1. Em mensagem do dia 5 de Setembro de 2015, o nosso camarada António José Pereira da Costa (Coronel de Art.ª Ref, ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos o artigo que se segue para incluir na sua série "A Minha Guerra a Petróleo":
A Minha Guerra a Petróleo (15)
Afinal houve mesmo guerra?
Introdução
Com este texto pretende-se realizar uma abordagem, de um outro ponto de vista, aos acontecimentos que marcaram, porventura do modo mais decisivo, a vivência no nosso país, durante os anos de 1961 a 1974, vulgarmente designados por Guerra “do Ultramar”, “Colonial” ou “de África”.
Dadas as características que a “Guerra” veio a ter – essencialmente uma luta, através das FA portuguesas, entre uma parte da população e as autoridades – a maneira como os africanos nados e criados naqueles territórios se relacionaram com os europeus, chegados da potência colonizante, ao longo de todo o processo de colonização, será a grande determinante do sucedido. Efectivamente, um relacionamento tolerante e amistoso entre quem chegava e quem já estava teria, muito provavelmente, determinado uma interpenetração entre civilizações que, quinhentos anos após a descoberta, daria às sociedades das ex-colónias um fácies diferente daquele que vieram a ter. Não foi esta a regra em quase todas as partes do mundo. Por norma, quem chegava sabia ao que ia, tinha objectivos concretos a atingir e partia da hipótese de que a superioridade tecnológica e até ideológica de que dispunha lhe concedia larga vantagem e direitos.
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Linha Gerais da Evolução do Conflito
Prossigamos na análise, começando por realçar a desproporção entre os mais de quinhentos anos que durou a constituição do império (desde a chegada dos navegadores até à insurreição que terminou com a independência) e a escassez de documentos de toda a espécie, que permitiriam, para cada território, a elaboração da marcha histórica, mesmo que apenas na definição das grandes linhas legislativas e administrativas. Seria importantíssimo ter uma visão, mesmo vaga, acerca do modo como, ao longo dos tempos, se terá processado a vida diária em cada território. Por motivos óbvios não é possível obter esta informação por extrapolação relativamente ao modo de vida na metrópole, este sim relativamente bem conhecido. Podemos até, com bastante legitimidade, tomar a escassez de documentação como confirmação de que as possessões africanas viveram, pelo menos até aos anos vinte do século passado, num certo grau de abandono “descentralizado”. Aquele abandono seria determinado por três causas principais: as comunicações difíceis e lentas1 (que impediriam que a administração central fizesse sentir a sua acção e obrigavam a que o governo fosse localmente exercido de forma pouco controlada), o clima (sempre tido como insalubre e doentio, impróprio para a fixação dos brancos) e, durante vários séculos, uma falta de finalidade na posse dos territórios de além-mar. Com efeito, não se vislumbrou, durante séculos, nada mais útil a obter daquelas terras do que a mão-de-obra escrava, já que a maior parte dos produtos que lá se pudessem obter ou para lá se pudessem enviar não chegariam em condições de utilização.
Ainda no capítulo da documentação, ou da falta dela, poderemos recolher elementos meramente indicativos numa publicação2: Livro das Plantas de todas as Fortalezas, cidades e Povoações da Índia Oriental, de António Bocarro, datável de 1634/35. Nele encontramos 48 plantas, entre Sofala (Moçambique) e Solor (Timor), que apontam claramente para uma tentativa de domínio do mar pela ocupação de posições com elevado valor táctico-estratégico e nunca com uma ocupação, em profundidade, dos territórios onde os portugueses desembarcaram. Desta forma de ocupação, ou melhor, desta disseminação chegaram aos nossos dias as três possessões do Estado da Índia – três vértices de um triângulo marítimo de dimensões muito consideráveis – a cidade de Macau e a meia-ilha Leste de Timor, o que atesta que se terá dado “um passo maior do que a perna permitia”. Outro tanto terá sucedido com a tentativa de ocupação da costa Leste da África do Norte que se saldou por uma impossibilidade e atingiu formas de um dramatismo doloroso, para além de um desperdício de meios de toda a espécie. É sabido que a partir da segunda metade do Séc. XIX a prioridade passou a ser a África, já que o Brasil tinha tido o destino habitual das colónias rebeldes naqueles tempos. Decorreu pouco mais de um ano entre a saída do D. João VI daquela colónia e o Grito do Ipiranga. A Coroa nem esboçou um gesto contra a independência declarada por um príncipe português…nem tinha forças para o fazer.
