo indica que a aluna seja guineense, e que a aula seja de português... Pormenor: tanto quanto se consegue ler: "Sumário, 29-3-74 (,,,) Eu quero ser primeiro (?) professora. Eu quero ser (...)".




Fonte: Wikimedia Commons > Guinea-Bissau and Senegal_1973-1974 (Coutinho Collection) (Com a devida vénia...) . Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. O jovem médico Roel Coutinho (*), então com os seus 26/27 anos, passou uma temporada na Guiné-Bissau e no Senegal, ainda antes do 25 de Abril de 1974, altura em que voltou ao seu país natal, os Países Baixos.

No seu livro de memórias, "Crónica da Libertação" (Lisboa, "O Jornal", 1984, 464 pp.), Luís Cabral (Bissau, 1931- Torres Vedras, 2009), o primeiro presidente da República da Guiné-Bissau (1973-1980), derrubado pelo golpe de Estado do 'Nino' Veira (em 14 de novembro de 1980), cita o nome do "dr. Raul Coutinho" (sic), a propósito do apoio ao PAIGC, ainda na fase da luta pela independência, de diferentes países e organizações no domínio médico-sanitário. Escreveu ele, na página 337:

"O comité da Holanda, como a Fundação Eduardo Mondlane, destacou-se por uma solidariedde contínua com as nossas formações sanitárias também concretizada pelo envio de pessoal médico. Os drs. To, Raul Coutinho  e Yob trabalharam sucessivamente no nosso Lar do Combatente de Ziguinchor".  

Não são referidas datas, maas sabe-se que as fotos do Roel Coutinho tªem dieferentes datas: (i) março-abril de 1973; (ii) 1974;  (iii) março-abril de 1974... Umas foram toradas no Senegal (Ziguinchor), outras na Guiné-Bissau, em "áreas libertadas", junto à fronteira norte ou a sul do Morés (em Sara).  Não parece haver fotos tiradas no sul do território, ou em bases do PAIGC em território da Guiné-Conacri, como Boké (onde também havia um hospital tal como em Ziguinchor, no Senegal).

2. E a propósito da Fundação Eduardo Mondlane (Eduardo Mondlane Stichting)  sabemos que se fundiu mais tarde,  em 1997, com outras duas organizações, o Comitê Holandês sobre a África Austral, antigamente denominado Angola Comité (Komitee Zuidelijk Afrika)  e o Movimento Holandês de Oposição ao Apartheid (Anti-Apartheids Beweging Nederland) , dando origem ao  Nederlands instituut voor Zuidelijk Afrika (NiZA).  

O NiZA (http://www.niza.nl)  focava-se então  nas questões  relativos ao desenvolvimento e aos direitos humanos na África Austral, mantendo os arquivos com os materiais de suas organizações-mãe:

Numa folheto, de duas páginas,  do NiZA, disponível em formato pdf, em português pode ler-se:

 (...) "A colonização inicial holandesa da África do Sul, suas conexões religiosas tradicionais, ligações com o idioma falado pelos afrikaners, e o número relativamente alto de imigrantes holandeses na África do Sul contribuíram para o alto interesse da sociedade holandesa pelos assuntos relativos à África do Sul, inclusive a luta contra o apartheid. 

A experiência dos holandeses durante a ocupação nazi na Segunda Guerra Mundial e a descolonização na Indonésia também contribuíram para o apoio de movimentos de libertação na África Austral. 

Todos esses fatores resultaram na ampla cobertura da imprensa e no surgimento de um forte movimento contra o apartheid e em prol da libertação africana na Holanda. 

Um dos primeiros grupos se concentrou na libertação de Angola e das outras colônias portuguesas, o que ajudou a dar ao movimento uma perspectiva ampla sobre a região da África Austral. 

Em três ocasiões distintas, desentendimentos graves sobre as sanções contra a África do Sul entre a maioria parlamentar e a administração incumbente ameaçaram derrubar o governo. Os sindicatos, as igrejas, os governos locais e as organizações de desenvolvimento agiram ativamente nesse sentido, assim como as organizações cujo enfoque específico era a solidariedade com a luta na África Austral. 

Os grupos holandeses agiam não só ao fazer pressão para transformar as políticas ocidentais e isolar a África do Sul, como também para apoiar diretamente os movimentos de libertação da África Austral. Os grupos normalmente trabalhavam juntos em coligações, apesar de rivalidades e discórdias estratégicas entre si. Juntos, atingiram todos os setores da sociedade holandesa, exercendo forte influência na opinião pública." (...) 

A gente às vezes esquece-se que a Holanda / Países Baixos foi também uma grande potência colonial e que a descolonização desses territórios também não foi pacífica.... (Veja-se, por exemplo, o caso da Indonésia que foi o primeiro país após a Segunda Guerra Mundial a lutar pela independência e a ser reconhecido pelas Nações Unidas, mas só em 1949 pela potência colonizadora... E só agora, ao fim de muitos anos, os Países Baixos pedem desculpa pela violência contra os indonésios e outros povos que estiveram sob o seu domínio.
)
 
3. Chamámos a este série  "Una rivoluzione... fotogenica". Destina-se a divulgar algumas imagens "do outro lado do combate"... Na realidade, o PAIGC e sobretudo o seu líder histórico, Amílcar Cabral (Bafatá. 1924- Conacri, 1973) sempre beneficiou de uma "boa imprensa", a nível internacional, e nomeadamente nalguns países europeus, como a Suécia, a Holanda, a Itália ou até a França.

Alguns excelentes fotojornalistas (como Bruna Amico ou Uliano Lucas) mas também cineastas, médicos e escritores foram às florestas e bolanhas da Guiné para se documentar "in loco" sobre o progresso da "luta de libertação" dos guineenses contra o colonialismo português. Pode-se dizer que criaram ou ajudaram a criar uma "estética da guerra de libertação" (**).


(**) Vd. poste de 4 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23947: "Una rivoluzione... fotogenica" (1): Uma reportagem e um livro decisivos, e que consagram a estética da "guerra de libertação", "Guinea-Bissau: una rivoluzione africana" (Milano, Vangelista, 1970, 200 pp.), dos italianos Bruno Crimi (1940-2006) e Uliano Lucas (n. 1942)

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23970: O nosso blogue em números (85): Em 2022, tivemos 12 "baixas mortais" e outras tantas entradas para a Tabanca Grande (dos quais 3 a título póstumo)... Somos agora 867 grã-tabanqueiros, dos quais 129 já falecidos (c. 15%)


Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. Foi mais um ano, inevitavelmente, com baixas: morreram 12 camaradas nossos, registados na Tabanca Grande, alguns históricos e com dezenas de referências no blogue.

