sábado, 23 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim


Guiné > Região do Oio > Guiné > Região do Oio > Mansaba > CART 2732 (Mansabá, 1970/72) > 3.º Pelotão, Secção do Fur Mil Vinhal (primeira fila, à direita, ladeado pelo seu amigo Ornelas). Embora mais velhos, os madeirenses estavam afectos ao COP 6 (Mansabá), e cruzaram-se em operações com os açorianos da CCAÇ 2753, a que pertencia o Alf Mil Vitor Junqueira.

Foto: © Carlos Vinhal (2006)


Post do Vitor Junqueira, ex-alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72). Hoje é médico e vive no Pombal. Infelizmente ainda não temos nenhuma foto deste nosso estimado camarada (1).


Camarada e amigo Luís Graça,

Num simpático email teu que recebi há dias, falavas da possibilidade de a minha Companhia (a açoriana CCAÇ 2753) e a do Carlos Vinhal (a madeirense CART 2732) (2), se terem cruzado algures na região de Farim. É verdade, só que eles atingiram a veterania muito primeiro do que nós, mas ainda fizemos algumas operações em conjunto com outras forças.

Como aqui há uns tempos, alguém do nosso grupo de amigos disse que não havia muita informação sobre esta zona e as unidades que por lá passaram, e querendo enviar um sinal de grande apreço e respeito àqueles que em qualquer ponto da Guiné, com ou sem armas, voluntariamente ou por imposição, cumpriram com o que na altura... teve de ser (!), a todos dedico este pedaço de prosa. Sem pretensões, mas em todo o caso na expectativa de conseguir reavivar as emoções fortes, porventura traumáticas para alguns, de uma guerra que nos foi imposta quando tínhamos vinte e poucos anos. Podemos hoje, assim o espero, vivenciá-las com a tranquilidade que a idade, a paz e o tempo passado nos concedem.

Peguei num pequeno relato que anteriormente tinha feito circular pela tertúlia (1), editei-o e acrescentei umas coisas. Procurei fazer coincidir datas, factos e até nomes com a realidade. Ficou um bocado longo... se calhar maçador. Podes passá-lo ao news group?

Conto poder estar no encontro da Ameira [dia 14 de Outubro próximo].

Um abraço,
Vitor Junqueira


Um dia no mato, na região de Farim

Texto dedicado a todos os camaradas tertulianos
com um abraço do
Vitor Junqueira

Guiné, Fevereiro de 1971.

Estamos quase lá...

A nossa Companhia era uma das Unidades que compunham o COP 6, cujo comando estava sediado em Mansabá. Fazia parte do Agrupamento T tendo-lhe sido atribuída a missão a seguinte missão - passo a transcrever dos registos oficiais (História da Unidade e Feitos e Factos da CCAÇ 2753):

Assegurar a protecção dos trabalhos da estrada Mansabá – Farim, em ordem a garantir um ritmo acelerado de construção e evitar as flagelações do IN sobre os meios técnicos empenhados. Na segurança dos trabalhos, as forças adoptam o dispositivo com as seguintes missões:

- Montam a segurança próxima dos trabalhos em ordem a garantir a interdição de itinerários de aproximação, eliminando a possibilidade do IN exercer acções de flagelação sobre a zona dos trabalhos, para o que monta emboscadas nas possíveis bases de fogos e executam patrulhamentos na ZA atribuída;

- Garantem a segurança imediata dos trabalhadores e equipamentos, detectando ou aniquilando quaisquer elementos IN infiltrados através do dispositivo próximo, para o que realiza patrulhamentos frequentes nas imediações da zona de trabalhos e ocupa posições sobre os eixos da mais possível infiltração;

- Realizam acções ofensivas sobre as áreas fulcrais do Morés, Canjaja e Biribão em ordem a anular a pressão do IN sobre o eixo Mansabá – Farim
.

Havia anos que nenhuma força militar portuguesa tivera condições para se movimentar naquele itinerário a partir de, e para norte de Mansabá até ao K3 [antiga Saliquinhedim].