O ideário que durante os últimos cem anos tem vindo a ser apresentado pelas instâncias do poder e divulgado a quem frequentou os diferentes graus de ensino não ajuda a um conhecimento objectivo da realidade vivida nas fracções do império e do modo como se relacionaram com a administração central, em Lisboa. Tudo é apresentado como se os territórios em causa não tivessem passado e houvesse uma relação de posse (abstracta, mas insistentemente apregoada, diga-se) entre o próprio povo metropolitano e aqueles territórios. Dá assim a impressão de que a situação encontrada foi simples consequência da “dilatação da Fé e do Império” e dos “novos mundos ao mundo” que os portugueses andaram a dar…
Surpreendentemente, nos mesmos territórios onde a “Guerra” teve lugar, as historiografias monárquica e republicana registam um outro conflito insurreccional de características muito semelhantes, ao qual foi atribuída a designação de “Campanhas de África” ou “Campanhas de Pacificação”. Em linhas gerais podemos dizer que se tratou de um conflito intermitente, em alguns momentos fomentado e apoiado do exterior e repetidamente “encerrado”, ou dado oficialmente como tal, de um modo ao qual não podemos deixar de chamar, no mínimo, pouco claro. Esta situação levanta algumas questões e abre perspectivas de outros estudos. Na realidade, o uso do plural (Campanhas) comprova que houve várias (e nos três territórios) e, se foram “de Pacificação”, conviria determinar porque se realizaram, sendo certo que só é pacificado quem se subleva e só se revolta quem tem motivos (fortes) e condições (favoráveis) para tal. Teríamos, por consequência, umas “Primeiras Campanhas” e umas “Segundas Campanhas” distanciadas de um intervalo de tempo que, em alguns casos, nem sequer chegou a cinquenta anos. Dir-se-ia que, ao longo de pouco menos de um século, a agitação social naqueles territórios nunca deixou de estar presente, uma vez que o Poder teve repetidamente de sufocar focos de contestação (mais ou menos intensos) e tentar restabelecer a sua autoridade. Isto para não falarmos das sublevações que a historiografia "perdeu” e cuja pista, hoje, é difícil de seguir.
Concentremo-nos, agora, na análise genérica do modo como as populações das colónias se relacionaram com os europeus. Tudo começou com um contacto, por vezes choque, entre civilizações de diferentes níveis de evolução tecnológica e não só, no qual os europeus tentaram a exploração dos recursos locais – principalmente humanos – e os autóctones que, após um momento de surpresa, procuraram resistir-lhes.
A civilização que chegava, não só era mais evoluída tecnologicamente, mas também, detentora de uma religião que pretenderia expandir e de concepções do mundo e modelos filosóficos, com os quais os das civilizações locais pareciam não poder competir. Acresce que a religião praticada pelos europeus era tida pelos próprios como única e perfeita e à qual, por consequência, todos deveriam converter-se. Tudo indicava, portanto, que as civilizações ditas inferiores seriam rapidamente “subjugadas” e assimilariam as novas regras que regiam as civilizações ditas superiores, cujos delegados acabavam de chegar. Conhecemos genericamente a composição das expedições que sucessivamente partiam de Lisboa, com destino às colónias, e tal é suficiente para confirmarmos que estes delegados ou agentes não seriam os mais representativos da civilização que chegava e os mais aptos para fomentar um bom contacto com a civilização residente.
Contudo, as civilizações africanas não o podendo fazer pela força das armas, concentraram a resistência em três grandes áreas: a língua, a religião e os costumes, em última análise, os três principais pilares definidores de qualquer civilização.
A língua portuguesa que penetrou facilmente no Brasil, devido à fuga e extermínio dos índios e ao grande número de “imigrantes” oriundos de Portugal, nunca foi nem medianamente aceite pelos habitantes das outras regiões que se tentavam colonizar, na África ou na Ásia. Embora hoje o português seja considerado a língua oficial de todas as ex-colónias, há nelas largas áreas onde a população não o fala, mantendo as suas línguas tradicionais. A atestá-lo podemos citar dois exemplos. Ainda hoje o português dificilmente rivaliza com o tétum em Timor e, na Guiné, as populações rurais e muitas citadinas falam os seus dialectos ancestrais, alguns sem expressão escrita ou, como no caso dos fulas e mandingas, exprimem-se num dialecto do árabe. O crioulo sobrepõe-se ao português, sempre que a diferença entre dialectos impede uma comunicação satisfatória. Cabe aqui referir que já à data da independência era assim, apesar dos esforços de alfabetização levados a cabo pelas autoridades, o que confirma, em absoluto, a recusa das populações autóctones em empregar a língua portuguesa.