Ano de 2022 - Lista dos amigos/as e camaradas que da lei da morte se foram libertando (n=12):
 
Alberto Bastos (1948-2022)

António Estácio (1947-2022) (c. 7 dezenas de referências)

Coutinho e Lima (1935-2022) (mais de 100 referências)

Francisco Pinho da Costa (1937-2022)

João Silva (1950-2022)

Júlio Martins Pereira (1944-2022) (12 referências)

Manuel Marinho (1950-2022) (c. 4 de dezenas de referências)

Maria Ivone Reis (1929-2022) (mais de 3 dezenas de referências)

Mário de Oliveira (Padre) (1937-2022) (mais de 2 dezenas de referências)

Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022) (8 dezenas de referências)

Veríssimo Ferreira (1942-2022) (mais de 9 dezenas de referências)

Xico Allen
(1950-2022) (5 dezenas de referências)


2. Em contrapartida entraram outros 12 novos membros para a Tabanca Grande, alguns a título póstumo: Alberto Bastos (1948-2022), Francisco Pinho da Costa (1937-2022) e  João Silva (1950-2022).

No final de 2022, éramos 867 (Gráfico nº 8), dos quais 129 já falecido (14,9%).

Continuamos a lembrar que estes números das nossas "baixas mortais" devem pecar por defeito: há membros da Tabanca Grande de que não temos notícias há anos, ou seja, são camaradas que não fazem "prova de vida", por email, telefone ou colaboração no blogue... (Razão pela qual, também, deixámos de celebrar o seu aniversário, nos casos em que estávamos autorizados a fazê-lo.)

Em relação à entrada de novos membros, chamamos a atenção para o facto de a média anual. nos últimos onze anos (2012-2022) ser agora de 24,7. Ou seja, neste período estavam a entrar, em média, dois novos membros por mês (**)... Em 2022, foi apenas um por mês... 

Dificilmente por isso vamos conseguir chegar ao fim do ano de 2023 com dois batalhões: 900 elementos registados (***)... É uma meta ambiciosa, para a conseguirmos atingir temos que fazer um esforço, os mais ativos de nós, para trazer um "periquito", de preferência com muitas fotos e outras memórias para partihar...

Aqui vai a lista dos novos membros, em 2022, por ordem cronológica de entrada (entre parênteses o nº de grã-tabanqueiro) (n=12):

Alberto Bastos (nº 856)

José Carlos Silva (nº 857)

Manuel Antunes (nº 858)

José Torres Neves (Padre) (nº 859)

João (da Silva) Alves
(nº 860)

António Figuinha (nº 861)

Maria Ivone Reis (nº 862)

Ramiro Figueira (nº 863)

Francisco Pinho da Costa (nº 864)

José Moreira Neves (nº 865)

João (Candeias da) Silva (nº 866)

Manuel Calhandra Leitão ("Mafra") (nº 867)


Já lá vai o tempo em que o  número de membros da nossa Tabanca Grande  crescia, com regularidade, a uma méda de 4 por mês, ou seja, um por semana... Éramos 111, em junho de 2006, 390 em 2009, 595 em 2012, 710 no final de 2015, e por aí fora: 731 (em 2016),  765 (em 2017)...

Depois o ritmo começou a abrandar (Gráfico nº 8), o que é compreensível face ao duplo processo de envelhecimento: do nosso blogue (que vai fazer 19 anos em 23/4/2023) e do "público-alvo" a que se dirige, os combatentes da guerra colonial / guerra do ultramar na Guiné (1961/74)...
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Guiné 61/74 - P23969: Lembrete (44): Lançamento do livro "ANTIGOS COMBATENTES, Humilhados e Abandonados", por José Maria Monteiro, dia 14 de Janeiro de 2023, pelas 12,00 horas, no Manuela Borges Eventos, Rua Principal Fonte do Feto, 2835, Santo António da Charneca - Barreiro

C O N V I T E


1. Mensagem do nosso camarada José Maria Monteiro, ex-Marinheiro Radiotelegrafista (LFP e Comando Naval da Guiné, 1969/73), com data de hoje, 10 de Janeiro de 2023:
Meu distinto camarada Carlos

Peço-te o favor de divulgares, aqui no blog, o lançamento do meu último trabalho cujo título é "ANTIGOS COMBATENTES, Humilhados e Abandonados". Não se trata do lançamento de mais um livro, mas sim de mostrar o descontentamento, a raiva e a ingratidão que a Pátria tem ostracizado os seus Antigos Combatentes, autênticos heróis, que tudo deram à Pátria em troca de nada.[*]

Junto cópia da capa do livro, onde se indica uma pequena sinopse e que passo a transcrever:


"... Pretende-se com a publicação deste livro, trazer à colação o facto da nossa Pátria, durante 46 anos, nunca ter reconhecido a dignidade de combatente aos seus Antigos Combatentes, autênticos heróis, que lutaram durante 13 anos em terras indianas e africanas, com coragem, abnegação e amor à Pátria.

É incompreensível , para todos os Antigos Combatentes, o abandono pátrio, a injustiça, a enorme ingratidão, bem como uma grande humilhação, a que a Pátria tem ostracizado os seus Antigos Combatentes.

É tempo de fazer balanço e apontar o dedo aos principais responsáveis pela omissão histórica e coletiva, daquelas quatro longas décadas, quase meio século para ver reconhecida a dignidade combatente, não havendo memória, nem temos conhecimento que tal omissão tenha ocorrido em qualquer outro país do Mundo, que tenha desenvolvido ações bélicas.

Pretende-se, ainda, com a publicação deste livro, tecer algumas considerações e críticas ao Estatuto do Antigo Combatente, recentemente aprovado pela Assembleia da República, considerado, pelos Antigos Combatentes, como sendo o mais pobre do Mundo, em todas as suas valências...."


