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Um exemplar autografado do livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e ÁguiA Pura (Lisboa: Guerra e Paz. 2007. 220 pp)... O autor, António Graça de Abreu , foi Alf Mil, CAOP 1,Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar (1972/74). A dedicatória do nosso amigo e camarada reza assim:
"Ao Luís Graça, camarada, amigo deste nosso tempo por terras da Guiné, ontem, hoje, sempre, a bater ao compasso dos nossos delapidados e ternos e jovens coraçõs, com um forte abraço do António Graça de Abreu. Estoril, Março de 2007"
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Extracto das pp. 174-16 (com a devida vénia...)
Cufar, 24 de Dezembro de 1973
Tempo de Natal. Paz na terra aos homens de boa vontade, na Guiné e na guerra.
Fui a Cadique com o meu coronel [Joaquim Curado Leitão, comandante do CAOP1], de sintex, dez quilómetros descendo o rio Cumbijã.
Os pobres de Cadique, que tiveram dois mortos na terça-feira passada, estão a entrar na engrenagem da loucura. Já houve soldados que se recusaram a sair para o mato. Outros, ou os mesmos, na confusão de uma flagelação, atiraram com uma granada de mão ao tenente-coronel comandante do batalhão (**) que não o atingiu por pura sorte. O tenente-coronel não tem culpa do sofrimento e da morte dos seus homens, limita-se a cumprir ordens, não pode pegar no batalhão e marchar sobre Bissau, ou sobre Lisboa. De resto, entre os muitos oficiais do QP que tenho conhecido, este tenente-coronel é um dos homens mais humanos e sensíveis ao sofrimento dos seus subordinados.
A zona de Cadique é terrível, os guerrilheiros deixaram construir a estrada para Jemberém e agora passam o tempo a dinamitá-la e a emboscar as NT. Sabotaram os sete pontões do trajecto, abriram enormes brechas no asfalto, em vários sítios. Para arranjar a estrada, a tropa de Cadique avança com camionetas carregadas de terra e troncos de árvore. Depois dos primeiros dois quilómetros, começam a ser flagelados. Quem quer caminhar para a morte?
Os dias estão tão bonitos! Frescos, serenos, com pouca humidade, manhãs de sol que abrem os braços para os homens, o fumo a sair das tabancas e a espalhar-se sobre os campos, como em Portugal. A natureza não tem culpa da insensatez, do desvairo da espécie humana.
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Graças ao Natal, umas tantas iguarias rechearam as paredes dos nossos estômagos. Houve bacalhau do bom, frango assado, peru para toda a gente, presunto, bolo-rei, whisky e espumante à discrição, só para oficiais. Fez-se festa, fados, anedotas, bebedeiras a enganar a miséria do nosso dia a dia.
Hoje, 26 de Dezembro, acabou o Natal e, ao almoço, regressamos às cavalas congeladas com batata cozida e, ao jantar, ao fiambre com arroz.
Isto não tem importância, importante é a ofensiva contra os guerrilheiros do PAIGC desencadeada na nossa região com o bonito nome de Estrela Telúrica. Acho que nunca ouvi tanta porrada, tantos rebentamentos, nunca Vi tantos mortos e feridos num tão curto espaço de tempo. E a tragédia vai continuar, a Estrela Telúrica prolongar-se-á por mais uma semana.
Tudo começou em grande, com três companhias de Comandos Africanos, mais os meus amigos da 38º fuzileiros e a tropa de Cadique a avançarem sobre o Cantanhez. O pessoal de Cadique começou logo a levar porrada, um morto, cinco feridos, um deles alferes, com certa gravidade.
Ontem de manhã, dia de Natal, foi a 38ª de Comandos a embrulhar, seis feridos graves, entre eles os meus amigos alferes Domingos e Almeida, hoje foram os Comandos Africanos comandados pelo meu conhecido alferes Marcelino da Mata (***) com dois mortos e quinze feridos. Chegaram com um aspecto deplorável, exaustos, enlameados, cobertos de suor e sangue. Amanhã os mortos e feridos serão talvez os fuzileiros...
No dia seguinte, outra vez Comandos ou quaisquer outros homens lançados para as labaredas da guerra. O IN, confirmados pelas NT, só contou seis mortos, mas é possível que tenha morrido muito mais gente, os Fiats a bombardear e os helicanhões a metralhar não têm tido descanso.
Na pista de Cufar regista-se um movimento de causar calafrios. Hoje temos cá dez helicópteros, dois pequenos bombardeiros T-6, três DOs, dois Nordatlas e o Dakota. A aviação está a voar quase como nos velhos tempos. Os hélis saem daqui numa formação de oito aparelhos, cada um com um grupo constituído por cinco ou seis homens, largam a tropa especial directamente no mato, se necessário os helicanhões dão a protecção necessária disparando sobre as florestas onde se escondem os guerrilheiros, depois regressam a Cufar e ficam aqui à espera que a operação se desenrole. Se há contacto com o IN e se existem feridos, os helicópteros voltam para as evacuações e ao entardecer vão buscar os grupos de combate novamente ao mato.
Ontem, alguns guerrilheiros tentaram alvejar um héli com morteiros, à distância, o que nunca costuma dar resultado.
Sem a aviação este tipo de operações era impossível. Durante estes dias, os pilotos dormem em Cufar e andam relativamente confiantes, há muito tempo que não têm amargos de boca. Os mísseis terra-ar do IN devem estar gripados porque senão, apesar dos cuidados com que se continua a voar, seria muito fácil acertar numa aeronave, com tanto movimento de aviões e hélis pelos céus do sul da Guiné.
Cufar fica a uns quinze, vinte quilómetros da zona onde as operações se desenrolam. Todos os dias, às vezes durante horas seguidas, ouvimos os rebentamentos e os tiros dos embrulhanços, das flagelações. E impressionante o potencial de fogo de parte a parte. Os guerrilheiros montam também emboscadas nos trilhos à entrada das matas onde se situam as suas aldeias. Aí, as NT começam a levar e a dar porrada, e não têm conseguido entrar nas povoações controladas pelo IN.
Natal, sul da Guiné, ano de 1973, operação Estrela Telúrica. Tudo menos paz na terra aos homens de boa vontade.
________
Notas de L.G.:
(*) Vd. último poste da série > 18 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3550: O meu Natal no Mato (16): Os meus Natais na Guiné (Luís Dias)
(**) Vd. poste de 9 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2167: Breve história da CCAÇ 4540 (Bigene, Cadique e Nhacra, 1972/74) (Vasco Ferreira)
(...) "No dia 22 de Julho de 1973 chegou a Cadique a 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4514/72 que veio render a CCAÇ 4540, Cadique a partir desta altura ficou a constituir Sede de Batalhão, 'O Batalhão do Cantanhez'.
"Foi a 17 de Agosto de 1973 que a CCAÇ 4540/72 disse adeus a Cadique no meio de copiosa chuva, que não quis colaborar na despedida, embarcando a bordo da LDG 'Montante', rumo a Bissau.
"A nossa homenagem aos Gr COMB da CCP 121, que permitiram aos nossos militares a observação do modo de comportamento e da preparação com que a tropa especial pára-quedista foi dotada para este tipo de operações. Muito se aprendeu no convívio estabelecido dentro e fora do Aquartelamento entre os militares de ambas Companhias" (...).
(***) Nota do autor, António Graça de Abreu:
"Sobre o acidentado percurso do alferes Marcelino da Mata, ver a narração pessoal da sua participação nesta guerra em Rui Rodrigues, coord., Os Últimos Guerreiros do Império, Editora Erasmos, Amadora, 1995, pp. 195-213".
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