No fundo, estamos perante algo semelhante à adopção das fronteiras da Conferência de Berlim, durante a implantação das independências africanas. Neste caso, foi a língua que serviu para marcar uma diferença em relação aos povos circundantes. Com efeito, se a definição das fronteiras retalhou etnias e regiões naturais, com os resultados que se conhecem e que dificilmente serão colmatados, a médio prazo, a adopção da língua da potência descolonizante procurou consolidar a separação entre países recém-independentes e dotá-los de um idioma que lhes pudesse dar visibilidade e facilitasse o relacionamento internacional. Não havia, por isso, outra solução que permitisse dar um passo na aglutinação do país e projectá-lo na cena internacional.
A religião foi outra área em que as populações das colónias resistiram à penetração dos europeus. Em alguns casos, como na Índia, em Moçambique ou na Guiné sabemos que o cristianismo teve de competir com religiões muito evoluídas e em expansão ou já fortemente implantadas. Estão neste caso o budismo, o induísmo e o islamismo, mas outras formas de religião ancestrais, porventura menos evoluídas do ponto de vista filosófico e doutrinário, também não desapareceram, ficando o cristianismo, nas suas principais variantes, difundido de um modo muito modesto para quem se propunha converter populações em massa, numa gigantesca tarefa apostólica. Há a referir, todavia, que só Portugal assumiu esta tarefa e, mesmo assim veio a descartá-la algum tempo depois.
É difícil dizer se as religiões já implantadas é que não permitiram a difusão do cristianismo, por estarem mais adequadas às necessidades espirituais e hábitos de vida das populações que as abraçaram, ou se foi o abraçar daquelas religiões que determinou a estrutura social que os portugueses encontraram, mas não restam dúvidas de que as conversões ao cristianismo poderiam ter sido muito mais numerosas.
No caso das religiões animistas, aparentemente frágeis de um ponto de vista a que podemos chamar doutrinário, filosófico ou teológico, verificou-se uma situação de encobrimento das práticas por parte das populações e uma fuga à emulação com a doutrina e filosofia das religiões praticadas pelos europeus. No fundo, não tiveram sequer necessidade de simular práticas religiosas que não eram as suas, pois, a dado momento a expansão das religiões europeias deixou de ser uma prioridade para os colonizadores (Séc. XVIII e seguintes). O número de igrejas abandonadas e em ruina acentuada é hoje prova de que a religião que os portugueses trouxeram não vingou num terreno onde outras já existiam.
Por fim, uma terceira área de resistência que se manifestou na recusa em abandonar muitas práticas e hábitos, alguns bem antigos, para adoptar os correspondentes europeus. É certo que os europeus procuraram não divulgar muitas das suas práticas e técnicas, o que lhes permitia manter a sua superioridade tecnológica e o correspondente domínio sobre as populações locais mas, no que respeita aos usos e costumes, estas preferiram sempre as práticas antigas às dos europeus. Obviamente que houve casos em que as práticas e os hábitos trazidos pelos colonizadores foram aceites pelos autóctones, como sucedeu nas relativas à saúde, mas é ainda hoje, perfeitamente perceptível a semelhança entre muitas aldeias do interior das ex-colónias portuguesas e a reconstituição proposta pela ciência para as aldeias do neolítico. É paradigmático o sucedido hoje na Guiné onde há claras dificuldades, por parte das populações e autoridades, especialmente rurais, em utilizar edifícios administrativos, infra-estruturas logísticas, viárias e portuárias, deixadas pelos portugueses, para não falar do abandono completo de algumas localidades que, no passado, tiveram importância considerável.
Desta longa resistência, a que poderemos chamar passiva, resulta que deveremos aceitar que o chamado “passado comum” que, por vezes, se evoca para justificar a necessidade de se estabelecer uma ligação sólida entre os novos países e a potência descolonizante, foi algo que não foi, de todo, amistoso e, se bem virmos, é elemento aglutinador de qualidade duvidosa. Em última análise, estamos a “varrer para baixo do capacho” uma série de motivos e razões de queixa que até se podem perdoar, mas que não se esquecem. Há mesmo, ao longo de toda a colonização, episódios e situações que envergonham uns povos e revoltam os outros. A História não se esquece, ignora-se ou relembra-se, sempre que se julgar necessário ou oportuno. As tensões foram-se avolumando lentamente e a atestá-lo temos a revolta de uma parte da população das colónias contra as autoridades de direito (segundo uns) ou de facto (segundo outros). A História mostra que a projecção de força contra colónias rebeldes não é boa solução, mesmo que tal possa ser feito com grande violência e riqueza de meios, e terminou, por vezes a curto prazo, sempre com a derrota da potência colonizante. E tanto assim é, que houve países que preferiram conceder a independência às suas colónias, logo que nestas se perfilou pelo menos uma força política que a exigisse, renunciando totalmente ao uso da força contra essa ou essas forças. Tal foi caso da Espanha e da Bélgica.