É do conhecimento público, que durante décadas, participei, colaborei e nos últimos anos, antes da aprovação do EAC, liderei o movimento PRÓ-DINGIDADE A FAVOR DO ESTATUTO DO ANTIGO COMBATENTE, com concentrações nacionais de Antigos Combatentes mensais frente à escadaria da Assembleia da República.

Apoiei, desde o primeiro segundo o nosso camarada FERNANDO ROSA, na greve de fome, durante 6 dias em prol do EAC e da transladação dos corpos dos nossos camaradas sepultados em terras africanas, realizada em Setembro de 2019 frente ao Palácio de Belém.

Reuni muitas vezes com a senhora Secretária de Estado dos Recursos Humanos e Antigos Combatentes, a quem expus a vontade e o entendimento dos A.C. sobre o Estatuto do Antigo Combatente e no passado mês de Agosto reuni com a senhora ministra da Defesa, a quem entreguei uma cópia das Conclusões dos Trabalhos do Congresso Nacional de Antigos Combatentes.

Confesso que é minha vontade, fazer parte do grupo de guardiões da história, para que o tempo não apague a coragem e o sacrifício de um povo.

Para terminar, direi que este livro para além de manifestar um descontentamento coletivo, será sempre um testemunho para as novas gerações, para os historiadores, para o Mundo e também, documento histórico para o povo português.

Finalmente, fica o CONVITE, a todos os Antigos Combatentes, querendo, para assistir ao lançamento no próximo dia 14/01/2023, pelas 12h00, no MANUELA BORGES EVENTOS, restaurante sito na Rua Principal Fonte do Feto, 2835-543 Santo António da Charneca - Barreiro. No final é servido um MOSCATEL DE HONRA e bolos. Inscrições pelo email .... josemaria51@outlook.pt...

Cascais , 10/01/2023
JOSÉ MARIA MONTEIRO .... um dos mais jovens combatentes (c/16 anos).

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Notas do editor

Todas as imagens podem ser ampliadas com um clic

[*] - Vd. poste de 5 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23951: Agenda cultural (823): Convite para o lançamento do livro "ANTIGOS COMBATENTES, Humilhados e Abandonados", por José Maria Monteiro, dia 14 de Janeiro de 2023, pelas 12,00 horas, no Restaurante Manuela Borges, Santo António da Charneca - Barreiro

Último poste da série de 6 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23766: Lembrete (43): É já no próximo dia 12 de Novembro que vai ser lançado o livro de poemas "Palavras que o vento (E)leva", da autoria do nosso camarada José Teixeira, no Centro Cultural de Leça do Balio, às 16h30, com apresentação do Dr. José Almeida da Silva

Guiné 61/74 - P23968: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XXXVI: Artur Augusto Rodrigues, alf inf (Sabrosa, 1895 - França, CEP, 1918)

 

Artur Augusto Rodrigues (1895 - 1918)


Nome: Artur Augusto Rodrigues
Posto: Alferes de Infantaria
Naturalidade: Sabrosa - Vila Real
Data de nascimento:  20 de Julho de 1895
Incorporação: 1916 na Escola de Guerra (nº 430 do Corpo de Alunos)
Unidade: 2ª Brigada de Infantaria, 8º Grupo de Metralhadoras
Condecorações:
TO da morte em combate: França (CEP)
Data de Embarque: 10 de agosto de 1918
Data da morte: 14 de Outubro de 1918
Sepultura: França, Cemitério de Richebourg l'Avoué
Circunstâncias da morte: Faleceu em 14 de Outubro vítima de ferimentos recebidos (estilhaços de granada) sendo inicialmente sepultado em Tin de Barn



António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem


1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.
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Nota do editor:

(*) Último poste sa série > 13 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23613: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XXXV: Pedro Carrazedo Campos Viana de Andrade, alf art (Portalegre, 1897 - França, CEP, 1918)

Guiné 61/74 - P23967: (De)Caras (192): Os bravos comandos cap Maurício Saraiva e fur mil Joaquim Morais (morto em combate, no Quitafine, em 7/5/1965) (Virgínio Briote)


Guiné > Bissau > Comandos  do CTIG > Gr Cmds "Os Fantasmas" > 1964 >  Da esquerda para a direita o fur mil 'cmd' Joaquim Morais (que viria a morrer em combate em Catungo, Cacine, em 7/5/1965,  e o alf ml 'cmd' Maurício Morais (promovido a tenente e depois  a capitão, no 10 de junho de 1965)


Guiné > Bissau > Comandos  do CTIG > Gr Cmds "Os Fantasmas" > 1964 > O alf mil 'cmd' Maurício Saraiva desfilando à frente dos seus homens, junto ao palácio do Governador.

Fotos (e legendas): © Virgínio Briote  (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


CTIG > Companhia de Comandos / Gr Cmds "Os Dianólicos" > Cartão de identificação do alf mil 'cmd' Virgínio António M. da Silva Briote. Assinatura (ilégível): Nuno Rubim, cap art 'cmd'


1. O nosso Virgínio Briote (Vb) tem as melhores páginas, alguma vez escritas, sobre os Comandos do CTIG (1964/66)... E, seguramente, sobre alguns dos velhos comandos de Brá...

Felizmente vivo, é nosso coeditor (jubilado por razões de saúde). Nasceu em Cascais, foi alf mil em Cuntima, CCAV 489 / BCAV 490 (jan/mai 1965); fez depois o 2º curso de Comandos do CTIG; esteve à   frente do Gr Cmds  "Os Diabólicos" (set 65/set 66); regressou a casa em janeiro de 1967; trabalhou numa multinacional da indústria farmacêutica onde foi brilhante quadro superior; é casado com a encatadora Maria Irene, professora do ensino secundário reformada... (Ambos são pais e avós babados.)

O Vb teve um blogue que infelizmente decidiu desativar. Chamava-se "Tantas  Vidas"; http://tantasvidas.blog.pt/ . Publicou postes entre janeiro de 2006 e março de 2009. Textos de antologia que mereciam conhecer o prelo.  Depois achou que tinha dito tudo... Fechou o blogue (e o bau). 