A região estava agora a ser (re)conquistada diariamente, palmo a palmo, metro a metro. Por sua vez, o IN tentava a todo o custo impedir ou retardar o avanço dos trabalhos, pois aquela era uma via que, uma vez interditada às NT, se tornara estratégica para o desenvolvimento das suas acções. Nela desaguavam os corredores do Sitató e Lamel, através dos quais as forças do PAIGC dispunham de uma ligação fácil e rápida entre as suas bases junto à fronteira sul do Senegal e o coração da Guiné (Oio, Morés e região dos Sares). Movimentação de tropas e operações de natureza logística por parte do IN decorreram com toda a facilidade e segurança ao longo deste eixo numa base praticamente diária, durante anos.


O impressionante dispositivo das NT afecto à segurança da construção da estrada Mansabá-Farim

Até que alguém decidiu que aquela via tinha de ser recuperada. Para esse efeito é então criado um importante dispositivo, notável pelo significativo conjunto de meios envolvidos e, a meu ver, pelo enorme sucesso alcançado face aos objectivos atrás enunciados. Penso que é uma fase pouco conhecida da guerra da Guiné à qual nunca foi dado o devido relevo político-militar.

Constituído pelos Agrupamentos F1 e T do COP 6 (Comando Operacional Nº 6 – Mansabá) envolvia no seu conjunto forças das seguintes unidades:

CART 2732 (bém conhecida como a Companhia dos Madeirenses do nosso amigo e camarada Carlos Vinhal)(2)
CCP 121
CCP 122
Esq Rec AML 2641
27.ª CComds
CCAV 1/ 286.º Pel Milícia
1 Pel Art 8,8
1 Pel Art 14
1 Pel Art 10,5
3 Sec Mort 81
1 Sec Sapadores
1 Dest Engenharia
Pelotão de Milícia 253
57.º Pel Caç Nat
CCAÇ 2549 / Pel Milícia 282

E bem cá no fundo, mas apenas por modéstia (!), a Companhia dos Açorianos, CCAÇ 2753 da qual esta praça fazia parte ...


Baptismo de fogo em Bironque

A primeira aproximação que tivemos com a guerra a sério e àquilo que iria ser o nosso estilo de vida nos meses vindouros, ocorreu a partir de um ponto localizado no mapa entre Mansabá e o K3, onde antes da guerra existira uma pequena povoação, chamada Bironque.

Para o Destacamento Temporário do Bironque segue em 1 de Dezembro de 1970 um GC da CCAÇ 2753, tendo os restantes chegado a intervalos de uma semana ficando a operação concluída em 21 de Dezembro de 1970. Com a chegada da CCAÇ 2753, a CCAÇ 17 retirou!

Algum tempo antes, tinha havido uma espécie de motim com cenas de tiros entre os oficiais e sargentos daquela Companhia e os seus elementos nativos, de etnia maioritariamente manjaca. Estes, fartos de bordoada, recusaram-se a sair para o mato, alegando que a terem de levar porrada forte e feia, preferiam apanhá-la defendendo o seu Chão. O general Spínola resolveu o contencioso através de umas despromoções e da transferência da Companhia para Bula.

De Bissau, avançam os Barões da CCAÇ 2753 até então afecta ao COMBIS como força de reserva. Passam assim da noite para o dia de uma espécie de tropa VIP, bem alojada, bem alimentada, bem montada (vários jipes!) e com tarefas aligeiradas, ao grau mais elementar de tropa arre-macho.

Cheirando ainda a periquito, sem qualquer treino operacional, não tendo beneficiado de rodagem por sobreposição com tropas mais experientes, vêem-se entregues à bicharada, obrigados a aprender à sua custa os rudimentos da arte de safar o próprio coiro. Certo é que vieram a provar ser dignos do lema que orgulhosamente ostentavam nos crachats Noblessse Oblige!

Na minha memória preservo ainda em imagens technicolor as principais cenas do meu primeiro dia de mato.

