O Mário Beja Santos, hoje.
Foto: © Beja Santos (2006)
Texto enviado pelo Beja Santos, com data de 15 de Setembro último. Continuação da publicação das suas memórias, como alferes miliciano, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1).
Meu caro Luís, imagina tu tinha há meses para ler a obra do embaixador Pinto da França Em Tempos de Inocência, editado este ano pela Prefácio. Eu conhecia os trabalhos do Pinto da França através do Ruy Cinatti e que têm a ver com a cultura indonésia e luso-indonésia. Foi uma grande surpresa começar a ler o seu diário enquanto embaixador de Portugal na Guiné-Bissau, a partir de 1977.
Há os olhos inocentes do diplomata interpretando a nova classe política do PAIGC. Por exemplo: "É uma nação simultaneamente africana e mestiça, vagamente muçulmana e cristã sobre um fundo de aminismo, funcionando na base de uma elite cabo-verdiana, ligada por uma intrincada rede de parentescos. Apesar de instrisecamente burguês, esse grupo vive no culto de ideiais marxistas, credo que lhes é contranatura".
Comporta relatos saborosos dos nossos cooperantes, do pessoal da embaixada, das azelhices do protocolo, do irrealismo de certos diplomatas ocidentais e orientais. Se me autorizares, farei a recensão para a semana e convido toda a gente a conhecer este olhar personalizado do Pinto da França.
Como sabes, voltei à Guiné como cooperante em 1991, assisti à decomposição política que levou ao afastamento do Nino Vieira, mas pelo correio que recebemos do Didinho, as esperanças não são melhores na actualidade.
O Pinto da França que vai viver em Bissau até 1979 põe a questão básica da orfandade do grande líder Amílcar Cabral: a luta pela independência dos guineenses era prestigiada em África e noutras partes e os sucessores de Cabral sentaram-se à sombra da inércia deste prestígio. Outra realidade que Pinto da França observa pude confirmá-la e chega aos tempos de hoje: ausência quase absoluta de quadros intermédios. Dói, nós não podemos intervir a não ser através do modelo de cooperação que contribua para formar in loco uma administração exigente, altamente qualificada e que saiba actuar acima das etnias e dos partidos.
Para a semana, por razões profissionais, serei mais parcimonioso. Aqui vai mais um episódio, pedindo a tua atenção para uma fotografia em que vou atravessar a bolanha de Finete com o Saiegh em destaque (2). Recebe um abraço do Mário.
Bacari Soncó e Fodé Dahaba, os meus irmãos de Finete
Beja Santos
Para a minha primeira semana em Finete (1) ainda pensei levar o gira-discos a pilhas, mas decidi concentrar-me num saco de leituras. A escolha recaiu em obras sobre o Império Romano, o Corão (naquela época não havia nenhuma tradução portuguesa, comprei num alfarrabista uma boa edição da Garnier) e literatura surrealista, um pouco de Boris Vian, Carlos Oliveira e outros desalinhados do neo-realismo.
Falei do Alexandre O'Neill de que me empolgavam os seus textos no Diário de Lisboa à semelhança da Guidinha, do Sttau Monteiro. O'Neill, insisto, irá influenciar-me na formação do gosto, na renovação audaz da língua, na combinação do castiço com a claridade cosmopolita. Lembro-me de ter metido no saco A Ampola Miraculosa que pertencia à colecção dos cadernos surrealistas editados pelo António Pedro. A Ampola é uma colagem de ilustrações antigas, uma brincadeira imaginativa sem direcção, mas que me ajudava a compreender a mistura da poesia, da pintura e do panfleto político.
O'Neill foi pintor e criou poemas ditos ortográficos, uma originalidade que infelizmente ficou sem continuadores. Para não ser repetitivo, A Ampola ficará reduzida a cinzas dentro em breve. Podem, pois, os meus gentis leitores tertulianos imaginar a satisfação que tive quando há dias, antes de passar a limpo este fio de memória, ter descoberto que a Assíro & Alvim deu à estampa a edição fac-similada da Ampola, mostrando o O'Neill como vate coroado. Confio na vossa bondade em interessarem-se pelo O'Neill( se não o fizeram antes), e para os mais timoratos a minha sugestão é que se atirem à Ampola que começa assim: "Pais que fazeis? Os vossos filhos não são tostões, gastais-os depressa" (Ó Luís, sê amigo dos surrealistas e mostra coisas da Ampola).
