quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23972: Historiografia da presença portuguesa em África (351): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Abril de 2022:

Caros amigos,
Continuamos em 1949, o comandante Sarmento Rodrigues regressou a Lisboa mas deixou um acervo legislativo que continuou em discussão no Conselho de Governo. Em 3 sessões realizadas em maio deste ano, discutiu-se de novo as condições de acesso aos medicamentos, as responsabilidades das farmácias, a distribuição por grosso dos medicamentos e os requisitos para o exercício da profissão de odontologista. São matérias que alguns poderão considerar dispensáveis para o conhecimento da História da Guiné, mas que, em minha modesta opinião, marcam uma viragem no processo civilizacional, a organização dos Serviços de Saúde à luz dos direitos que todos na Guiné teriam na acessibilidade ao medicamento; e em termos de Saúde Pública discutiam-se igualmente os requisitos dos profissionais de saúde. Entendi que estes elementos eram de extrema importância, é um dos pontos de visibilidade da extensão do que foi a governação de Sarmento Rodrigues na sua conceção de colónia-modelo.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (5)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que se procurava fazer durante o seu mandato.

O Governador agora chama-se Manuel Maria Sarmento Rodrigues, é Capitão-Tenente e está a imprimir, de forma gradual, uma nova vitalidade orgânica à colónia, um perfil organizacional, uma dinâmica de desenvolvimento, uma reformulação da política de Saúde.

Sarmento Rodrigues deixa a Guiné no início de 1949, mas muita da legislação que ele idealizou prossegue em discussão e é aprovada, continuamos a apreciar diplomas que têm a ver com a área da Saúde, mormente a dispensa de medicamentos, a atividade farmacêutica e, pasme-se, o exercício da profissão de odontologista, o que deu imensa discussão pois já havia protésicos na Guiné, a legislação aprovada não os deitou fora.

Estamos agora em 12 de maio de 1949, o Conselho de Governo reúne presidido pelo Encarregado, Tenente-Coronel Pedro Pinto Cardoso, entra-se na discussão de uma proposta acerca da Inspeção Superior dos Serviços de Saúde. Volta-se a referir que têm direito ao fornecimento de medicamentos gratuitos pelas farmácias e ambulâncias do Estado, além dos indígenas, indigentes, pessoal missionário, assalariados do Estado, praças de pré do Exército e da Armada, internados em estabelecimentos de beneficência e presos e detidos nos presídios e cadeias mencionados no Regulamento dos Serviços de Saúde; de novo se referem os proventos globais do agregado familiar, para saber quem está isento de pagamento ou beneficia de descontos ou terá de pagar pelo preço de fatura; tal como na legislação anteriormente aprovada, menciona-se que todos os servidores do Estado e suas famílias têm direito ao fornecimento gratuito de sais de quinino e medicamentos anti palúdicos quando receitados pelos médicos dos Serviços de Saúde, beneficiando os servidores do Estado do fornecimento gratuito de medicamentos tripanocidas; estabelecem-se os requisitos para o fornecimento de medicamentos pelas farmácias, prevê-se a existência de documentos; aos indígenas não é exigido documento algum para a sua apresentação nas consultas dos estabelecimentos de assistência do Estado, mas o fornecimento de medicamentos é feito mediante receita passada pelo médico de Serviço de Saúde; o receituário a todos aqueles que têm direito a medicamentos gratuitos deve obedecer, quanto possível, ao formulário oficial dos Serviços de Saúde.

Na reunião seguinte, que se realizou em 19 de maio do mesmo ano, presidida pelo mesmo Encarregado de Governo, entrou em discussão o projeto de diploma respeitante ao fornecimento de medicamentos ao Estado, por grosso. No início houve para ali uma grande discussão, o Encarregado de Governo disse que este projeto tinha origem numa exposição apresentada pelo Diretor Técnico da Farmácia Moderna, Dr. Estarrenho Valentim, quem pôs ordem foi o Delegado do Procurador da República que lembrou aos presentes que o que estavam em causa era a importação e o fornecimento de medicamentos ao Estado por grosso. O Chefe dos Serviços de Saúde afirmou que em Angola e Moçambique não só as farmácias e drogarias podiam fornecer medicamentos por grosso mas também os representantes da Metrópole até mesmo firmas estrangeiras, sem farmacêuticos a dirigi-los, e na Guiné era obrigatório um diretor técnico, exigência que se pode considerar um tanto exagerada; a legislação que agora se procurava aprovar sobre o fornecimento de medicamentos por grosso exigiam que na Guiné houvesse um simples procurador, e que os medicamentos especializados ou não, de origem estrangeira, ainda não verificados em qualquer território do Império colonial português, passariam a ser analisados à entrada na colónia no laboratório de análises químicas, bromatológicas e toxicológicas dos Serviços de Saúde.

O Conselho de Governo volta a reunir em 20 de maio, a discussão agora incide sobre o projeto de diploma sobre o exercício da profissão de odontologista, há quem entenda que a clínica dentária só pode ser exercida por médico odontologista, há quem replique que os atuais práticos dentistas da Guiné podem exercer cirurgia e prótese dentária mas não a clínica dentária; é sugerido que devem ser respeitados os direitos dos dentistas atualmente existentes na Guiné, como ato de justiça, no futuro é que não devem ser admitidos outros nas mesmas condições; há que observe também que os dentistas atuais devem ser submetidos a um exame, e há quem discorde com tal critério, dizendo que não faz sentido o indivíduo que durante 10 ou 15 anos exerceu uma profissão a contento do público seja agora obrigado a fazer exame. Após discussão assentou-se que ficavam autorizados os atuais práticos dentistas, já coletados pelo exercício da profissão, a executarem trabalho de odontologia desde que se inscrevessem na Repartição Central dos Serviços de Saúde. E o Conselho também deliberou no projeto de diploma respeitante ao fornecimento de medicamentos por grosso ao Estado que os farmacêuticos que fornecessem substâncias medicinais em desacordo com a receita médica podiam ser condenados a penas de prisão e ao pagamento de multas.

(continua)

Almirante Sarmento Rodrigues
Hospital de Cumura, a leprosaria da Guiné
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23948: Historiografia da presença portuguesa em África (350): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (4), veja-se hoje como Sarmento Rodrigues pretendeu instituir mudanças no sistema de saúde, incluindo as farmácias e os medicamentos (Mário Beja Santos)

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