Queridos amigos,
Comecei em 1917 e estou no final de 1946, li com a maior das surpresas o projeto que o Governador Sarmento Rodrigues pôs à discussão no Conselho de Governo, em torno dos direitos à Saúde da população civilizada, mestiça e indígena procedia-se a um minucioso enquadramento de todos estes direitos no quadro da população guineense, a distribuição gratuita de medicamentos para o sezonismo, o enquadramento da atividade farmacêutica com um rigor e detalhe que nos leva a fazer crer que Sarmento Rodrigues possuía uma lógica desenvolvimentista que ia desde a cultura, o ensino, a eficiência dos serviços da Administração, o extenso rol de iniciativas no campo das infraestruturas, e subitamente este Regulamento a todos os tipos uma inovação no sistema de saúde guineense. Mais uma razão para dizer que Sarmento Rodrigues detinha um pensamento abrangente como nenhum dos seus antecessores, a despeito dos bens recebidos manifestou-se um reformista notável, e daí o percurso que o levou ao Governo e a ficar na História da Guiné como o dirigente político que pôs a antiga Senegâmbia portuguesa no mapa da civilização, com o timbre da língua portuguesa.
Um abraço do
Mário
Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (4), veja-se hoje como Sarmento Rodrigues pretendeu instituir mudanças no sistema de saúde, incluindo as farmácias e os medicamentos
Mário Beja Santos
Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que se procurava fazer durante o seu mandato.
O Governador agora chama-se Manuel Maria Sarmento Rodrigues, é Capitão-Tenente e está a imprimir, de forma gradual, uma nova vitalidade orgânica à colónia, um perfil organizacional, uma dinâmica de desenvolvimento, uma reformulação da política de Saúde. Estamos agora em 10 de dezembro de 1946, o Governador anuncia ao Conselho de Governo que se vai procurar virar a página na política de Saúde, em causa um projeto de Governo sobre assistência médica, com inúmeras referências à organização farmacêutica e à política do medicamento, algo de surpreendente, em termos de investigação nunca vi convenientemente apresentada esta iniciativa que tem a ver com o Estado social e uma lógica manifestamente de vanguarda para o sistema de saúde, numa colónia onde havia leprosaria e um apoio ainda rudimentar ao tratamento da doença do sono e outros males tropicais.
O Governador põe à discussão o projeto, vejamos algumas questões essenciais: direito a assistência médica, cirúrgica, obstétrica e estomatológica gratuitas além daqueles a quem o Regulamento da Saúde da Colónia já as concede, funcionários públicos, militares, contratados e assalariados, aposentados e reformados, nos casos em que os vencimentos e abonos fossem inferiores a 20 mil escudos anuais; quando os vencimentos e abonos fossem superiores a tal montante abria um desconto de 50% sobre os preços mínimos das respetivas tabelas; passavam a ter direito a assistência farmacêutica gratuita pelas farmácias e ambulâncias do Estado para tratamento os indígenas, indigentes, pessoal missionário, assalariados do Estado, praças de pré do Exército e da Armada, internados em estabelecimentos de beneficência e presos detidos nos presídios e cadeias; as farmácias ficavam autorizadas a fornecer gratuitamente medicamentos prescritos pelos médicos veterinários destinados a animais pertencentes ao Estado; especifica-se os requisitos para quem pretendia ser fornecido nas farmácias e ambulâncias, guias ou atestados; os sais de quinina, a atebrina, a plasmoquina e todos os medicamentos específicos do sezonismo são gratuitos quando prescritos para fins profiláticos ao pessoal missionário, às praças de pré do Exército e da Armada, ao pessoal dos ramos da enfermagem, laboratórios e farmácias e respetivas famílias, e os restantes funcionários e pessoas de família terão um desconto de 50% sobre o preço de fatura; a todos os funcionários e pessoas das suas famílias serão concedidos gratuitamente em cada mês para tratamento das crises agudas do sezonismo, quando prescritos pelos médicos e encarregados das ambulâncias do Estado um dos medicamentos que vêm mencionados no Regulamento e a respetivamente dosagem; definem-se os preços dos medicamentos.
Seguiu-se debate, houve quem observasse que havia que fazer a destrinça entre indígena de indigente, quem devia emitir as guias, um dos vogais, o Eng.º Ferreira Chaves, teceu o seguinte comentário: “Pode dar-se o caso de aparecer um ou outro indígena à consulta sem estar doente, mas é sempre uma minoria que não deve prejudicar o direito dos demais. Todos sabem que o indígena da Guiné precisa de assistência médica, a assistência é sempre insuficiente. Não há medicamentos. Fazer os indígenas passar pela Administração é o mesmo que obstar o tratamento imediato. Em Farim, e em toda a parte, nota-se um grande aglomerado de indígenas que procuram médico. Quanto a indigentes, acho bem a exigência da guia, mas ao indígena com aquela desconfiança e inconsciência próprias da sua ignorância, acho que não devia ser exigida tal formalidade da guia”.
Sarmento Rodrigues também emitiu os seus comentários, veja-se o que consta da ata:
“Usando da palavra, diz-se que, tratando-se de comparações com o território estrangeiro vizinho, é deveras lisonjeiro o apreço dado ao sistema adotado na nossa colónia no combate à doença do sono. No combate de todas as doenças, a afluência do indígena tem sido cada vez maior, o que prova a confiança que ele tem no tratamento que lhes é dispensado. Os hospitais estão sempre cheios. É certo que as despesas são muito maiores, mas em comparação os resultados são maiores e a mortalidade diminuirá consideravelmente. Estão em curso muitas obras destinadas à instalação dos diversos ramos dos serviços de saúde”. Mencionou-os, ele próprio ficou surpreendido quando há dias soube da existência de um posto sanitário em Cafine, da Circunscrição de Catió, anseia que a assistência seja maior e melhor. “Nota-se nas crianças indígenas um enfraquecimento ou raquitismo que não sabe explicar a razão, se é devido à falta de tratamento, se deficiência da alimentação”.
A discussão depois incidiu sobre o exercício farmacêutico, a preparação dos medicamentos, o aviamento de receitas e a venda ao público de medicamentos, enquadrou-se a atividade farmacêutica, tanto a pública como a privada, definiu-se o proprietário das farmácias, o diretor técnico, a organização do espaço da farmácia, a obrigatoriedade da existência em todas as farmácias da Farmacopeia Portuguesa, a rotulagem dos medicamentos tanto para uso humano como veterinário. O diploma foi aprovado por unanimidade. Era uma nova era na política de Saúde guineense.
(continua)
Sarmento Rodrigues, foto oficial do Ministro do Ultramar
Farmacêutica Sofia Pombo Guerra (1906-1976), oposicionista do Estado Novo, teve farmácia em Bissau na década de 1950Pormenor do Hospital Simão Mendes, Bissau
____________Nota do editor
Último poste da série de 28 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23925: Historiografia da presença portuguesa em África (349): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (3) (Mário Beja Santos)
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