Tínhamos partido de Bissau muito cedo em coluna militar, com armas e bagagens. Arribámos ao Bironque seriam par aí umas dez da manhã. Enquanto alguns dos recém chegados descarregavam para o meio do nada os caixotes com as batatas e cebolas por entre os quais se escapuliam ratazanas que, ninguém sabe como, tinham apanhado boleia, já outros desfechavam os dentes preparando-se para alinhar nas diversas tarefas para que estavam escalados. O cacimbo pesado da madrugada dera lugar a uma manhã linda, luminosa. O silêncio e a paisagem, magnífica, eram avassaladores!

Com um pé apoiado sobre um cunhete de munições e um púcaro de aço inox na mão de onde ia sorvendo uma mistela (nunca gramei leite em pó nem café de cevada), contemplava aquele paraíso quando de repente...

Parecia o fim do mundo! Não vou poupar em adjectivos. Grandioso, empolgante e... aterrador, nem em imaginação conseguiria conjecturar um tal espectáculo. À distância de um quilómetro ou dois do acampamento, irrompe um fogachal tão intenso que até os passarinhos das redondezas levantaram voo procurando refúgio noutras paragens. O ruído das explosões acompanhado pelo matraquear das armas ligeiras e aqueles balões de fumo negro no ar, ofereceram-me o primeiro vislumbre, uma espécie de iniciação visual e auditiva, música e letra de um fado a que teria de me habituar! Naquela manhã a rifa premiada tinha calhado a um GComb dos madeirenses.

Por aqui, as escaramuças eram frequentes. Durante o dia, emboscadas às forças empenhadas na segurança próxima e imediata e flagelações sobre a frente de trabalhos, com baixas entre operários e danos nas máquinas, após o pôr-do-sol, invariavelmente pela hora do jantar, era preciso estar atento ao som inconfundível das saídas dos CSR, MORT 82 e RPG que, vindo do interior da mata adjacente, anunciava uma saraivada de balas e estilhaços a rasgar o céu por cima do improvisado aquartelamento.


Transferência para Madina Fula

Acompanhando a progressão dos trabalhos, a Companhia transfere-se com toda a traquitana em 13 de Janeiro de 1971 para um novo Destacamento mais a norte, na zona de Madina Fula, a uns 8 Km de Farim. Nestes Destacamentos Temporários não existia qualquer construção ou barraca, apenas algumas tendas de lona, insuportáveis durante o dia devido ao calor. À noite não ofereciam a quem estivesse no seu interior qualquer protecção contra a chuva de aço, pelo que toda a gente preferia cochilar nos abrigos. Tratava-se em rigor de locais de pernoita que as poderosas máquinas Caterpillar ao serviço da empresa construtora, edificavam do seguinte modo:

Sobre uma das faixas desmatadas com cerca de 200 metros de largura que se estendiam de cada lado da estrada em construção (para evitar o ataque próximo às nossas colunas), erguiam quatro barreiras de terra com dois metros de altura de maneira a formar um quadrado com mais ou menos 50 metros de lado. No topo destas barreiras, escavavam-se então os espaldões para as armas pesadas, trincheiras e simples covas que abrigavam um ou dois homens. Era a partir deste arremedo de fortim que se montava a vigilância e defesa, tanto do pessoal como das máquinas, que no final do dia de trabalho recolhiam ao seu interior. Como vizinhança, muita força de mosquitos e pulga matacanha!

Logo nos primeiros passeios pelas redondezas, tivemos a visão clara do inferno que teria sido a vida dos camaradas que nos precederam nos primeiros anos da guerra. Numa região enxameada por bases do PAIGC localizadas nas regiões de, e volto a citar dos registos: Cã Quebo, Santambato, Cambajú, Iracunda, Mansodé, Cubonje, Canjaja, Biribão, Ionfarim, Uália, Mansomine, Binta, Queré, Banjara e Manhau, qualquer movimento nosso era acompanhado por acção semelhante por parte do IN, tornando-se o contacto inevitável.