A solução adoptada por Portugal foi única e há quem diga que nenhum outro país fez melhor ou, pelo menos resistiu tanto tempo, considerando os meios disponíveis ou aplicados e as condições políticas nacionais (principalmente) e internacionais. As autoridades portuguesas procuraram, durante 13 anos, sufocar uma revolta que coroava um descontentamento velho e só poderiam queixar-se de si próprias. Os apoios materiais que conseguiam obter não foram suficientes e revelaram-se dispendiosos e, ao fim de algum tempo, o próprio potencial humano, especialmente oriundo da metrópole, começou a revelar-se insuficiente para o esforço exigido.
Não foi por falta de aviso que a revolta surgiu “surpreendendo” as autoridades. Vários teóricos, mais ou menos próximos do regime político em vigor, a tinham previsto – Henrique Galvão e Hermes Araújo de Oliveira, entre outros – e tinham ficado mal vistos, como mensageiros da desgraça. As suas opiniões foram sufocadas, mas o pior é que não tenham sido tidas em conta. Mas, mesmo assim, a marcha dos acontecimentos políticos em África no final dos anos 50 não poderia augurar nada de tranquilizador para quem fosse inteligente, apesar de defensor das teses ditas colonialistas e imperialistas.
A posição política dos países limítrofes manifestou-se num apoio variado e, por vezes, muito intenso aos partidos revoltosos, sem que, contudo, o governo português, alguma vez, tivesse usado esse apoio como casus belli para os atacar, no terreno. O apoio militante surgiu mesmo de países, como a Suécia, que não praticando um apoio bélico foi dos primeiros países a reconhecer a independência da Guiné, embora os seus interesses diplomáticos e económicos andassem bem longe daquela área. Mesmo a reacção a nível diplomático foi pouco mais do que tímida, talvez porque o governo soubesse bem o ridículo a que se prestaria se tentasse uma atitude mais drástica. O resultado da invasão da Índia e as condições em que se processou deveriam ter constituído um outro sinal premonitório do que se iria passar. Mas não foi assim e o governo optou por desprezar a situação concrecta em que daí em diante teria de actuar. Porém, se a repressão resolvia o problema a nível interno, na cena internacional a situação só piorava.
O guerrilheiro é um cidadão armado, lutando contra um poder constituído. Reivindica para si a designação de resistente, mas não escapa à de terrorista no conceito das autoridades a que se opõe. No caso de Portugal, os guerrilheiros receberam outras designações, por vezes eufemísticas, como tresloucados, ou com a vaga conotação política de “agentes do comunismo internacional”. Numa manobra propagandística que veio a revelar-se contraproducente, o governo começou a usar o vocábulo “guerra” para designar as operações anti-guerrilha que tinham lugar nos três territórios onde a guerrilha tinha efectivas condições para progredir. Esta definição inexacta acabou por criar dificuldades – externas e internas – à política praticada. No exterior, o governo considerava a situação como um problema interno não sendo tolerados reparos ou censuras de qualquer espécie e vindos de quem viessem, enquanto no interior, o fenómeno era apresentado como uma guerra que era necessário ganhar, por múltiplos e variados motivos que, com o tempo, começaram a carecer de significado. Alguns foram hilariantes como a necessidade de realizar a guerra para dar tempo à política para actuar.
De qualquer modo os guerrilheiros não deixavam de ser portugueses – maus portugueses – que deveriam merecer punição severa, como seria óbvio. Contudo, sempre que eram capturados não eram julgados, mesmo que tivessem importantes funções na guerrilha. Tal sucedeu apenas num caso e com um estrangeiro, o capitão cubano Peralta. Carecerá de explicação que se tivesse dado aos guerrilheiros, cidadãos portugueses, embora prevaricadores, um vago estatuto de prisioneiro de guerra e a um estrangeiro que era seu apoiante o de um violador da lei nacional.