Mas o Arquivo.pt que anda há muito, desde 1996, à caça de páginas na Web, de preferência em português, não lhe pediu licença e foi-lhe fazendo sucesssivas capturas de páginas do seu blogue... Só há dias é que ele soube, porque eu lhe disse. A última captura foi em 24 de maio de 2009, às 21h54... Veja-se aqui o endereço:

https://arquivo.pt/wayback/20090524215817/http://tantasvidas.blog.pt/2009/3/

Mas, em 2015, ainda recuperámos muitos desses textos do "Tantas Vidas", criando a  série "Guiné, Ir e Voltar". Publicámos cerca de 3 dezenas de postes, entre 28/6/2015 (Poste P14803) e 7/1/2016 (Poste P15588). 

O Virgínio Briote é um dos históricos do nosso blogue para o qual entrou em 23/10/2005.  Tem 265 referências. Tivemos curiosidade em saber o que é tinha escrito sobre alguns dos seus camaradas mais velhos, no Comandos do CTIG, como o Maurício Saraiva, o Amadu Djaló, o João Parreira, o Joaquim Morais..., que pertenceram ao Gr Cmds "Os Fantasmas", entretanto extintos em maio de 1965. Aqui vai um excertp, em complemento do poste P23960, assinado pelo João Parreira) (*).


Guiné, ir e voltar > Os bravos comandos cap Maurício Saraiva  e fur mil Joaquim Morais (morto em combate, no Quitafine, em 7/5/1965)

por Virgínio Briote (**)

(i) O cap 'cmd' Maurício Saraiva

O capitão Maurício Saraiva, promovido a capitão por distinção, até então o único vivo com a Medalha de Valor Militar em Ouro, depois de duas cruzes de guerra, tinha metido o chico, estava em Lisboa na Academia Militar.

Aproveitara as férias para vir a Bissau dar-lhes instrução operacional, e sair com eles para o mato durante o curso de comandos para oficiais e sargentos do CTIG.

Foi um dos fundadores dos comandos da Guiné. Tinha estado em Angola, com o Godinho, os irmãos Roseira Dias, o Miranda e outros. Depois formou o grupo dos Fantasmas e com ele percorreu a Guiné de uma ponta a outra.

Deixou fama pela forma como fazia a guerra, por vezes parecia encará-la como se fosse uma brincadeira. Fazia que retirava, dava às vezes até sinais de fuga descontrolada, como se quisesse animar o IN a mostrar-se confiante. Escondia-se com o grupo, paciente, uma ou duas horas se fosse preciso. E depois, Fantasmas ao ataque! Uma série de êxitos coroavam-no e era objecto de mal disfarçada homenagem, numa altura em que a regra era ver as NT recolhidas a posições defensivas.

Mas nem sempre as coisas correram bem. Tanta intrepidez e desafio também lhe trouxeram sérios problemas.

Novembro de 64, dia 28. Perto da fronteira com a Guiné-Conacri, na estrada de Madina do Boé para Contabane, a uma escassa centena de metros do pontão sobre o rio Gobige, os Fantasmas detectaram uma mina anti-carro.

Levantaram a mina e simularam o rebentamento. Ficaram emboscados nas proximidades cerca de 2 horas. Viram um grupo IN aproximar-se e afastar-se logo que deram pela presença de mulheres na estrada. Uma hora depois viram um elemento IN a fugir. Afinal, estavam em igualdade de circunstância, todos sabiam da presença uns dos outros. No dia seguinte voltou com o grupo ao local. Meteu-se com alguns soldados no Unimog mais pequeno à frente, e encaixou o resto do grupo no Unimog maior atrás. A primeira viatura passou, a outra, uma dezena de metros atrás, não. Pisou uma mina. A viatura incendiou-se, as munições explodiram como foguetes num arraial minhoto e do depósito de combustível saía fogo. Quase todos os homens foram projectados a arder. Sete mortos logo ali e três feridos graves. Regressaram doze a Bissau. Com o grupo dizimado, poucos dias depois arrancou com os restantes para uma operação.

(ii) A morte fo fur mil 'cmd' Morais, já em fim de comissão

Já quase no final da comissão, em Cameconde, lá para o sul, no Quitafine. No diário do furriel João Parreira, um deles, podia ler-se:

(...) “6 Maio 65. Saímos às 15h00 para a operação “Ciao”, num Dakota até Cacine e depois em viaturas até Cameconde, onde já se encontrava um pelotão à nossa espera. O Capitão Rubim foi connosco. Saímos às 19h00 em direcção ao objectivo. Segundo as informações que nos foram fornecidas, a base IN era composta por cerca de 80 homens bem armados, comandados por Pansau Na Isna, chefe militar, adjunto do João Bernardo Vieira, de etnia Papel, mais conhecido pelo Comandante Nino.

Já na madrugada do dia 7, a poucos quilómetros do objectivo demos indicações ao pelotão para permanecer ali e esperar pelo nosso regresso, com a missão de proteger a nossa retirada ou dar-nos apoio, caso fosse necessário. Assim, seguimos silenciosamente até perto do acampamento, situado na mata a sudoeste de Catunco. Apesar de termos feito uma aproximação cuidadosa, fomos detectados por uma sentinela. Tentámos assaltar o acampamento. Mas eles estavam bem preparados, reagiram ao nosso fogo e o tiroteio prolongou-se. Quando o fogo deles abrandou, entrámos por ali dentro e vimos material abandonado durante a fuga. Oito armas, cunhetes de munições, granadas, petardos, equipamentos, minas, fardas, e muitos documentos, entre os quais um caderno que pertencia a um tal Armindo Pedro Rodrigues, com elementos importantes da Ordem de Batalha do PAIGC.

Carregados com o nosso material e com o que tínhamos capturado, regressámos para junto do pelotão de recolha. Juntámo-lo e começamos a vê-lo em pormenor. Faltava o aparelho de pontaria de um morteiro, até então ainda não apreendido na Guiné.

O Morais afiançava tê-lo visto lá. O tenente Saraiva chamou o Amadú  
[Djaló] e o Morais e disse-lhes para voltarem ao acampamento. Embora estivéssemos conscientes do perigo, arriscámos, partindo do princípio que o IN se tinha retirado após as baixas sofridas. O Morais perguntou quem é que queria ir com ele e com o Amadú. Ofereci-me bem assim como o capitão Rubim, o furriel Matos e mais 7 camarada, 10 no total.