Em alguns pontos, nomeadamente ao longo do que em melhores dias tinham sido as bermas e valetas desta excelente rodovia que ligava Bissau ao Senegal, agora reduzida à condição de simples trilho, as cápsulas de munições de armas ligeiras apanhavam-se aos milhares, nalguns sítios literalmente à pazada. No entanto, o sortido dos vestígios abrangia um pouco de tudo, desde velhas minas anti-pessoal com a tampa de madeira carcomida pela formiga mas ainda capazes de nos pregar uns sustos, até granadas anti-tanque, algumas intactas, bojudas, matulonas que me disseram tratar-se de Panzerovkas (?). Havia armadilhas na estrada e nas zonas de mato contíguas.

Por ali confiscámos também em operações subsequentes, variadas peças do arsenal do IN que incluía itens tão antigos e obsoletos como canhangulos, até novíssimas granadas de RPG 2 e 7 e respectivos lançadores, Mort 82, munições de Browning 20mm com tripé (utilizadas então como anti-aéreas), muitas pistolas de várias proveniências, PPSH, Degtariev e kalashnikov, Esping. M 44 americanas (!). E ainda, Met Pesadas Breda e Dreyses , por certo gamadas ao glorioso Exército Português. Também fizeram parte deste catálogo um par de lindíssimas espingardas Mauser, com ferragens cromadas e, gravado sobre as câmaras, o selo da República Portuguesa. A quem teriam pertencido? Quem terá ficado com elas?


Um dia mais perto ...

O normal dia de trabalho começa bem cedo para o pessoal engajado nas operações de segurança próxima, e não só! Hoje, dia 2 de Fevereiro de 1971, ainda não eram quatro da matina e já uma das sentinelas tinha obrigado o russo (cozinheiro) e o básico, seu ajudante, a porem-se de pé a fim de preparar o pequeno almoço e a merenda para o 3.º Grupo de Combate que, por imperativo de escala, vão emboscar em Farim 2 C6 97. Os restantes, guarnição e pessoal da segurança imediata comem mais tarde, por volta das seis e meia ou sete horas. Junto à banca que serve de refeitório, “a parelha dos tachos” aguarda impaciente. Querem voltar para o choco!

Os homens vão assomando em pequenos grupos para o dejejum. Apresentam-se praticamente em estado de prontidão isto é, devidamente equipados. Emoldurando-lhes os cachaços, cachos de granadas de mort 60 e grinaldas de munições de bazuca 6cm, 10.7, Instalazzas, dilagramas e outro material de efeito pirotécnico variado. GMD penduradas em tudo o que era grampo ou presilha e, naturalmente, quilómetros de fitas para as HK. Todo o material se encontra limpo e bem cuidado. Com as canhotas então, têm autênticos desvelos amorosos tratando-as tão bem ou melhor do que se fossem namoradas! Suspensos do cinturão, um ou dois cantis de água e todos os carregadores de G3, próprios e alheios, a que puderam deitar mão. Sem contar com aquele sistema inventado pelo Zé soldado em momentos de aperto, que consiste em embutir um carregador na arma, ficando outro amarrado a este, preso em cruz com fita adesiva.

E não se disse ataviados, como impõe o aprumo e a gíria militar. Porque fardas são coisa que já não existe faz tempo. Mergulhos forçados no lodo das bolanhas, lavagens frequentes com pouco sabão e muita paulada aliadas às carícias de gravetos e espinhos do mato, decretaram o seu desgaste precoce. Foram à vida! Por esta altura, vão-se combinando os restos dos camuflados com peças n.º 1, 2 e 3. Botas de cabedal bambas com várias comissões no couro, umas já sem rasto, outras com buracos ventiladores nas biqueiras, alternam com as de lona, a dar as últimas. Há pessoal a sair para o mato levando nos pés uma espécie de chanatos adquiridos pelos próprios. É a crise a instalar-se!