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Notas:
1 - Como simples exemplo da dificuldade de comunicações com a Índia, no caso vertente, veja-se o tempo que decorreu entre a ordem de Filipe III (datada de finais de 1632) e a dedicatória de António Bocarro (17 de Fevereiro de 1635) exarada no Livro das Plantas de todas as Fortalezas, cidades e Povoações da Índia Oriental, produzida sob sua direcção, com plantas de Pedro Barreto de Resende. In. estudo sobre a referida obra realizado por Isabel Cid (pág. 13). Basicamente, este conjunto de documentos seria um relatório determinado pela instância máxima da governação. Poderemos imaginar a dificuldade, ou mesmo a impossibilidade de produção de outros documentos de controlo a níveis mais baixos.
2 - Cita-se apenas uma publicação o Livro das Plantas de todas as Fortalezas, cidades e Povoações da Índia Oriental, de António Bocarro, datável de 1634/35 Ed. da INCM, ISBN-972-27-0444-3, Nov. de 1992, analisada e comentada por Isabel Cid, a qual deveria ser apresentada à consideração Real, mas outras há como o Lyvro de Plantaforma das Fortalezas da India, da Biblioteca da Fortaleza de S. Julião da Barra, atribuível a Manuel Godinho Herédia (ou Erédia).
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Conclusões
Apesar de as operações anti-guerrilha que se desenrolaram, entre 1961 e 1974, na Guiné, em Angola e em Moçambique, terem atingido graus de violência muito elevados, não poderemos falar de uma guerra no sentido habitual ou clássico do termo. Tratava-se de uma guerra subversiva o que, por definição, pressupõe a existência dos dois beligerantes seguintes: as autoridades constituídas e uma parte da população. Nesta situação, esta é uma parte relativamente pouco significativa – em número, que não em actividade – do total da população. Não havendo memória de um levantamento total da população de um território contra um invasor ou ocupante, teremos de considerar a existência de uma parte da população – mais ou menos considerável – que colabora com as autoridades, enquanto a maior parte, espera para ver, assumindo numa atitude passiva, visando a defesa do seu padrão habitual de vida. Normalmente sofre muito com violência, mas não deixa rasto histórico muito acentuado. A posse ideológica da população é, portanto, o grande objectivo a atingir, sendo que, estabelecida a contestação, a reversão da situação é uma tarefa lenta a decorrer durante uma ou duas gerações. No caso de Portugal – e talvez, no dos outros seis países que ocuparam a África – nunca poderemos falar de uma aceitação por parte das populações autóctones dos hábitos, religiões e língua dos colonizadores. Estes assumiram uma atitude de sobranceria que atingiu a violência e a escravatura, visando a imposição dos seus valores. A resposta foi a recusa e a resistência passiva que se manteve até aos nossos dias. Esta resistência determinou uma agitação subterrânea que nunca foi extirpada e que se manifestou sempre que as condições o permitiram. Sempre que a repressão se tornou insuportável a revolta estalou, habitualmente afogada em sangue, o que não resolveu o problema, se não o agudizou. Desta política de “tapar o Sol com a peneira”, fingindo que não se passava nada e amaldiçoando os mensageiros das más notícias, resultou uma mistura explosiva que, logo que as condições (especialmente internacionais) o permitiram, determinou o detonar de um fenómeno sociológico em que o racismo – essencialmente uma questão cultural – não deixou de estar subjacente.
A resposta das autoridades sediadas na metrópole manifestou-se através da projecção de força contra as populações rebeldes, materializada pelas forças armadas à custa do potencial humano da metrópole, numa primeira e longa fase. Depois, talvez porque começou a ser perceptível um desenlace desfavorável, procuraram as autoridades realizar a “africanização” da guerra. Esta reacção já é, em si mesma, a confissão pública derrota. Com efeito, se a sintonia entre o sentir das populações, genericamente consideradas, e as autoridades fosse um facto incontroverso, a população apoiante destas teria, desde logo, ajudado a esmagar a contestação. Trata-se, como se sabe, da manobra comum ao ocupante, invasor ou dominador de um território, quando confirma que não consegue prosseguir nos seus intentos. Este novo patamar da guerra subversiva tem frequentemente custos elevados para as populações de um dado território após a saída do exército ocupante. Os EUA puseram esta manobra repetidamente em prática, por vezes de forma muito dramática e com os resultados perversos que são conhecidos. De qualquer modo é a população que volta a estar em jogo o que continua a remeter para o campo da sociologia.
