terça-feira, 19 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1089: Historiografia da presença portuguesa em África (4): Mitos e realidades (Beja Santos)

Guíné > Bissau > Catedral > Postal ilustardo do final dos anos 60. Gentilmente cedido por Beja Santos.

Foto: © Beja Santos (2006)

Texto do Beja Santos, com data de 13 de Setembro de 2006:

Caro Luís, como prometido, volto às minhas responsabilidades com a tertúlia.
Envio pelo correio três bilhetes postais:
(i) rapariga Papel tatuada, (ii) muçulmanos em oração e (iii) Cais do Pidjiguiti (vê se insistes para que toda a gente te envie estes valiosos elementos gráficos que fazem parte da nossa memória);
Envio também: (iv) fotografia que recebi do Pel Caç Nat 52 por altura do Natal de 70, quando a unidade já estava em Fá: à frente sei que estão o António da Silva Queiroz, o 81 (era ele que nas noites de fogo e com uma braçadeira suportava o morteiro 81, façanha que repetia nas operações, como se comentará oportunamente) e o Nélson Wahnon Reis; (v) uma pagela alusiva à morte de Carlos Sampaio, o meu maior amigo na juventude de que iremos falar quando chegarmos a Fevereiro de 1970; e (vi) uma ordem de serviço que encontrei com o meu primeiro louvor: trata-se de um documento que iremos analisar ao longo de 1969, quando o Hélio Felgas me aplicou dois dias de prisão simples invocando que eu não dava o máximo da minha competência na manuntenção do aquartelamento de Missirá e que me levou a querer recorrer junto do Conselho Superior de Disciplina Militar. Este oficial general procurou ressarcir-se concedendo-me um louvor pela minha actividade operacional. Esta história é exemplar: se eu vivesse a engonhar e não saísse do quartel não teria ganho as antipatias ou caído na alçada dos maus génios...

Durante a minha semana em Casal dos Matos decidi ler a História da Guiné, portugueses e africanos na Senegâmbia, 1841-1936 , em 2 volumes (Editorial Estampa). Precisava e preciso de elementos mais consistentes sobre os mandingas no Geba, no Cuor e na luta contra os portugueses. Explico em texto destinado à tertúlia porque é que esta obra é de leitura obrigatória.


Afinal, o que era a Guiné Portuguesa?

Beja Santos

Quando cheguei à Guiné, ouvi repetidamente que a nossa presença datava do século XV e que tinha sido uma constante a partir de então. Interroguei-me porque é que a língua portuguesa era pouquissimamente usada, o animismo a tendência ético-religiosa mais difundida, o islamismo recente e cheio de tensões e o cristianismo quase nulo fora do reduto das missões católicas.

Contei com auxílio do então Comandante Avelino Teixeira da Mota, um dos vultos culturais proeminentes da Guiné e um dos maiores cartógrafos do mundo (a seu tempo, quando divulgar as cartas que me escreveu, falarei da nossa amizade e da forma dilacerada com que ele teve de abandonar a Guiné ao tempo do General Spínola), que me indicou uma série de leituras.

Confesso que fiquei sempre insatisfeito com aquela historiografia hagiográfica, louvando factos e eventos espúrios da presença portuguesa. A situação agravou-se quando estudei as campanhas de Teixeira Pinto e verifiquei que 60 anos antes do PAIGC a Guiné Portuguesa era pura ficção.

A leitura da "História da Guiné" de René Pélissier é recomendada a vários títulos:

(i) O mosaico étnico que aprendíamos em rigor nada tinha a ver com a história da Guiné. Os fulas do Império do Gabu tinham vindo do Futa-Djalon e a partir do século XIX modificaram radicalmente a relação de forças até então existente. Os comerciantes que viviam na Fortaleza de S. José de Bissau ou em Cacheu eram apoiados por escassas tropas portuguesas onde pontificavam os cabo-verdianos, os mestiços ou lusitanizados. Os fulas, ao entrarem em guerras fratrícidas, possibilitaram alianças entre o colonizador que jamais vivera no interior da Guiné. Os Papéis de Bissau foram sempre extremamente agressivos com o colonizador, como está altamente documentado.