Pronto, cheguei a Finete. A Finete de que eu sou militarmente responsável coincide com o registo do mapa. Ou seja, eu faço a cambança do Porto de Bambadinca e de Unimog ou a pé percorre-se a nesga de um caminho entre arrozais, qualquer coisa como 3 Km.
É uma povoação que vive dos tombos da guerra, já que alberga gente que veio de Malandim, Canturé, Gambana, Chicri e até Sansão, fundamentalmente fulas e mandingas (os manjacos e balantas vivem entre Madina e Belel)(2). Para quem vem do outro lado, ou seja, a partir de Canturé, há uma enorme rampa em rocha que vai ajudar a dissuadir as flagelações: disparar obuses é possível, mas só um milagre é que pode permitir a precisão da pontaria.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Vista aérea da tabanca de Bambadinca, tirada no sentido sul-norte. Em primeiro plano, a saída (lado leste) do aquartelamento, ligando à estrada (alcatroada) Bambadinca-Bafatá. Ao fundo, o Rio Geba Estreito. São visíveis as instalações do Pelotão de Intendência. Finete e a sua extensa bolanaha ficavam do outro aldo do rio.
Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) © Humberto Reis (2006)
Finete vive da agricultura desta vastíssima bolanha, que, não houvesse a guerra, podia ser cultivada até à Aldeia do Cuor. Chegou a ter um Pelotão de uma Companhia de Caçadores em 64, conforme referi a propósito da granada incendiária que vitimou Abudu Cassamá. Tem hoje para sua defesa o Pelotão de Milícias nº 102. Nos poucos contactos havidos, verifiquei haver pouca preparação e para a defesa das populações só existiam armas automáticas. O quartel está murado por duas fieiras de arame farpado não mantido, os abrigos estão podres e não há valas.
Levo comigo um plano de levantamento das necessidades e a firme intenção de preparar com Bassilo Soncó, o Comandante, e os 2º Sargentos Bacari Soncó e Fodé Dahaba, um calendário de preparação militar a negociar com Bambadinca (relembro que está para breve a chegada do BCAÇ 2852)(3). A primeira surpresa tive-a em Missirá. À porta da minha morança, vários soldados insistiam em ficar comigo em Finete: recordo Tcherno Suane, Ieró Baldé, Bubacar Baldé e Serifo Candé:
- Isto não é uma excursão nem uma expedição. Fiquem aqui nas obras dos abrigos e nos patrulhamentos a Mato de Cão.
Mas subitamente iluminou-se o espírito: e se levasse voluntários para passar a pente fino todo o terreno sólido entre Finete, Malandim e o Rio de Gambana? Dando o dito por não dito, acertei com Saiegh a formação de um grupo de dez voluntários. Com esta ajuda, a 23 de Agosto, descubro um trilho bem marcado que passava entre Finete e Canturé, atravessava o rio de Gambana e internava-se , acima de Chicri, em direcção de Sinchã Corubal. As suspeitas estavam confirmadas: ainda sem se saber a relação entre o PAIGC e os Nhabijões, na outra margem do Geba, havia visitas (periódicas ou irregulares) para Mero e Fa Balanta, ou coisa parecida.
A experiência virá confirmar que o PAIGC cambava armamento pesado entre Enxalé e Mato de Cão (ligação entre o Norte e o Sul da Guiné) e abastecia-se e promovia recrutamentos através de itinerários entre Missirá e Finete. Será um contra-terror que irá crescer a partir do episódio já conhecido como O Presépio de Chicri (4). Seguir-se-ão esperas junto ao Geba com a apreensão de alimentos, captura de civis e também mortes pela calada da noite quando não for possível distinguir o potencial do inimigo.
