1. Mensagem do nosso camarada Vasco da Gama, ex-Cap Mil da CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74, com data de 10 de Dezembro de 2008, com mais um pouco da história de Os Tigres
Natal de 1972 em Aldeia Formosa
Terminada a instrução, eis que os TIGRES organizados em coluna auto se dirigem para o porto de Bissau, onde embarcados que foram numa LDG, seguem com destino a Aldeia Formosa (Quebo) com paragem obrigatória e óbvio desembarque em Buba.
Chegámos a Buba por volta das sete horas da manhã do dia 19 de Novembro de 1972. Curiosas as modificações na fisionomia das pessoas ao longo do percurso; o ar chocalheiro dos mais baldas e despreocupados começou a desaparecer à medida que nos aproximávamos do nosso destino e verifiquei que sobre mim recaíam cada vez mais olhares. Tanto eu como todos os restantes oficiais e sargentos fizemos a viagem juntamente com os soldados e alguns civis nativos no convés da lancha, apesar do convite amável do comandante da embarcação para irmos de camarote. Penso que aceitei, por educação, um café bebido no camarote e aproveitei para colher algumas, poucas, informações sobre Aldeia Formosa.
Desembarcados em Buba, organizámos a Companhia e, pelas onze horas, ao som afinado do coro da malta de Buba que cantava a plenos pulmões “periquito vai pró mato oh, lé ,lé, lé que a velhice vai pra Bissau, oh la, ré lé, lé… partimos em coluna auto para Aldeia Formosa onde chegámos por volta das duas e meia.
Recebidos pelo BCaç 3852, mais uma vez ao som do estribilho anterior, mas aqui entoado com muito mais força e durante muito mais tempo, lá foram os Tigres soldados para uma caserna, os Tigres sargentos para outras instalações e os cinco oficiais para uma camarata com cinco camas separadas por um pano de tenda. Manifestei, ainda a medo, a estranheza por esta separação, mas a força dos galões fez-me calar, limitando-me neste primeiro embate a resmungar… Se me recordar, e se chegar à história do Cumbijã, o segundo embate numa questão semelhante já correu a meu favor e aí perdeu a força bruta dos galões…
A Aldeia Formosa militar era um quartel enorme, onde para além de um Batalhão, o BCaç 3852, se aquartelava uma Companhia composta por elementos nativos da Guiné, a CCaç 18, comandada por oficiais e sargentos brancos, com quem a nossa CCav 8351 começou a aprender os rudimentos do saber fazer, pois foi em conjugação com eles que fizemos os primeiros patrulhamentos e as primeiras emboscadas nocturnas, a protecção à estrada que pouco havia passado Mampatá, bem como a segurança às colunas auto entre Aldeia e Buba.
Por esta altura duas coisas me intrigavam: o porquê de uns barcos (dois ou três) que tinham vindo desde Bissau e que a fama de navegador que o meu nome encerra era manifestamente insuficiente para os pôr a navegar, pois faltava-lhes a água para serem operacionais e a falta de informação sobre o destino final da Companhia.
Aldeia Formosa, tinha a certeza de que não era, pois os militares já se atropelavam uns aos outros. Instado quem de direito, a resposta era sempre a mesma: a CCav 8351 não tem uma Zona de Acção definida, pois é uma Companhia às ordens do Comando Chefe.
Procurava no mapa locais para onde os barcos pudessem arrastar os Tigres, mas chegava sempre à mesma conclusão: não pode ser! Julgo não ter comentado esta preocupação com ninguém, nem mesmo com o meu camarada Alferes Florivaldo dos Santos Abundâncio, único oficial, dos originais, que ficou na Companhia até ao final da comissão. Meu bom amigo, meu braço direito e com um coração e uma dedicação grandes como o seu nome parece querer indicar. Um abraço amigo e respeitoso te envio. Ser-te-á apenas entregue quando visitares a Tabanca.
Apenas um parênteses para dizer que o turnover entre os alferes também era grande, mas os meus três alferes que não vieram com a companhia, não o fizeram, por motivos diferentes: um, foi destacado para a Chamarra, outro foi ferido em combate e evacuado para Portugal e o outro, foi transferido para o Quartel General/Com-Chefe em Bissau…
Aldeia Formosa era uma fortaleza imensa que para além de um número enorme de soldados tinha uma pista de aviação e estava, em termos de armamento bem equipada, com morteiros destes e daqueles, obuses grandes e menos grandes, eu sei lá, uma panóplia de metralhadoras e outras armas que um ignorante como eu não sabe, nem lhe interessa identificar. A população era estimada em cerca de quatro mil e quinhentas almas e vivia agrupada fora do aquartelamento, sendo a sua esmagadora maioria da etnia Fula.
As companhias aí aquarteladas tinham óptimas instalações, os capitães com quartos individuais, uma belíssima messe de oficiais, outra de sargentos, casernas amplas para os soldados, cantinas bem equipadas onde abundava a bela cerveja fresca, o bom whisky. Mesmo de frente ao aquartelamento uma bela horta onde se cultivavam alfaces, tomates, bananas, ananases, mangas e sobretudo papaias que eram o petisco preferido do sr. Comandante que diariamente as consumia com uma, como dizer, sofreguidão exagerada, que lhe provocava um escorrimento do sumo do fruto pelos cantos da boca, mas que ele não deixava escapar, pois o seu treino permitia-lhe sorver o que escorria com tal perícia e ruído que provocava risos disfarçados nos oficiais assistentes…
Recordo-me que o sr. Comandante adorava também cebola, que devorava antes das refeições e que lhe provocavam arrotos de tal calibre que o desgraçado que tivesse a infelicidade de se sentar frente a ele, aliás o último lugar a ser ocupado, tinha de se desviar para não ser atingido por qualquer estilhaço de cebola ou pelo perfume forte e picante emanado pelo bolbo carnudo.