Um quarto de casqueiro nas unhas, besuntado com margarina rançosa ou em dia de sorte com um cubo de marmelada em cima, um púcaro de água chilra tingida de café engolido de um trago e está a andar! Num bolso, arranja-se espaço para mais um quarto de pão com duas belicas* de cachorro nas entranhas. Um simples pacote de leite achocolatado ou um daqueles tubos de leite condensado Martins e Rebelo das rações de combate, fazem as delícias da maralha. Verdadeiros mimos para esta tropa arre-macho, generosa e humilde que sem reclamações ou reivindicações se prepara para enfrentar mais um dia, com porrada garantida.

Pequeno almoço no bucho e ala que se faz tarde. O dispositivo da segurança próxima tem que estar montado, com a força na respectiva posição, ainda antes dos trabalhadores da reconstrução da estrada voltarem o serviço.

Para aquele tipo de acção já todos conhecem e ocupam os respectivos lugares na bicha de pirilau. Uma piada em código, um riso abafado e as últimas recomendações dos furriéis em voz baixa, misturam-se com o tinir metálico do equipamento, criando aquela atmosfera pretensamente descontraída que precede todas as saídas. São rituais que só os que foram agraciados com uma comissão no ultramar podem entender!

A fila está formada quando aparece o alferes, qual ouriço caixeiro carregado de bugalhos: Uzi à tiracolo, rádio ao pescoço, bolsos atafulhados com bússola, mapas e cartas diversas, códigos e frequências de comunicações e, pelo sim pelo não, dois ou três carregadores suplementares para a sua metralheta. No canto de um bolso, coabitando pacificamente com ao lanche, um par de GMD, não vá o diabo tecê-las! Dedicou os últimos minutos a olhar para os papéis sob uma lâmpada que parecia sofrer de sezões palúdicas, tantas eram as tremuras, tentando adivinhar de que lado é que viria a bordoada:
- Olhos e ouvidos bem abertos, armas em posição e distâncias mantidas. E muito cuidado com o sítio onde põem as patas. A partir de agora, tudo caladinho! - São as suas últimas recomendações enquanto se dirige para a cabeça da coluna. E manda "seguir a marinha".

Deixámos Madina Fula ainda o nosso gerador ronronava placidamente naquele timbre surdo e tranquilizador que nos acompanharia durante as primeiras centenas de metros. É noite cerrada. O pessoal caminha em silêncio, paralelamente ao trilho. Comunicações, só por gestos ou em surdina e até o ruído de fundo dos ERET e AVP em AS é reduzido ao mínimo.

Este é um santo pelotão ! Dele fazem parte nada menos que dois meninos Jesus, por alcunha: O básico Aguiar, açoriano da Praia da Vitória, que é meio tótó. E o furriel Tavares, de Freixo de Espada-à-Cinta. Reina na segunda secção. É afinado da cabeça mas a sua pacholice granjeou-lhe igual cognome! Há ainda um Sto. António, virtuoso da HK.

Cunha, o pica, abre caminho percutindo o solo com a vareta de aço. Apesar de analfabeto, tem um dom extraordinário para a orientação no mato. Basta-lhe memorizar um certo trecho da carta cuja simbologia se habituou a reconhecer por comparação com aquilo que os seus olhos observam no terreno e, aí vai ele em piloto automático, com a macacada toda atrás. Direitinho ao objectivo, parece teleguiado! Auxiliado pelas diferentes tonalidades do som emitido pelo seu sofisticado aparelho, detecta com segurança todo o tipo de perigo superficial ou subterrâneo. Sabe por intuição quais são os caminhos com menos obstáculos e mais seguros. Caminho sondado pelo Cunha é caminho seguro, à confiança!

