segunda-feira, 18 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

Guiné > Zona leste > Gabu > Canjadude > 1974 > O Fur Mil Enf Carvalho, da CCAÇ 5, com um guerrilheiro do PAIGC, equipado a rigor e empunhando a mítica espingarda-metralhadora Kalash...

Foto: ©
João Carvalho (2006)

Texto do Vitor Junqueira, ex-alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72) (1).

Caro Luís Graça,

Entre o material que diariamente me chega via e-mail, o que mais aprecio é sem dúvida aquele que resulta da produção dos nossos camaradas tertulianos. Li com muito gosto aquela crónica do Beja Santos acerca do soldado desconhecido de Mansoa (2). Esta história teve o condão de limpar algumas teias de aranha de uma carunchosa prateleira da minha memória, onde havia um registo já velhinho de um episódio em que um soldado desconhecido, mas este do lado de lá, resolveu apresentar-se à minha companhia.

Estávamos para aí a meio da comissão e as coisas até corriam bem: praticamente sem baixas e, com uma razoável liberdade de movimentos numa zona em que os que nos antecederam, passaram o cabo das tormentas.

Com a notável excepção dos oficiais, sargentos e alguns especialistas ( transmissões, cozinheiros, mecânicos e pouco mais ), os homens da CCAÇ 2753 eram quase todos açoreanos, que se tinham oferecido como voluntários para servir naquela "sagrada parcela do Território Nacional" chamada Guiné. Que me perdoem os mais sensíveis, mas era assim que se dizia!

Diplomados pelo B.I.I.17 (3), então aquartelado na fortaleza de S. João Baptista no sopé do Monte Brasil, em Angra do Heroísmo com uma suadíssima recruta e temerária especialidade (*), os Barões rumam ao Continente, chegando a Lisboa mesmo a tempo de prestar as honras militares ao Dr. Botas que entretanto se aboletara numa câmara, dita ardente, no Mosteiro dos Jerónimos (4).

Nas redondezas da capital do Império (Serra da Carregueira, Amadora, Pragal), fazem-se mais uns cursos e ensaiam-se umas guerras da treta, à espera do dia do embarque que nunca mais chega.

É aqui que a companhia recebe um reforço de peso: o soldado Lima. Nortenho, vindo dos lados de V. N. Gaia, era baixote, gago e tinha o hábito de deixar descair a cabeça para o lado quando alguém o abordava (défice auditivo?). Alegre, simpático, sorria com facilidade. No olhar, um brilho entre o matreiro e o irónico.Típico rato de celeiro!

O nosso pronto Lima conseguiu uma proeza digna de registo: manteve-se em completo anonimato, a bem dizer incógnito, sem que ninguém desse por ele até ao momento em que a Companhia foi colocada em quadrícula. Claro que se sabia que ele estava lá, fazia parte da unidade e o seu nome até constava na papelada da secretaria ...

Mas ao certo ninguém sabia por onde é que andava o Lima, de que pelotão fazia parte, se estava escalado para algum serviço... nada! Até que um dia foi obrigado a dar à costa.

Tinha havido uma rebelião que opôs praças (manjacos) da CAÇ 17 aos seus alferes e furriéis. O general Spínola ordenou a imediata retirada desta companhia que se encontrava no Bironque, um ponto no mapa entre Mansabá e Farim, para Bula, sendo substituída no terreno pela CCAÇ 2753 que era a única força disponível naquele momento em Bissau.

Trasladados à pressa e sem aviso prévio, lá fomos malhar com os ossos num buraco no meio de uma belíssima mata, para as bandas do Oio deixando para trás aquela vidinha boa, com qualidade, quase requinte em Bissau. E aí tornou-se impossível ao Lima continuar a escapulir-se. Sorte malvada!

Para surpresa do maralhal, fica-se então a saber que o Lima é... Básico, funcionalmente falando. Passa portanto a desempenhar tarefas adequadas à sua simplicidade de cabeça: racha lenha, ajuda na cozinha e nas limpezas, faz recados e claro está, enquanto os espertos embrulham no mato, ele bate umas sornas.

Do Bironque seguimos umas semanas depois para Madina Fula e mais tarde atingimos o términus desta peregrinação em Saliquinhedim (K 3). Durante este período não tínhamos dado grandes motivos de regozijo ao nossos camaradas do PAIGC pelo que era mais do que natural que não tivessem grande apreço pela presença da Companhia dos Açoreanos na região.