Ainda no caso português, a contradição insanável criada pelo facto de as autoridades terem duas leituras para o que estava a acontecer, consoante falassem ou agissem no exterior ou no interior, cria uma situação insustentável, em ambos os campos. Se, no primeiro, o isolamento e o abandono, sem hostilidade clara, pela generalidade das nações, como a situação internacional aconselhava, não constituía problema de maior para o governo, o mesmo não se podia dizer da grande contradição que se avolumava na população metropolitana. É provável que as populações da Angola e Moçambique nunca tivessem vislumbrado o fim do fenómeno. Na essência, poderemos considerar que eram dois territórios de grandes dimensões, sendo que em ambos, ele decorria apenas em cerca de metade da área. Que fariam aquelas populações se alguma vez tivessem equacionado o modo como a “guerra” poderia acabar? E contudo, não faltavam exemplos por toda a África……
Em resumo, poderemos afirmar que a Guerra “do Ultramar”, “Colonial” ou “de África”, foi essencialmente um fenómeno sociológico. Decorreu do modo como a colonização foi feita e do choque, em diversos planos, de duas civilizações e atingiu graus de violência e contra-violência elevados que conduziram a um desfecho senão previsível, pelo menos altamente provável desde o início e, se se lutava pela posse benévola da população e não pela posse do terreno é a sociologia que terá de fazer a última interpretação deste fenómeno.
TZ
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Nota do editor
Último poste da série de 24 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14794: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (14): Este Feminismo... é "muinta" feio!
10 comentários:
Parabéns, pelo trabalho, e pelo notável poder de síntese.
Não inventamos nem a escravatura, nem a "Santa Inquisição", contudo ao lhes darmos uma "tinta" Lusitana,nos destacamos dos colonizadores do Norte (sem juízo de valor).
Nas causas próximas
próximas, vale lembrar a vontade "soberana" do nosso último Imperador (sem aspas).
Forte abraço.
VP
Uma maneira bem interessante de ver a colonização à portuguesa.
Ficamos é mal esclarecidos se no parecer de Pereira da Costa critica negativamente em geral toda a colonização europeia ou se critica apenas os 13 anos de "atraso" das independências das colónias portuguesas, os 13 anos da Guerra Ultramarina, de África ou de Libertação.
PS. Ainda dentro da nossa guerra, faria amanhã 91 anos, Amílcar Cabral.
Cumprimentos
Olá Camarada Rosinha
É usual dizer-se que qualquer fenómeno histórico tem causa remotas, próximas e pretextos. Procurei fazer um síntese breve das causa remotas que um outro camarada nosso anda a fazer ao falar da História da Guiné. Não há dúvida de que, pelo menos na Guiné, a "instabilidade" era como a fama do Brandy Constantino (lembram-se?) "já vinha de longe".
Não interessa fazer diferenças nem pela positiva nem pela negativa entre colonizações. Creio que todas foram más, mas foram o que foram e só temos que o aceitar, como sucessão de factos históricos.
Nas causas próximas poderemos enumerar os factos da evolução da África durante o Séc. XX e que, no nosso caso poderia ter sido melhor. Aí temos que estar de acordo.
Depois, os pretextos. Quer se considere a "Guerra da Quinhenta da Água", em Moçambique, quer os ataques de 04FEV61, em Angola, ou o Pidjiguiti só temos que os considerar como a gota que fez "transbordar o copo".
Mas houve avisos, que foram devidamente ignorados, como muitas vezes acontece e isso faz parte do funcionamento dos países, em especial do nosso,. depois, como já disse noutro post éramos um corporação de bombeiros que chegou tarde ao incêndio florestal que tinha muito por onde arder e condições óptimas para lavrar.
Um Ab.
António J. P. Costa
É um trabalho de fôlego.
Bem conseguido. Tem muito "sumo".
Dá para reflectir.
Os meus agradecimentos.
Hélder S.
Gostei, caro camarada Pereira da Costa. Pela minha parte, e como se costuma dizer, "aprovado, sem reservas, na generalidade".
Abraço
Manuel Joaquim
"...e que no nosso caso poderia ter sido melhor. Aí temos que estar de acordo" (a colonização)
Amigo Pereira da Costa, diziam os antigos Estudantes do Império, estudantes, engenheiros e jogadores de futebol do império, cantores e artistas e escritores e jornalistas do império, que eram aos milhares, tanto da geração de Amílcar Cabral, 91 anos hoje, Agostinho Neto, Mondlane, Lúcio Lara, M. Wilson, Coluna e Peyroteo, como da minha 77, que os metropolitanos, tugas, caputos, chicoronhos, colon, podíamos ficar na nossa terra, que não precisavam de nós para nada, que eles sabiam governar-se muito bem.