De novo no interior do acampamento a arder. Vi uma árvore gigante, com umas cavidades enormes. Espreitei para dentro de uma, o Morais para a outra, à procura de material, e o restante pessoal, por ali perto, fazia o mesmo. Subitamente, rajadas de metralhadora e granadas de bazuca caíram-nos em cima. Uma destas rebentou entre nós. Um pequeno estilhaço partiu a coluna do Morais, que caiu sobre uma fogueira. Eu fui atingido no lado direito das costas, mas na altura nem localizei o ferimento.

Vi o Morais a morrer quando o olhei de relance. Um vago murmúrio, depois mais nada, um ar sereno no rosto, pareceu-me. Deitei-me e reagi ao fogo, mas passado pouco tempo fiquei sem força no braço, a G-3 ficou muito pesada, e depois já nem o gatilho conseguia apertar. Passei a espingarda para o braço esquerdo e fiz fogo, mas julgo que não fui nada eficaz. Os outros 8 camaradas, embora ligeiramente, foram todos atingidos. Depois os restantes elementos do Grupo foram lá buscar-nos. Junto do pelotão de apoio, injectaram-me morfina. Tinha perdido muito sangue. Prestaram-me os primeiros socorros em Cacine.

Fomos evacuados para Bissau. Eu de barriga para baixo, bem atado, com mais uma injecção de morfina, e o Morais, morto, cada um em macas de lona, encaixados no exterior do heli 
[um AL II]. Durante o trajecto, e em duas localidades diferentes, na minha sonolência ouvi rajadas de metralhadora que me pareceram passar rente ao helicóptero. Pareceu-me uma eternidade a viagem até ao hospital de Bissau, onde, depois de me terem operado, fiquei internado.

8 Maio
. O Marcelino [da Mata] foi o primeiro a vir ver-me ao Hospital. O crucifixo que eu trazia ao peito era uma crosta, uma grande cruz de sangue seco. Pedi-lhe que o lavasse.

9 Maio. Muitos camaradas me visitaram hoje, o major Dinis, o tenente Saraiva, o alferes Pombo, os furriéis Matos, Moita e o Miranda, claro. Da parte da tarde vieram a D. Beatriz Sá Carneiro, mulher do Comandante Militar e a D. Mariana do MNF  
[Movimento Nacional Feminino].

O Morais era órfão de pai. No caso dele correu tudo no mesmo sentido. Mal. Não era necessário a presença dele nesta operação, já tinha acabado a comissão. Em Brá tentaram persuadi-lo, mais que uma vez, a não ir. Tantas vezes, que diferença vai fazer sair mais uma, insistia. Não embarcou com o Batalhão a que pertencia, por ter combinado que esperava que o tenente Saraiva e os furriéis Matos, Moita e Ilídio acabassem a comissão. A estes faltavam-lhes apenas 15 dias. Imaginava o regresso à Metrópole, todos juntos num navio, como se regressassem de um cruzeiro de férias.

O Miranda recebeu o corpo no Hospital. Foi ele com o Mário Dias, o Fabião e o Ilídio que o lavaram, vestiram e deitaram no caixão. Fizeram uma colecta para a compra do caixão de chumbo. E coincidência, morreu no mesmo dia em que o seu Batalhão de origem desfilava em Lisboa, com a missão cumprida.”


(iii) Ponham-se em sentido quando ouvirem pronunciar o nome do 'Nino'

Claro que, fosse para onde fosse, o Saraiva trazia com ele esses e outros acontecimentos, como se uma auréola o enfeitasse.

Quando reentrou em Brá, para passar o tal mês de “férias”, apresentaram-lhe os novos que estavam a frequentar o curso e pessoal já bem conhecido dele, o capitão Rubim, o sargento Mário Dias, os furriéis Miranda, Moita, Matos, Fabião, o João Parreira, o cabo Marcelino da mata, os soldados Kássimo, Tomás Camará, o Adulai Jaló e outros.

Dos novos conhecia um ou outro, e aos que não conhecia tinha algum tempo à frente para os ver trabalhar no mato e depois veria a quem entregaria o crachá. Passava a vida a pô-los em sentido. Uma volta na conversa e lá vinha o Nino à baila. O Nino, estão a olhar para mim? ( Consideeava o Nino como um verdadeiro chefe militar e, apesar de inimigo, merecedor de respeito.)

O Nino , que porra, estes gajos são todos surdos? O Nino, ele a insistir e os alferes com falta de entendimento. Sentido, porra! Aqui nos comandos quando se fala no Nino, toda a macacada, vocês também, saltam como uma mola, estejam onde estiverem, não interessa, põem-se a pé! Em sentido!

E foi assim que se fez escola, dali para a frente, sempre que alguém pronunciava o nome do Nino, os outros punham-se em sentido.

Uma vez, em Biambe, na zona do Oio, uma tempestade como não havia na memória deles, tinha partido o grupo em dois, aí pela uma da madrugada, noite negra como só em África quando o céu está todo tapado. Um, sozinho, lá encontrou o trilho depois de andar a tactear o chão. Daqui não saio, vou-me mas é sentar!

A chuva não parava, pareciam pedras a cair, faziam tanto barulho no camuflado que receou que o denunciassem. Ainda bem que só tinha as cuecas debaixo, menos peso para carregar. Nada de sinais, nem de trás nem da frente. Esta é boa, onde é que os gajos se meteram, que merda, assobiou baixo, a imitar o pássaro que afinaram no curso. Nada de respostas, minutos a passar, chuva em barda. Estou frito, estou mesmo perdido, o coração como um cavalo a galope, até sentia calor, olhava para todo o lado e só via escuridão, pirilampos nem vê-los, nada, só ouvia o barulho da água a bater. E agora, o que faço? Eles hão-de dar pela minha falta, não me vão deixar aqui. E se não derem?

Calma, esperas pelo nascer do dia, viras as costas ao Sol, cortas mato, nada de trilhos, sempre em frente, até à estrada Mansoa-Bissorã, escondes-te, há-de aparecer uma coluna um dia destes, quase todos os dias passam. Depois é só saltar para a estrada e pronto. E se a guerrilha te vê, o que é que fazes? Pois. Minutos a durarem horas, o coração outra vez.

Um pequeno som, pareceu-lhe, serão eles, ou estarei a sonhar? Um assobiar baixinho. É isso, são eles, nunca mais vinham, assobia também, assobio cada vez mais próximo, uma mão, o Kássimo, o Saraiva atrás. Então e os outros? O capitão, danado, a bufar, e os outros? Kássimo à frente a assobiar, dentro do trilho, foram andando para trás, mãos no cinturão do da frente. Encontraram o capitão Rubim e o alferes Vilaça, os dois sentados, costas com costas. A dormir na forma, ah?