É aqui que entronca a história deste outro soldado desconhecido. Estamos então no K 3 e são cerca das cinco da tarde. O cozinheiro aperta com o Lima, vocifera, pragueja, berra que nem um danado. O motivo é este: quer ultimar o jantar e o lume debaixo do caldeirão dos feijões está a ir-se abaixo por falta de combustível. O pessoal já tomou o seu banhito balanta e está a anoitecer. É preciso comer antes de se fazer escuro como mandam as normas, de maneira a que quando começar a chover a bernarda, já todos estejam nos seu postos. O aquartelamento é atravessado a meio, no sentido norte - sul, por uma estrada asfaltada acabada de construir.

Junto ao cavalo de frisa da entrada sul está um monte de lenha e o Básico tenta abnegadamente transformar aqueles cibos em cavacas.Transpira, resmunga, ofega, está exausto.Talvez para retomar o fôlego, levanta a cabeça e avista a cerca de uma centena de metros do arame farpado, caminhando calmamente em direcção a ele, um militar (usava camuflado e estava armado)! Era negro, portanto só podia ser do IN já que entre os nossos não havia nenhum africano. Além disso, o tipo de arma e a maneira como ele a trazia cruzada sobre o peito, desvaneceram-lhe quaisquer dúvidas.

A sua agilidade mental tomou-lhe conta dos gestos. Sem qualquer hesitação, empunha a ferramenta e corre na direcção do militar a quem ordena que levante os braços. O homem do PAIGC, com Kalashnikov carregada, bala na câmara, e quatro carregadores pendurados no cinturão obedece prontamente.

Entretanto alguém deu o alarme e, à parada até então quase deserta, começa a afluir o pessoal que se preparava para o tacho. A cena deixa-os estupefactos. De machado em riste apontado à cabeça do elemento capturado e caminhando à sua retaguarda, o soldado Lima trespassa aquela espécie de porta de armas com pose de general. Dirige-se ao comandante da companhia e diz-lhe sem gaguejar:
- Meu capitão, fiz este prisioneiro!

Entre o receoso e o incrédulo, o capitão mandou desarmar o prisioneiro e nomeou quem deveria ficar responsável pela sua vigilância. Com grandes dificuldades de comunicação, reais ou de conveniência, lá foi explicando que desencantado com a vida que levava no mato resolvera entregar-se à tropa portuguesa.

Seguiu um Sitrep para o estado Maior a contar o sucedido e, até ser evacuado uns dois dias depois, o recém chegado foi tratado como uma vedeta. Comeu e bebeu à la gardère, tabaqueou quanto quis e até mamou umas bujecas à pala do pagode. Recebeu palmadas de amizade nas costas, riu com as graçolas do tugas e passeou-se livremente por todo o perímetro interno do arame farpado, casernas, paióis e espaldões incluídos. Afinal ele agora era um dos nossos e portanto, merecedor de amizade e depositário da nossa confiança.

Algum tempo depois chegam notícias de Bissau. O nosso amigo está a colaborar bem nos interrogatórios e tem fornecido informações de grande interesse para as NT. Mais tarde: o elemento do IN que se entregou no K 3 foi transferido para a Psico para um período de reeducação e observação, após o que será restituído à liberdade.

Pouco depois, mais notícias: o prisioneiro fugiu! E finalmente, um mês ou dois mais tarde: o prisioneiro foi (re)capturado em combate na região do Morés. Afinal é capitão das tropas do lado de lá, terá recebido formação no exterior e foi designado para esta missão de pura espionagem, sendo essa a verdadeira razão pela qual se deixou capturar. Manga de ronco!

Tansos? Ingénuos? Que importa isso agora!? Siga a marinha.

Um abraço do Vitor Junqueira
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(*) Tivemos mais baixas na especialidade do que no TO [da Guiné]!
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Notas de L.G.

(1) Vd. post anterior, P1083, assinado também pelo Vitor Junqueira,

(2) Vd. post de 14 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido

(3) Referência à morte do Dr. António de Oliveira Salazar, em 27 de Julho de 1970.

(4) Batalhão Independente de Infantaria 17

(5) Vd. primeiro poste da série Histórias de Vitor Junqueira de 18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)

1 comentário:

Anónimo disse...

TANSOS?INGENUOS!...SIGA A MARINHA.Foi essa "paisanice", a grande arma, que desarmou durante 13 anos não só os Paigc's e Mpla's, mas até as Nações Unidas, URRS e USA, Suécia, Igreja, etc....Só é pena que o PAIGC, alem de fintar o Spinola, fintou tambem o Amilcar e Luis Cabral, e até que se "enrolou" com a bola nos pés e só dá golos na baliza da Guiné...Parece que tambem são guineenses que vão dar à costas das Canárias...Estupores daqueles "ventos da história"...torosinha@hotmail.com