(ii) O território onde combatemos a partir de 1963 era uma minúscula parcela da Senegâmbia ou a Guiné de Cabo Verde: só no fim dos anos 70 do século XIX é que se cria a colónia da Guiné independente das autoridades da praia. É preciso estudar a sério a presença cabo-verdiana para se perceber todo o rol de conflitos que se prendem com a história do PAIGC e o próprio golpe do Nino Vieira em 1980. A Guiné era negreira, os brancos na sua maioria presidiários e o comércio era constituído por escravos, amendoim, palmiste, cera, couros e borracha. Ainda no fim do século XIX, depois do Ultimatum britânico, ainda se pensou em entregar a Guiné à França, tal a indiferença que aquela região merecia às autoridades de Lisboa. O Alto Casamansa onde ainda hoje se fala crioulo português foi entregue à França e Bolama foi feitoria britânica (estamos a falar de história moderna, é claro).

(iii) As insurreições foram uma constante em toda a colónia ao longo do século XIX e do século XX: grumetes de Bissau, guerras na feitoria de Cacheu, intervenção dos franceses, britânicos e americanos, tudo aconteceu. Ninguém sabia qual a superfície da Guiné Portuguesa: em 1877 o número andava entre os 69 Km2e os 20 mil Km2.. os governadores eram negreiros, déspotas e o seu poder foi sempre brutal neste império de febres e doenças palustres. Quando a Guiné é desafectada de Cabo Verde sucedem-se os desastres militares e os contenciosos permanentes recorrendo as autoridades aos simulacros de tratados de paz com chefes tribais. Este período é fascinante pela organização das alianças do colono com uma parte dos colonizados, nos rios grandes de Geba ou de Buba. É também nessa altura que aparece a luta no Cuor, acima do antigo Forte de S. Belchior, em Sambel Nhanta, muito perto de Missirá. Sambel é historicamente referenciada e destruída pelas tropas portuguesas (entenda-se tropas portuguesas alguns brancos, muitos grumetes e mestiços, cabo-verdianos, angolanos, biafadas ou fula-forros...).

(iv) As guerras luso-mandingas datam do final do século XIX, foram sangrentas sobretudo na região do Oio. Foi Teixeira Pinto que ajustou contas com os rebeldes e "pacificou" mandingas e biafadas pondo termo brutal às diferentes rebeliões. Em 1936 a Guiné conhece a paz e assume-se a soberania portuguesa. Boncó Sanhá, régulo do Badora (porventura avô do Tenente Mamadu Sanhá que muitos de nós vimos em Bambadinca) foi promovido a Capitão de segunda linha, o mesmo acontecendo com outros régulos. Só duas gerações depois é que apareceram as Kalachinikov.

O que convém destacar é que a presença portuguesa não corresponde ao que propalou a literatura oficial. E quando se acaba de ler esta história da Guiné, nós, os que lá combatemos, somos levados a reflectir sobre a nossa ignorância e os fundamentos que legitimaram à luta pela independência. Mentimos todos , mesmo aqueles que prometiam uma visão idílica para a união entre a Guiné e Cabo Verde.

1 comentário:

Anónimo disse...

Em 1949 aprendia-se na escola primária que a capital da Guiné era Bolama ou Bissau. E segundo muitos velhotes comerciantes de Bissau em 1976, diziam que tirando Cacheu e Bissau e Bolama, o resto era praticamente desconhecido. Tanto os habitantes de Casamance no Norte como os de Cacine no Sul, não tinham a minima noção do que era ser portugues ou francês, quando os PAIGC´S apareceram...E se no caso da Gambia, com menos lógica de ser pais, do que a Guiné, só o é, porque os Ingleses são... os "Ingleses".(história interessantíssima). Ainda hoje em Angola existem tribos na fronteira com o "Congo Belga" a quem a fronteira não diz absolutamente nada, dum lado e do outro. Dizer que África são paises independentes neste momento, "à branco", é a explicação para os genocidios a que se tem assistido. Tirando algumas "colónias Inglesas" o resto vive tudo de "dedo no gatilho". Mas eram os "ventos da história" para mal daquela gente...Antonio Esteves Rosinha, Alverca