A seguir, vem o Santos, Stº António para os amigos com a sua HK, depois o alfero, o Assis da bazuca e outra HK, a do Cabecinha. Segue-se o Dutra grande do Morteirete, que dispara em andamento apoiando-o no bíceps. Moniz, Vicente, Melo e Reis são especialistas em Dilagramas. Na secção central, além do Raposo portador de mais uma HK, alinham os homens da G3: Azevedo, Amorim, Bettencourt, Martins, Aguiar e Dutra pequeno. Cartucho propulsor na câmara e, mesmo até estes, ao primeiro disparo expedem um ananás. O resto da cambada vem lá para trás sob orientação do outro Furriel, também ele Tavares de nome, mas açoriano de nascença. Manobram um Mort 60, duas HK, um LGF 10.7 e umas tantas G3.

Avançamos mastigando o cacimbo pesado e grosso da manhã que se agarra à pele, tornando-a viscosa e fria como a barriga de um sapo. Envolve-nos o cheiro a capim queimado e a fuligem negra, impregnando as roupas e as narinas. É natural, pois estamos em plena época das queimadas e as NT vão ateando fogos por onde passam, procurando limpar áreas tão vastas quanto possível por forma a evitar que o IN utilize a vegetação como máscara para possíveis emboscadas.

Lutando com arbustos e lianas que teimam em enrolar-se aos corpos e equipamento como se quisessem impedir-nos de progredir, anima-nos a alma saber que em breve estaremos de volta à civilização. O K3 está praticamente à vista! Falta apenas acrescentar uma meia dúzia de quilómetros àquela serpente de asfalto que protegemos e vemos crescer todos os dias. Trata-se de uma tabanca situada a cerca de três quilómetros da margem esquerda do Cacheu, muito próximo do ponto de origem de um troço de estrada que conduz ao Olossato, capital do Oio. O nome verdadeiro, aquele que consta dos mapas é Saliquinhédim. No entanto, a população local assumiu o novo topónimo aparentando desconhecer ou ter esquecido completamente o original.

Atingir o K3, representa o final de uma campanha até agora bem sucedida do ponto de vista militar, apesar de particularmente desgastante, não só pelas flagelações e contactos quase diários, mas sobretudo pela dureza das condições de vida a que todos temos estado sujeitos. Significa também que em breve, a 27.ª de Comandos vai ser despejada pela CCaç 2753, ficando esta na situação de força de quadrícula com direito a um verdadeiro quartel. Com dormitórios, instalações sanitárias, secretaria, messes, cozinha ... tudo!

E sobretudo, vamos avistar gajas! Sim, tem de haver por lá mulheres, esses seres intangíveis, de que perdemos o rasto há meses e de cuja existência já começamos a duvidar! Sejam elas brancas, pretas ou verdianinhas. De preferência bajudas, mas na sua falta que avancem as mulheres grandes. Mobilizemo-las se for necessário, porque a rapaziada não aguenta mais esta lei seca tão prolongada ...

Mortos de cansaço, com o ornamento do escalpe a desaparecer a olhos vistos devido ao stress e deficiente alimentação, exauridos pela punheta, este devaneio com putas ocupa-nos o pensamento por fugazes instantes, nesta madrugada particularmente enervante. Aqui e além, a silhueta fantasmagórica de um baga-baga chama-nos à realidade. Escondido pelo capim da altura de um homem, levanta algumas suspeitas... e muitos receios! Os restos de luar reflectido nos olhos de uma família de babuínos produzem um efeito chamado cagaço. Não se tratando um bando de almas penadas, (os açorianos são muito supersticiosos!), só poderá ser o IN a espiar-nos com flash-lights para mais certeiramente nos alvejar, comentam entre si!

Na floresta, o amanhecer é pleno de actividade. O pio de uma ave ou o restolhar de um bicharoco qualquer podem tornar-se inquietantes sinais de alarme. Por vezes, é o encontro fortuito com um carreiro de formigas de grande cabeça negra e tenazes monstruosas que obriga a passar a palavra e... a passar ao lado! Incomodadas, têm o péssimo hábito de trepar silenciosamente pelas pernas acima. Fazem-se anunciar quando já estão ferradas na pele dos tomates, de onde só saem arrancadas a bico de navalha depois de decapitadas. Há umas semanas, um pelotão da Companhia passou por essa excruciante experiência durante uma operação nocturna, que terminou antes de ter começado. Menos de meia hora após a largada, ei-los que regressam num tropel, aos pinotes e completamente nus quais isabelinhas (**), berrando que nem cabritos desmamados, agarrados às respectivas partes. Que espectáculo soberbo, hilariante e inesquecível!