Sabia que a relação com Bassilo Soncó não seria das melhores. Este irmão do régulo Malã (que irá falecer nas prisões do PAIGC, salvo erro em 1976) era desdenhoso, pouco colaborante e incapaz de motivar as suas tropas. Para evitar confrontações, aliei-me aos 2º Sargentos, dois mandingas lúcidos e críticos da situação que se vivia nesta entrada do regulado do Cuor. Bambadinca cedeu-me materiais para os abrigos (cimento, chapas, bidões, serras), consegui uma metralhadora Breda e começou a preparação de seis apontadores de dilagrama. Fodé acompanhou-me a Bambadinca para estudar com a CCS um programa de carreira de tiro em Samba Silate, perto de Amedalai. E ficou acordado com o oficial de operações que este deixaria com o relatório para o seu sucessor a referência que este Pelotão de Milícias iria ser regularmente experimentado nos teatros das operações.
Percorrer a bolanha em direcção a Finete era um encanto ao fim da tarde quando a bola de fogo do rápido crepúsculo mergulha nos palmeirais. Logo que descobri este espectáculo, tudo fiz para ser seu espectador efectivo. Bacari ajudou-me a fazer um plano para criar segurança nos depósitos de granadas, cartuchos das G3 e das Mauser que eram usadas por todos os civis. Serifo Candé ofereceu-se ao terceiro dia em Finete para fazer pratos simples: atum com batata cozida e ovo ou o interminável bacalhaucozido.
E foi à volta da mesa, bebendo Fanta, que cimentei os laços com Bacari e Fodé (1). Bacari passará a acompanhar-me em quase todas as operações, ficará responsável por acompanhar os doentes ao posto médico de Bambadinca. No futuro, passará sempre alguns dias em Missirá ajudando-me nas obras, a desmatar na zona dos cajueiros , a fazer pontões entre Caranquecuenda e Cansonco, a patrulhar junto do rio Gambiel, que ele conhece desde a infância. Para meu profundo pesar, Fodé ficará brutalmente ferido na Op Anda Cá. É hoje 2º Sargento das Forças Armadas Portuguesas, reformado,tem um negócio de candongas (para quem já esqueceu, são os autocarros que viajam com seres humanos, porcos, galinhas e cereais) que não corre bem e visita-me regularmente. Está completamente cego, afectado por uma daquelas doenças que regressaram com a perda de médicos tropicais, a falta de higiene e prevenção, sobretudo nos rios Geba e Corubal.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > 1969 ou 1970 > Pessoal do 2º Grupo de Combate da CCAÇ 12 atravessando em coluna apeada a bolanha de Finete na margem direita do Rio Geba. No primeiro plano, para além de municiador da Metralhadora Ligeira HK 21, Mamadú Uri Colubali (salvo erro), vê-se o Furriel Miliciano Tony Levezinho, ao meio, ladeado pelo 1º Cabo Branco (à sua direita) e pelo 1º Cabo Alves (à sua esquerda) (LG).
Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.
A Finete que eu voltarei a visitar em 1990/1991 está irreconhecível com a nova ponte que vai para Bambadinca, com os novos aglomerados trazidos pela paz. A partir de Setembro de 1968, e por decisão minha, farei a guerra mais a partir de Missirá. Não escondo o meu remorso por não ter conseguido encontrar o reequilibrio desejável numa defesa consistente e que ajudasse a promover as populações de Finete. São coisas da inexperiência. Subsistirão as boas relações pessoais e uma recordação muito forte do fanado de raparigas que ali assisti e que deu para perceber que a força do Irã era tão ou mais poderosa que a doutrina de Maomé.
Comentário de L.G.:
Meu caro Mário, prometo tratar bem o nosso O'Neill, já que é um dos nossos poetas favoritos, meu e teu... Não conhecia a Ampola. Acabo de receber o exemplar que tiveste a gentileza de me mandar pelo correio. Vou ver se posso digitalizar e publicar algum dos seus poemas-colagens. Há as questões (delicadas) dos direitos de autor. Tenho que contactar a editora (Assírio & Alvim). Um abraço. Luís
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Notas de L.G.
(1) Vd. post de 16 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1081: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (11): Matar ou morrer, Saiegh ?
(2) Madina/Belel era uma zona sob controlo do PAIGC: vd. Vd. post de 27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)
(3) O BCAÇ 2852 ficou sedeado em Bambadinca (Sector L1) desde meados de 1968 a meados de 1970.
(4) Vd. post de 21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P888: Antologia (44): O presépio de Chicri (Beja Santos)
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