Diziam ainda que eramos pobres e atrasados, sem capacidade para nos governarmos a nós próprios como é que tínhamos lata para governar os outros.
Isto, em Angola, antes de 1961.
Mas nunca ouvi que estavamos a mais, a milhões de habitantes de sanzalas onde nunca tinha chegado o asfalto, a escola, nem o chefe posto nem o missionário.
Pereira da Costa, sabemos que quando em 1961 rebenta aquele terrorismo no norte de Angola da UPA, já havia terrorismo étnico em toda a África anglofona, francófona independente ou não, semelhante ou pior que o da UPA do "Congo português" e que hoje ainda vemos constantemente.
Pereira da Costa, nesse momento, (1961) eu vi com os meus olhos, muitos angolanos da minha geração, e da geração de Amílcar, brancos pretos e mestiços, futebolistas e jogadores de futebol, funcionários e comerciantes, meterem "a viola no saco" e porem-se fervorosamente ao lado dos salazaristas/colonialistas, ao ponto de em Angola, quando se dá o 25 de Abril, foi uma surpresa total para todos desde o MPLA, UNITA e UPA, até aqueles que quando ouviam como eu o "Angola é nossa" ao meio dia na rádio, e diziam que trocavam a parte deles, por um café.
Pereira da Costa, Amílcar Cabral nunca condena o colonialismo europeu em si, condena mais o neo-colonialismo que já se praticava no caso do Senegal com a frança/senghor.
E sobre Salazar dizia/escrevia que Salazar não dava a independência por não ter capacidade de praticar esse, tal neo-colonialismo Francês e Inglês.
Pessoalmente penso que Amílcar analisava muito bem o real pensamento político de Salazar e dos outros neo-colonialistas.
Talvez se tivessemos limitado a nossa aventura a ir "mostrando novos mundos ao mundo", como dizia Camões (canto 2?), não teríamos que ter aturado Amílcar Cabral.
Pereira da Costa, o que a Europa vai ter mais dificuldade a encontrar, é a explicação para o afluxo dos saudosistas que querem atravessar o túnel da Mancha e galgar o arame farpado de Ceuta e Melila.
E tudo o mais que vem do Leste.
Mas com certeza que todos estes azares da Europa, já vêm de longe, e não fomos nós os maiores culpados.
Cumprimentos
Olá Camaradas
Sugeria que para melhor esclarecimento do sucedido observassem o que vem escrito nos Posts do Manuel Vaz.
Ele recua bastante no tempo, mas isso vai permitir sabermos como era e o que era a Guiné e o modo como lá se vivia e viveu ainda durante muitos anos.
A História é feita sem que se dê por isso. É construída todos os dias e considerar só os últimos anos é como ir ao futebol, ver os últimos 5 minutos e depois discutir o jogo desde o início, incluindo os normais apelidos ao árbitro...
Um Ab.
António J. P. Costa
Olá Camaradas!
Vai animada a conversa, e aproveito para meter a foice em seara nossa. A História não se altera, mas interpreta-se e escreve-se de muitas maneiras. Paralelamente, tem sido publicado uma sucessão de textos pelo Manuel Vaz, que nos ajudam a interpretar como os povos/raças autóctones se combatiam a procurar ganhar posições de interesse. Também sabemos por diferentes historiadores, de diferentes sensibilidades (a História deve ser alheia à política), que os colonizadores tiverem sempre contactos privilegiados com algumas daquelas raças ou tribos, com quem iniciavam e continuavam negócios e partilhas de comum interesse, embora, especialmente no que ao esclavagismo dizia respeito, com elevados prejuízos para outras partes. Quero dizer, que os colonizadores tinham parceiros locais, no que, na época, se afigurava como relacionamentos normais. Mais, os colonizadores foram muitas vezes, tomando partido por facções, ou por iniciativa autónoma, os pacificadores de diferentes conflitos regionais. E assim se chega à questão das nacionalidades. Em qualquer da 3 provincias registavam-se conflitos frequentes entre as difrentes raças ou povoados, e foram os colonizadores (de maneira susceptível de críticas) a transmitir a noção de nacionalidade agregadora. Ora, nunca os movimentos rejeitaram a ideia de procurar a libertação por castas, antes pelos territórios delimitados pelas fronteiras estabelecidas elos colonizadores (Conferência de Berlim).