Amanheceu. Ao longe, no silêncio desta floresta tão bela só comparável à mata do Cantanhês, já se ouve o roncar da maquinaria e o estrondo provocado pela queda das árvores abatidas. A tensão vai aumentando, os nervos estão numa lástima. Parafraseando autor desconhecido, cada passada cada cagada! Os olhos já doem de tanto perscrutarem o inimigo através da folhagem. Todo o cuidado é pouco. O silêncio torna-se esmagador, nada bole. É a bonança antes da tempestade e, todos sabem por experiência e por instinto que vem aí bernarda da grossa. Até já cheira a turra!

Da frente vem a ordem preparar para instalar. Mil olhos lançam-se então numa busca apressada e ansiosa de qualquer acidente do terreno que possa oferecer alguma protecção, por mínima que seja. A cratera deixada pela raiz de uma palmeira caída, o tronco de uma árvore corpulenta ou o castelo de uma colónia de térmitas, tudo serve para abrigar um pouco o canastro. Mas cuidado antes de mandar com ele para o chão! É preciso inspeccionar muito bem o local, não vá estar por ali alguma artimanha escondida. É um pequeno alívio, pois uma vez instalados o conforto é outro. Se o IN tiver o desplante de se aproximar da nossa posição, somos nós quem terá a iniciativa. No entanto, o mais provável é que sejamos alvejados com umas morteiradas de 82mm a partir de uma bolanha situada a cerca de trezentos metros à nossa esquerda. E a seguir emboscados, quando fizermos a perseguição.

Esta é a táctica habitual, mas ultimamente têm vindo ao trilho com frequência. E desfaçatez. Mandam-nos com umas roquetadas para cima e desaparecem como sombras, disparando furiosamente as Kalash apoiadas sobre o ombro, mas viradas para a rectaguarda sempre em passo de corrida.

Desta vez não houve tempo! Os bandidos ou seguiram os nossos movimentos, ou conseguiram adivinhar as nossas intenções quanto ao local onde iríamos abancar. O facto é que chegaram primeiro do que nós. Ainda não tínhamos amochado e já o apocalipse se abatia em cima das nossas cabeças. Nos primeiros instantes nem deu para perceber de onde é que chovia tanta metralha. Um número indeterminado de roquetes estoura à nossa volta e nas copas das árvores, semeando farpas de aço que cortam o ar assobiando em todas as direcções. No ar há uma poeirada enorme e uma confusão de galhos partidos. Pequenas bolas de fumo negro pairam sobre a nossa vertical. Cheira a enxofre e a pólvora queimada, o cheiro da guerra. As kalashnikov, costureirinhas, Degtaryev e outro instrumental a que chamam ligeiro entra em acção como uma orquestra, produzindo um matraquear muito rápido mas sem a alma das nossas G3. Estalidos secos junto aos ouvidos indicam-nos que uma chuva de balas nos procura atingir sem piedade. A malta reage automaticamente. Numa fracção de segundo as metralhadoras iniciam uma sequência de tan, tan tans. É uma canção em tom mais grave e ritmo lento comparado com os réc-téc-téc que vêm do outro lado. Mas reconfortante. A equipa da esterilização (dilagramas) não pode fazer nada, o In está demasiado perto. Poderíamos atingir-nos a nós próprios. Os morteiros e LGF idem. Só há uma saída: pessoal em linha, curvado para a frente, armas automáticas à anca com patilha de segurança em posição de rajada, avançamos em lanços sucessivos de cinco a dez metros galgando o mato. Passam dois, três minutos no máximo. Subitamente, o silêncio.

