sábado, 12 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15106: Manuscrito(s) (Luís Graça) (64): Lisboa, sete colinas e uma paixão... E viva o Festival Todos 2015, 7ª edição - Lisboa, Colina de Santana, Campo Mártires da Pátria, de 9 a 13 de setembro de 2015


Festival Todos 2015 , 7ª edição. Colina de Santana, Campo Mártires da Pátria. Calçada de Santana, 10 de setembro de 2015. Atuação da Fanfarra Turbo Clap - Mazalda, França


Texto, fotos e vídeo: © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados


Lisboa, sete colinas, o rio, uma paixão




por Luís Graça 


Lisboa, sete colinas, o rio, uma paixão,
que deram origem
à arte e à ciência de fazer cocktails
de cores, sabores e sentimentos.

E tu, querida,
eras uma das meninas que ficava bem,
à janela, recortada,
em pórtico manuelino da Casa dos Bicos
ou nos vergéis
da estória da Nau Catrineta,
desenhando frágeis castelos de Espanha
nas areias movediças de Portugal.

Lisboa, menina e moça,
cidade de memórias e de afetos,
tu podias não saber nada de geografia,
nem da didática da educação de adultos,
nem da fisiologia do coração,
nem de macroeconomia,
nem de desenho a três dimensões,
nem do risco sísmico,
nem sequer do simples risco de existires e de estares viva,
mas sempre tiveste por perto
o estúpido pirata de perna de pau,
vesgo e maneta,
irrompendo os teus sonhos
com o pesadelo do sentimento de um ocidental
na ponta mais fina de uma espada,
guardada na Torre de Belém.

Lisboa,
o casario, o castelo, a mouraria,
e, rente ao chão, a devoção,
a procissão da senhora da Saúde,
que nos valia nos anos de peste,
nos meses de guerra,
nas semanas de fome
e nos dias de depressão,
a depressão funda, cavada,
do vale de Alcântara até Xabregas.

Lisboa, a Torre do Tombo,
os livros, os incunábulos, os alfarrabistas,
as pedras, as cantarias, as traves mestras
que nos falam da cidade em construção,
dos arquitetos, dos trolhas, dos estucadores,
das gaiolas pombalinas,
dos tristes,
dos saudosos da partida,
dos pintores de tabuletas e de retábulos dourados das igrejas,
dos aguadeiros,
do poço do mouros e do poço dos negros,
dos almoxarifes,
dos vedores,
dos provedores,
dos coveiros da pátria,
dos enfermeiros-mores,
dos físicos e dos tísicos,
dos barbeiros-sangradores,
dos palácios e conventos bem postos e melhor compostos,

do Carmo e da Trindade, outrora de pedra e cal,
dos agiotas, das tenças e das mercês,
dos engenheiros hidráulicos,
dos agrónomos,
dos agrimensores,
dos silvicultores do pinhal 

quando el-rei faz anos,
dos santos inquisidores, 

dos pregadores dominicanos,
das freiras e das frieiras
que é coçá-las e deixá-las
no cemitério de todos os prazeres.

Ah, aí onde a vida acaba,
numa cena canalha,
na ponta de uma naifa no Bairro Alto das fadistas
e na Baixa Chiado dos seus chulos.
Mas não de tédio, minha querida,
diz o pregão da varina,
nem de desesperança,
que ainda a noite é uma criança,
e enquanto houver o 28 para a (Des)Graça,
com bilhete de ida e volta,
as Escadinhas do Duque
ou a Calçada do Combro
e os escombros do terramoto
por subir, trepar ou escalar.
E os filetes de alfaquique ou peixe-galo
com açorda de ovas
que não vão à mesa do rei,
e os pastéis de Belém, mesmo com IVA,
e o bife dos ricos à Marrare
e as iscas, dos pobres, com elas
nas carvoarias dos galegos
e o cheiro a carvão e a sardinha,
linda que tresanda,
nas ruelas e vielas dos bairros impopulares,
por fim reordenados,
e livres do tifo, da febre amarela,
da cólera, do bacilo de Koch
e das paixões cegas da alma.

E o Portugal very tipical do António de Ferro,
descalço e de barrete encarnado,
com que te quiseram tramar,
e as sécias e os peraltas da Belle Époque,
que a Avenida da Liberdade
acaba na rotunda das edificantes públicas virtudes
e no beco dos mais torpes vícios privados.

Tu, terna, eterna, Olissipo,
onde o azul do céu é único,
diz o ofício do turismo,
e nos leva a todos os caminhos do infinito.
Ulisses sabia-o
e bem guardado estava o segredo,
no mais fundo do tempo,
e por isso fundeou no estuário do teu Tejo,
e te fundou e fecundou,
e trouxe com ele a caixinha de Pandora,
e os perfumes inebriantes das mais belas:
troianas, fenícias, gregas,
cartaginesas, romanas,
celtas, ibericíssimas,
judias sefarditas, 
godas, visigóticas,
mouras encantadas,
berberes, azenegues,
futa-fulas, mandingas,
pretas da Senegâmbia,
crioulas de carapinha e olhos verdes,
ameríndias, guaranis,
umbundas e quimbundas,
de bunda larga,
bárbaras, belas, pérfidas, cruéis, ubérrimas,
santas e peregrinas,
errantes e penitentes,
místicas, algures perdidas,
loucamente perdidas e recolhidas
nos caminhos marítimos para as Índias.