Isto dá-nos a perspectiva da aculturação, fenómeno permanente na vida dos povos, de que a vontade de impor em Portugal o novo Acordo Ortográfico, sucedâneo de outros anteriores,constitui mero exemplo. É que devemos considerar uma especial dinâmica, de que antes do mais todos somos cidadãos do mundo, e só depois surgem as nacionalidades.
Eu sei de conhecimento autêntico, que aconteceram arbitrariedades criminosas, lá, como cá - a expulsão dos mouros, a inquisição, o regime pombalino, a carbonária, a PIDE, e inúmeros casos menores de que os pelourinhos são testemunho corpóreo.
Além disso, devemos ter em consideração, que grande parte do território de Angola era terra de ninguém, até que os portugueses o desbravaram. Com isto, quero dizer que as circunstâncias civilizacionais são dinâmicas, e por todo o lado, muitas vezes injustas.
A realidade (e passo sobre o período de 20 anos que antecederam o golpe de Abril, marcados por inequívoco desenvolvimento económico e social), é que depois da independência houve o que houve, conheci aqueles territórios feitos escombros e encardidos, e as populações em geral revelavam saudades dos portugueses, sendo que muitos conservavam com orgulho as identificações civis e militares.
Quanto aos refugiados, devemos ter em conta que as facilidades de constatar a informação, e observar outras realidades, são meios que agitam as pessoas que sofrem e correm riscos pessoais e familiares sérios. Houve miúdos que no virar do súculo, também me pediram para os trazer para o puto.
Mas se calhar sou resistente às ideias de liberdade propaladas em Abril, apesar de vivermos aparentemente melhor, mas hipotecados por várias gerações.
Abraços fraternos
JD
Olá Camaradas
O que passou nas ex-colónias após a independência foi aquilo que as populações locais quiseram e puderam fazer, pressionadas por condicionantes poderosíssimas e vindas de vários lados. Ser politicamente independente é isso mesmo e implica responsabilidade, especialmente dos governantes. Não faço, por isso, qualquer tipo de considerações por falta de conhecimentos e até de autoridade.
Limitei-me a apreciar, na perspectiva dos portugueses da "metrópole", o que se passou e o que levou a que as situações surgissem com as características que todos conhecemos.
Mesmo o evoluir da situação, durante os últimos 13 anos do "império" foi sempre grandemente determinado por causas exógenas.
Podemos achar muito poéticas e nostálgicas as "saudades" dos portugueses, mas não creio que, mesmo hoje, esses povos aceitassem um interferência de Portugal na sua vida política e social.
Claro que esses povos se degladiavam entre si antes da chegada dos colonizadores e, ao que parece, assim continuaram. A "política de alianças" que praticávamos faz parte da actuação daquele tempo (e de sempre) o que prova que aquela coisa da dilatação da "fé e do império" e da "acção civilizadora" são coisas... discutíveis.
Aceitemos, com clarividência, a marcha dos acontecimentos
Um Ab.
António J. P. Costa
Camaradas,
Respondo ao último comentário do António José, que, obviamente, me dirige. Esta relação bloguística sobre matérias, que são substracto de diferentes visões sobre os acontecimentos decorrentes do golpe de Abril, podem aqui ou ali, ser obnibuladas por emoções, ou argumentos que se esgotaram pela observação mais distante dos acontecimentos, dos envolvidos, das consequências, e das fracções então geradas, mas com reflexo actual. Aliás, parece-me, não estamos a chorar sobre o leite derramado, apenas a tentar sistematizar acontecimentos, da génese, passando -ainda que por alto- pelos acontecimentos propriamente ditos, até ao produto final que ditou novas particularidades desconexas de antecedentes.
Ora, a humanidade não evolui através de saltos desconexos, e se o destino das colónias estava em acelerado processo de auto-determinação numa senda tão natural, quanto os filhos saem de casa dos pais, e aos progenitores por norma não acontecem cismas, raivas, desorientação, e vertigens ruinosas.
Naturalmente, essa bandeira e dilatar a fé e o império, através de uma acção civilizadora prosélita, também não passa de manipulação política, obviamente para maquilhar o que não se pode revelar, sem contrariar as melhores razões prosélitas.
A partir de amanhã, certamente, não terei acesso ao computador até que regresse de férias, pelo que vos desejo um resto de Setembro tranquilo e bem passado. Abraços fraternos
JD
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