A guerra de hoje está semi decidida, mas a coisa não pode ficar assim! Os gajos têm que levar para tabaco. Continuamos a avançar até alcançar uma zona com tecto livre que batemos generosamente num ângulo de 180 graus, antes de iniciar a perseguição. Atingimos a orla da bolanha. Pelo caminho constatámos a existência de alguns espojeiros. Confirma-se a suspeita de que afinal já estavam à nossa espera. Terão passado lá a noite? Recolhemos também algum material que abandonaram na precipitação da retirada.

Do lado oposto, longe mas ainda à distância de tiro efectivo avistamos vários elementos do IN em fila. Terão sido estes os tipos que nos atacaram? Serão carregadores? Não vale a pena persegui-los. Não conseguiríamos alcançá-los e não é essa a nossa missão. Além disso, corremos o risco de ser atingidos pela nossa própria artilharia de 14cm ou pelo fogo aéreo, ad hoc ou a pedido dos nossos camaradas que estão a fazer a segurança afastada. Estes já levam o que contar, deixá-los ir! Mas não sem antes levarem mais umas morteiradas nos cornos para acelerar o passo.

No Destacamento é o alvoroço. Ouviram o estardalhaço e querem saber o que é que se passa, se temos feridos, se fizemos baixas... Sim temos um ferido que apanhou com um estilhaço na peida, coisa sem importância de que o maqueiro Melo se encarregará. Não é necessária a evacuação, há-de regressar pelo seu pé.

Ainda não são dez horas e já temos o dia ganho! Hoje, em princípio, não nos vão chatear mais. Agora há apenas que cumprir horário. Voltamos à posição que nos foi destinada e instalamos. Daqui a nada vamos almoçar porque o raio da sarrafusca abriu-nos o apetite. Já se fala em voz alta comentando toda a acção com uma espécie de nervoso miudinho residual. Alguns aproveitam o momento de descontracção e vão aliviar-se atrás de qualquer coisa. É que a vinda, nem houve tempo para fazer o habitual alto para cagar.

Quando forem umas quatro da tarde havemos de pôr-nos a caminho. Convém que o regresso se faça ainda com luz do dia. À chegada, teremos um relaxante banho debaixo de um bidão instalado sobre um palanque constituído por quatro cibos ao alto, com água aquecida pelo sol. A seguir, o jantar. Prato à escolha: batata cozida com cavala de conserva. Amanhã também poderemos escolher dobrada seca, demolhada, com arroz e feijão. No dia seguinte voltaremos à cavalinha! Se tudo correr bem, talvez a hora do jantar decorra sem sobressalto. O pessoal, sempre em pequenos grupos, recebe a comida nas marmitas e vai comer para os abrigos onde fica alerta até tarde. Depois, serão umas horas de sono entremeado de saudades e pesadelos, que apesar do cansaço nunca será profundo nem repousante. Amanhã tudo recomeçará de novo. Mas estaremos um dia mais perto!

Volto aos registos da Companhia:

Fascículo IV – Período de 01 FEV71 a 28 FEV71.

“Em 02FEV na região de Farim 2 C6 97, um grupo IN com efectivo de 15 a 20 elementos, emboscou à distância de 5 a 6 metros com armas ligeiras e LGF um grupo da CCaç que progredia para emboscar. As NT sofreram um ferido ligeiro. Feita a batida foi encontrada uma fita de munições de metralhadora ligeira”.
____________

(*) Equivalente em açorianês para piça, pixota, pila, etç.

(**) Idem, para mariazinha, mariconço...

Notas de L.G.

(1) Vd. postes da série de

18 de Setembro de 2006 Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)

Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

(2) Vd. post de 25 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLI: A madeirense CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)

1 comentário:

ildeberto medeiros disse...

Pois fiz parte desta companhia 2753 foi cabo conductor o tempo que faziamos seguranca a Estrada manssaba farim muitas foram as vezes que levei o alferes junqueira eo pelotao no hunimogo ou na berliete pois sempre foi um homemdestemido