Era, no fundo, bom homem e tinha como petit nom Baga-Baga, dada a sua volumetria, ansiando pela reforma pois era a última comissão que fazia, sendo que os problemas da guerra eram mais da conta de um major de operações e dos oficiais mais novos.
Chegados a 19 de Novembro a Aldeia Formosa, a CCav 8351 tem o seu baptismo de fogo no dia 23 do mesmo mês, portanto com quatro dias de Aldeia. Procuro os apontamentos oficiais e cito ipsis verbis: “ um grupo IN estimado em trinta a quarenta elementos atacou o aquartelamento de Aldeia Formosa com armas ligeiras e automáticas RPG-2 e RPG-7 durante 05 minutos reagindo ainda nos 10 minutos seguintes, causando 02 feridos às nossas tropas”.
Juntamente com a grande maioria dos oficiais de todas as companhias, também eu me encontrava na messe, e a minha reacção foi a de imitação: atirar-me para o chão para debaixo das mesas. Ninguém, ou se quiserem, nenhum oficial presente incluindo o Comandante se levantou enquanto o tiroteio durou. Quando acabou a fogachada fui em direcção à caserna dos Tigres que se encontravam todos bem e com uma sensação igual à minha: o ataque, dada a dimensão do aquartelamento, não tinha sido connosco. Comecei a ficar preocupado…
Até ao Natal, aguardado com ansiedade por todos, Aldeia Formosa foi flagelada a 27 de Novembro com cerca de (cito) quarenta granadas de Canhão S/R 85 e alguns foguetões; a 1 de Dezembro dez foguetões; a 8 de Dezembro novamente cerca de quarenta granadas de Canhão sem recuo. As consequências destes últimos ataques foram nulas pois nenhum dos engenhos caiu dentro do perímetro do aquartelamento.
Continuei preocupado, pois os meus comandados pensavam que as consequências dos ataques serviam só de aperitivo para beberem mais umas cervejas. Insisti com eles para não baixarem guarda, mas vi que o medo inicial havia dado lugar a uma demasiada descompressão. Tentei fazer-lhes ver que iríamos sair de Aldeia muito em breve e que a nossa vida seria muito difícil, exagerei, pensava eu, nos perigos que nos esperavam, mas o amolecimento também provocado pelo chegar do Natal era evidente. Continuávamos periquitos mas dois meses de Guiné e não sei quantos embrulhanços faziam da maior parte de nós velhinhos pois já se gabavam de ter sofrido mais ataques do que outras companhias que estavam há já alguns meses na Guiné sem ainda terem ouvido um tiro.
Natal de 1972
Foi o primeiro Natal passado sem a companhia dos pais, das mulheres, dos filhos, enfim da família, para a esmagadora maioria de nós. Reuni a companhia e nesse dia jantámos todos juntos. O Comandante, repito, bom homem, foi ter connosco. Lembro-me de ter feito um discurso longo, tendo aproveitado para lhes dizer que a nossa família agora eram todos os Tigres, e que me ajudassem a cumprir a minha maior ambição: Regressar a Portugal com todos os que tinham embarcado e que a todos cabia trabalhar nesse sentido. Comeu-se bem, bebeu-se melhor, e mesmo os, inicialmente mais tristonhos, rapidamente e pelo menos por alguns instantes, se juntaram aos cânticos que entoávamos em conjunto, aos vivas ao que quer que fosse, até que os vapores etílicos começaram a fazer efeito levando-nos à cama e a descansar até tarde do dia seguinte…
Aldeia Formosa > Discurso dia Natal (Vê-se o sr. comandante e o seu oficial de operações)
Aldeia Formosa > Dia de Natal de 1972 > Da esquerda para a direita: Portilho,?, Machado, Beires, Gama, Abundâncio, Aleixo, Matos Lopes,Peniche e Setúbal
Aldeia Formosa > Dia de Natal de 1972 > CCav 8351
Aldeia Formosa > Dia de Natal de 1972 > CCav 8351
Aldeia Formosa > Natal de 1972 > Fim de Festa
A visita do Gen Spínola no último dia de 1972
Até ao final de 1972, continuávamos na protecção à estrada e nada de registo me ocorre, a não ser a visita do General Spínola no dia 31 de Dezembro a Aldeia Formosa, onde se deslocou para se inteirar do grau de preparação da CCav 8351. Lá vestimos a nossa farda de festa, tendo o Chefe máximo discursado para a Companhia, colocando-me após o destroçar duas ou três questões e tendo de seguida regressado ao seu destino.
Continuava sem conhecer em definitivo o destino da Companhia, mas dadas as sucessivas idas a Colibuia, onde protegíamos o avanço da estrada, onde montávamos emboscadas nocturnas, pensei que esse seria o nosso destino. Como estava enganado…..
Aldeia Formosa > 31 de Dezembro de 1972 > Visita do Gen Spínola
Aldeia Formosa > 31 de Dezembro de 1972 > Visita do Gen Spínola
Texto e fotos © Vasco da Gama (2008). Direitos reservados.
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Nota de CV
Vd. primeiro poste da série de 7 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3581: A História dos Tigres de Cumbijã, contada pelo ex-Cap Mil Vasco da Gama (1): Apresentação e Chegada a Bissau
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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