No outro sábado o Saraiva encontrou os quatro alferes sentados, tinham acabado de almoçar na messe de Brá. E o programa para hoje, qual é, perguntou. Vou até Bissau espairecer, diz um, outro vou mas é dormir com a cama, a correspondência a preocupar o terceiro, o quarto, sei lá? Ele arranjava um melhor, têm 5 minutos para se equiparem para sair.

Levou-os para o aeroporto, os motores já quentes do Dakota pronto para descolar. Foram para leste, Nova Lamego até Canquelifá, perto da fronteira com a Guiné-Conakri. Chegaram com o Sol quase a ir-se. Esperaram fechados dentro do avião, os motores parados.

Abriram-lhes as portas, entraram directos para uma GMC com as lonas corridas. Meteram-lhes lá dentro queijo partido aos bocados e pão. O Saraiva, gargalhada baixa, a pedir os cantis, para encher de água fresca, disse. O meu não precisa, está cheio até cima, nem se ouve, mesmo que o abane, diz um. Passe, o capitão a insistir. Que a marcha ia ser longa, cerca de 20 km, e a água vai ser decisiva.

Ouçam bem, só bebem quando eu der sinal, todos a beber ao mesmo tempo.



© Foto do Júlio Costa Abreu. Com a devida vénia.

Carvão negro na cara e nos braços, pareciam manjacos e mandingas. Pôs-se o sol, meteram-se no mato, dois a dois, trilhos fora, quilómetros e quilómetros, a noite toda.

Comandos ao ataque, o Saraiva desalmado a gritar, como gostava de começar o dia. Fizeram-se a eles, por ali dentro, as casas de mato com 2 ou 3 gajos que nunca lhes tinham sido apresentados a pisgarem-se. Depois, um dos intrusos passou à história. Da gargalhada. Quando sentiu os projécteis de uma metralhadora pesada inimiga a bater lá em cima nas árvores, até disse para os outros, olha a NT a apoiar! Os outros a rirem-se, uma força danada dentro deles. No caminho do regresso lembraram-se da genica que sentiram, estamos numa forma do caraças, não estamos?

Nunca souberam de onde tinha vindo tanta gana, se calhar tinha sido quando o capitão, finalmente, autorizou meterem água, devia ter vitaminas. A certa altura do caminho de retirada, começaram a ficar sem forças. Estranharam, nunca lhes tinha acontecido, não acertavam com o trilho, não era só um, eram todos. Menos o capitão. Alguns paravam, encostavam-se às árvores, queriam sentar-se, os olhos para cima. Quem parar fica para trás, o Saraiva lá à frente, na esgalha. Em pequenos grupos foram chegando. Em Canquelifá, uma cerveja gelada, boca abaixo, duma vez só. Alguns só acordaram com os motores do Dakota e um ou dois nem assim. A caminho do avião, pareciam zombies, em coluna por um, pelo campo fora.

Da outra vez, mandou tapar-lhes os olhos com algodão, fita adesiva e um lenço negro por cima. Só tiram os lenços e o adesivo quando eu mandar. É para ver se adivinham para onde vamos passar o fim-de-semana. Viaturas pela estrada fora, para onde havia de ser, para o Oio. Quando entraram em Mansoa, pararam. Então, quem é amigo? Para onde vamos então? Toca a tirar os lenços, olhos e ouvidos bem abertos agora. Foram por ali fora até Bissorã. A mesma história do queijo e do pão, uma cerveja para cada um, cantis cheios de água, por aqueles trilhos, a noite toda.

Um cigarro agora é que sabia bem. Pois, também a mim me apetecia estar na praia de Carcavelos, ao sol com a miúda, os ouvidos dele em todo o lado. Fumas no fim do fogo. O dia clareou, estavam no sítio certo, as casas de mato em frente. Os guerrilheiros é que faltaram à chamada naquela altura. Não saímos daqui enquanto os gajos não aparecerem, o capitão a provocá-los. Vieram mais tarde, quando já não dava muito jeito, mas arranja-se sempre qualquer coisa, que remédio. Um daqueles alferes integrado na equipa do furriel Moita, apanhado num campo de mancarra, com nada para se abrigar, ou estava com pressa de regressar a Bissau, ou tinha visto no cinema uma cena parecida, chateou-se, aqui vou eu, quem quiser que venha. Quis lá saber da parelha e da equipa, meteu-se por aquelas casas de mato dentro. Depois ficou lá dentro sozinho, sem saber bem o que fazer. Os companheiros daquele fim-de-semana encontraram-no a olhar para o ar, para os ramos das árvores a abanarem com as balas. Estes gajos nunca mais aprendem, porra, 20 flexões aí já, o Saraiva oportuno como sempre. Agora sim, podem fazer fogo com o isqueiro, toca a fumar! (...) 

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parênteses retos com notas / Subtítulos: LG]

Guiné 61/74 - P23966: Tabanca Grande (541): José Maria Monteiro, ex-Marinheiro Radiotelegrafista (LFP Bellatrix, 1969/71 e Comando Naval da Guiné, 1971/73), que se senta no lugar n.º 868 da nossa Terúlia

1. Mensagem do nosso camarada José Maria Monteiro, ex-Marinheiro Radiotelegrafista (LFP Bellatrix, 1969/71 e Comando Naval da Guiné, 1971/73), com data de 9 de Janeiro de 2023:

Meu ilustre camarada Carlos Vinhal
Na sequência dos emails trocados entre nós, venho por esta via requerer a minha inscrição na TABANCA GRANDE, enviando, para o efeito, os seguintes elementos solicitados:

a) - Nome... JOSÉ MARIA MONTEIRO - voluntário
b) - Posto militar... Marinheiro "C"
c) - Especialidade... Radiotelegrafista
d) - Ramo das Forças Armadas... Marinha
e) - Colónia: Guiné, 4 anos contínuos (1969-1973)
f) - Unidade na Guiné: os 2 primerios anos... N.R.P. Bellatrix
g) - Unidade na Guiné: os últimos 2 anos no Comando Naval da Guiné
h) - Data da ida... 23 de Setembro de 1969
i) - Data do regresso... 29 de Setembro de 1973
j) - Locais de combate, no norte: Rio Cacheu, Rio Almada, Rio Bipo-Oio
k) - Locais de combate, no Centro: Rio Grande de BUBA.
l) - Locais de combate, no Sul: Rio Tombali, Rio Cumbijã e Rio Cacine, entre outros
m) - Foto - junto duas
n) - Condição de JOVEM COMBATENTE. Sim, sou dos mais jovens combatentes do Mundo. Não há, nunca houve em qualquer país que tenha entrado em conflito bélico com outros povos, exceto em 1944, quando a Alemanha se apercebeu que ia perder a guerra, a recrutar jovens mancebos com 16 anos para combater nas nossas Antigas Colónias. Sei que não sou o mais jovem combatente do Mundo, ou dos exércitos portugueses desde a fundação da nacionalidade até hoje, mas conheço alguns camaradas e outros tantos "filhos da escola", esses sim, são os MAIS JOVENS COMBATENTES, do Mundo.

Carlos, o meu penúltimo trabalho tem como título "OS MAIS JOVENS COMBATENTES", onde se refere exatamente a condição de jovem combatente.
Fui voluntário para a Marinha com 16 anos e, após terminar a especialidade, ofereci-me voluntário para a nossa antiga colónia da GUINÉ. Acredita, tenho orgulho nisso.
Fico disponível para dar todas as informações que necessitares.

José Maria Monteiro
Cascais 09/01/2023

N.R.P Bellatrix - Com a devida vénia ao Arquivo da Marinha
O CEMGFA com o autor e com o Sr. Presidente da Delegação da O.A. de Cascais, no lançamento do livro "OS MAIS JOVENS COMBATENTES", em Cascais

********************

2. Comentário do coeditor CV:

Caro José Maria Monteiro, muito obrigado por te juntares à nossa tertúlia. Tens ao teu dispor o lugar 868 da nossa Tabanca Grande.

É sempre um privilégio receber um camarada de outro Ramo das Forças Armadas que não o Exército. A esmagadora maioria da tertúlia pertence ao Exército e alguns, poucos mas bons, à Força Aérea e à Marinha.


O modo como cada um viveu a guerra, no chão, no ar ou nos sinuosos rios, faz com que cada memória traduza um modo diferente de ver e interpretar uma mesma acção. A Guiné não foi fácil para nenhum de nós. Todos tivemos medos e sentimos a morte por perto, fosse em terra firme, no ar ou na água.

Nos teus quatro anos de comissão, que começaste ainda tão jovem, deverás ter inúmeras situações para relatar. Não sei se no livro que vais apresentar no próximo sábado, dia 14, fazes referência à tua experiência enquanto operacional da Marinha Portuguesa.[*] De qualquer maneira, gostávamos que partilhasses connosco as tuas memórias e fotografias. É também uma das "obrigações" da tertúlia esta colaboração.

Faltou mandares uma foto fardado e indicares a tua data de nascimento, caso queiras que publiquemos o postalinho alusivo à efeméride.

Em nome da tertúlia e dos colaboradores deste Blogue, fica aqui um abraço de boas-vindas e a nossa disponibilidade para o que achares útil.
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Notas do editor:

[*] - 5 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23951: Agenda cultural (823): Convite para o lançamento do livro "ANTIGOS COMBATENTES, Humilhados e Abandonados", por José Maria Monteiro, dia 14 de Janeiro de 2023, pelas 12,00 horas, no Restaurante Manuela Borges, Santo António da Charneca - Barreiro

Último poste da série de 4 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23845: Tabanca Grande (540): Manuel Calhandra Leitão ("Mafra"), ex-1º cabo at arm pes inf, Pel Mort 1028 (Fá Mandinga, Xime, Ponta do Inglês, Enxalé e Xitole, 1965/67)

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23965: Notas de leitura (1541): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo a estas histórias e memórias com que Luís Cadete nos mimoseou, tudo decorreu naqueles vastos pontos da região Sul por onde ele terá andarilhado, diz ter passado 8 meses e meio em Mejo, todo o aliciante desta narrativa passa pelo rigor com que ele apresenta os diferentes locais, o modo como entremeia risos e lágrimas, dores e alegrias, felizes acasos e momentos funestos. Excelente contador, lamentarei se este livro não vier a conhecer uma reedição e divulgação que permita, a quem gosta de boa leitura que a literatura de guerra permite, esta oferenda de memórias que vêm enriquecer o que há de melhor na literatura memorial da Guiné.

Um abraço do
Mário



Muita atenção, há aqui páginas que passarão à posteridade, temos Mejo na literatura! (3)

Mário Beja Santos

Coronel Luís Carlos Loureiro Cadete, ontem e hoje

A obra intitula-se "Noites de Mejo", o autor assina Luís Cadete, viremos a saber que de seu nome completo é Luís Carlos Loureiro Cadete, foi comandante da CCAÇ 1591, a quem também dedicou o livro, conjuntamente com os seus soldados guineenses. Escreveu estas histórias em 2016 e publicou-as em 2022, edição de autor com produção da Âncora Editora. Deu algum trabalho chegar ao livro, que não está no circuito comercial, o que é profundamente de lamentar, há aqui páginas admiráveis, não faltam tiradas bem urdidas de tragicomédia, revelando ternuras da aculturação, a vida dura num dos pontos mais ásperos que a guerra da Guiné ofereceu aos militares portugueses. Como já se referiu, Luís Cadete dá-nos quadros muito precisos sobre a situação dos destacamentos, fala dos militares e dos civis, veja-se o que diz de Gadamael Porto, poderá estar relacionado este episódio com a ida da sua Companhia para Mejo. Fala na implantação de Gadamael Porto à beira de um dos braços do rio Cacine, tão à beira estava que, quando a maré subia as águas entravam, pacifica e parcialmente pelo destacamento adentro, de tal modo que as barcaças encalhavam dentro do recinto. Foram muito bem recebidos, houve direito a almoço, e lá se conta a história de que apareceu um novo comandante de Companhia que pouco tempo depois de ter chegado verificou um dado insólito: faltavam 177 capacetes de aço modelo 940, rebuscou-se a papelada, ficou-se a saber que era um artigo que fazia parte da carga da primeira Companhia que ali assentara arraiais nos idos de 1963. Consultou-se Bissau, não havia dúvidas, a Companhia tinha os capacetes em carga e por eles teria de responder quando terminasse a comissão. Andou-se à procura da melhor solução, talvez um auto de ruína prematura alegando que tinham sido roídos pelo baga-baga. Assim se procedeu, o comandante militar despachou: “Concordo com o proposto. A Companhia elabora o respetivo auto de abate.”

Mudemos de localidade, vamos agora às colunas de reabastecimento a Madina de Boé, do Gabu até à transposição do Corubal eram 60 quilómetros de mais estrada, a transposição do rio era um quebra-cabeças. “A cerca de 5 quilómetros do Ché-Ché a estrada bifurca-se: para a esquerda segue a picada para Béli, cerca de 40 quilómetros de poeira e buracos; para a direita, segue a estrada para Madina a mais de 25 quilómetros de distância. Madina de Boé era nessa altura uma tabanca reduzida à sua expressão mais simples, dominada a norte, Leste e Oeste – a não mais de 300/400 metros da tabanca – por duas linhas de alturas com cerca de 112 metros de altitude e cerca de 1500 de comprimento no sentido dos meridianos. A Sul, afastada mais ou menos 1000 metros, fica uma outra linha de alturas com cerca de 171 metros de altitude e cerca de 2600 metros de extensão, correndo no sentido Leste-Oeste e 1300 no sentido Norte-Sul que, qual triângulo isósceles, dá pelo pomposo nome de Dongol Dandum, de topo plano, careca, amplo e juncado de gravilha. Com a fronteira a pouco mais de 8 quilómetros, em linha reta, Madina passou a ser flagelada e atacada quase diariamente – quando não sucedia sê-lo várias vezes por dia – e, do alto das colinas que a enquadravam, o inimigo fazia tiro ao alvo, segundo se dizia".

Também não esquece de contar aqueles achados ditados pela boa sorte, caso daquela operação lá para os lados de Empada, um soldado ao aliviar a bexiga, reparou em algo que brilhava por baixo da cobertura. Meteu a mão àquilo que brilhava, apareceu-lhe uma espingarda AK, chamou os camaradas, tinha sido descoberto um depósito de armamento, dali saíram espingardas, metralhadoras, pistolas, minas e granadas de mão. Não esconde que terá sido um erro não se ter ocupado Salancaur, decisão tomada por Arnaldo Schulz, depois da ocupação de Mejo, aquele ponto era uma pedra no sapato das nossas tropas, e ele explica o porquê:
“Com cerca 400 metros no sentido Este-Oeste e o topo careca em forma de tampo de mesa, ligeiramente inclinado para Leste, Salancaur dominava uma vasta área em redor, nomeadamente o corredor de Guileje. É óbvio que a ocupação de Salancaur não impediria, em definitivo, as infiltrações do PAIGC, mas permitiria um melhor controlo da zona e forçaria o Inimigo a diligenciar itinerário alternativo. De encostas íngremes, exceto na ponta Leste, inçadas de matagal e de enormes poilões de tronco pregueado que davam proteção a ambos os contendores, Salancaur obrigava a nossas tropas a atacar a subir, coisa pouco agradável e que conferia vantagem manifesta às gentes do PAIGC.”

Tenho vindo a desenvolver estas pequenas histórias de Luís Cadete por as considerar muitíssimo bem elaboradas, por iluminarem a atividade militar desenvolvida nesta região Sul entre 1966 e 1968, tempos de Mejo, de Sangonhá e de Cameconde, posições que Spínola deliberou abandonar. Histórias de afetos, de dramas de guerra onde não falta a mina bailarina, o fornecimento de peixe e carne por expeditos nativos na pesca e na caça, as penosidades do abastecimento, havia que comer sem remissão o pãozinho com gorgulho; é manifestamente crítico com o abandono de certas posições, descreve a importância de Contabane, que depois de um ataque devastador, foi abandonada. As histórias multiplicam-se, andaremos entre Fulacunda-Buba-Catió, Aldeia Formosa, de Guileje a Gadamael, tudo enroupado com apreciações nem sempre positivas à burocracia militar, há notas soltas sobre obsessões de gente que só bebia água engarrafada, infidelidades conjugais, porventura com caráter autobiográfico será mencionada a aventura do cultivo de abacaxis que não surtiu efeito porque as cabras encontraram ali alimento. Sempre dentro desta linha que houve abandono de posições que se tornaram verdadeiras vitórias militares do PAIGC, volta-se a falar em Madina do Boé, e conta-se a história que havia para lá um corneteiro destemido que se punha em campo aberto a executar o toque de silêncio.

A última história que nos presenteia Luís Cadete é seguramente fidedigna, passou-se em Mejo e em 1966. Ouviu-se roncar motor de helicóptero, voava a Sul da estrada Guileje-Bedanda, notificou-se superiormente, e meses depois apareceu um outro helicóptero e ali aterrou, o piloto desfez-se em desculpas, confundira aquela pista com a de Boke. “Comunicado o facto superiormente, com o grau de prioridade máxima que a situação aconselhava, foi a Companhia informada de que a FAP iria tomar conta da situação. E cerca de quinze minutos depois havia dois T-6 sobre a pista e pouco depois um helicóptero.” Era um Antonov An-2, soviético. O aparelho levantou voo escoltado pelos T-6 e terá seguido para Bissalanca. Lá na Companhia não se soube mais nada, abateu-se um manto de silêncio. “Uma aeronave estrangeira, oriunda de um país apoiantes ostensivo do PAIGC, sobrevoara parte considerável do território português em guerra e dera-se ao desplante de nele aterrar sem que ninguém o referenciasse nem a FAP o intercetasse. E isto em pleno dia, com excelentes condições atmosféricas e não menos excelentes e extensa visibilidade!”

Insista-se que se trata de leitura imperdível.

Guileje, 1973
Numa vala no quartel de Guileje, CCAV 8350 ‘Os Piratas de Guileje’, imagem retirado do Correio da Manhã, com a devida vénia
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Notas do editor:

Postes anteriores de:

26 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23917: Notas de leitura (1536): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (1) (Mário Beja Santos)

2 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23938: Notas de leitura (1539): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 6 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23956: Notas de leitura (1540): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (11) (Mário Beja Santos)