Que te importa, amor,
se Lisboa já não é uma praça forte,
uma bolsa contra os valores
daqui d’el-rei,
que o paço e o terreiro,
o trono e a régia cabeça,
a casa da rainha e o infantado,
tremem e estremecem,
mas não caem,
entre o Martinho e a Arcádia,
na iminência de um atentado,
terrorista,
ou da implosão do euro.
Dantes chamava-se anarquista,
à bomba regicida,
quando a palavra de ordem era
a bolsa ou a vida,
abaixo o Estado!

E não havia as avenidas novas, do Ressano Garcia,
nem o risco dos arquitetos estadonovistas,
nem o cordão sanitário,
nem a construção a custos controlados,
nem o prémio Valmor,
nem o Siza nem o Carrilho nem o Moura,
nem o fundo de mão de obra,
nem o Dow Jones ou o NASDAK,
muito menos a apagada e vil tristeza
que te matou,
meu irmão Luís de Camões.

E estavas tu, querida,
postada à janela,
descalça e de xaile preto,
em sossego e bom recato,
com vistas largas para o casario, a sé, o castelo,
o mar da palha,
o mundo vário,
a rua do ouro e a da prata,
o augusto senhor dom José a mata-cavalos,
a serra, a arrábida fóssil,
a armada outrora invencível,
a ribeira das naus,
e as iscas com elas a cinco paus,
o turista, o voyeurista,
o motorista
do senhor ministro sem pasta
nem forragem para o gado na canícula do verão,
nem para os puros sangues lusitanos
da alcáçova dos senhores,
nem sangue nem soro para os heróis menores,
anónimos,
da guerra colonial,
que vieram morrer na praia do 10 de junho,
o velho do Restelo,
que já foi praia sem bandeira azul nem glória,
o velho do Restelo agora ainda mais velho
e mais estupidamente lúcido e cruel,
o Cesário e a sua idiossincrasia,
o Cesário, verde e rubro, nos estádios dos eurofutebóis,
mais o Eça de Queiroz, o estrangeirado,
que te amava à maneira dele, 

qui t'aimait, malgré lui,
a Sofia, a deusa, a olímpica,
o Almada e os seus marinheiros sem futuro,
o Bocage e o seu filho, Ary,
debochados, panfletários,
mais o O'Neil, que era tão louco quanto irlandês,
e o luminoso Eugénio mais a sua sombra, Andrade,
e ainda a Amália
e a nossa estranha forma de vida,
e tantos outros poetas que te cantaram,

ó minha cidade
e que morreram de amores e desamores por ti,
entre o Cais das Colunas e o Cais do Sodré.

Ah, e o Pessoa,
subindo e descendo o Chiado,
de braço dado,

contigo,
recitando-te o heterónimo:
a rapariga inglesa, tão loura, tão jovem, tão boa
que queria casar comigo…
que pena eu não ter casado com ela…
teria sido feliz ?
mas como é que eu sei se teria sido feliz ?


Esquece o Álvaro, o Campos, o sedutor, 

e as noivas de Santo António que ficaram por casar,
e deixa-me pôr-te a caminhar
pelos caminhos ínvios e íngremes
desta cidade-sortilégio,
que nós amamos no singular
e maltratamos no plural… 

Valha-nos São Vicente, os seus corvos e a sua barca,
que erros de calceteiro e de autarca,
de médico e de monarca
a terra os cobre.

E se, contudo, há um privilégio,
é sempre o da amizade e do amor,
é esse de poder ter-te
ao alcance da mão e do coração dos amantes, 

descendo a encosta do castelo
até à praça de São Domingos,
ou entre o Rossio e o Terreiro do Paço, 
com a rua Augusta, de permeio,
entre a liberdade sem rua nem abrigo
e os segredos de polichinelo 

da tua caixa de correio.

É, enfim, esse privilégio de poder dizer-te,
no regresso da última nau do império:
como é bom rever-te,
Lisboa, Tejo e tudo.

Lisboa, Terreiro do Paço, 20 de maio de 2006.
Revisto,  Campo Mártires da Praça, 11 de setembro de 2015.




Lisboa > Museu de Lisboa - Torreão Poente, Terreiro do Paço > 6 de setembro de 2015 > Exposição "A Luz de Lisboa" (a não perder, até 17 de dezembro)


Lisboa > Museu de Lisboa - Torreão Poente, Terreiro do Paço > 6 de setembro de 2015 >  A estátua equestre de D. José


Lisboa > Museu de Lisboa - Torreão Poente, Terreiro do Paço > 6 de setembro de 2015 > Exposição "A Luz de Lisboa"  > Janela sobre o Tejo



Lisboa > Museu de Lisboa - Torreão Poente, Terreiro do Paço > 6 de setembro de 2015 > Exposição "A Luz de Lisboa"  > A partida de um navio de cruzeiro, visto de uma varanda do torreão



Lisboa > Museu de Lisboa - Torreão Poente, Terreiro do Paço > 6 de setembro de 2015 > Exposição "A Luz de Lisboa"  > Um dos grandes pintores da cidade; Carlos Botelho (Lisboa, 1895- Lisboa., 1982): Ramalhete de Lisboa (1935). Museu da Cidade de Lisoa (reproduzido aqui com a devida vénia).




Lisboa >  Cais da Ribeira ; 6 de setembro de 2015 >  Turistas, desenhando o Tejo

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Nota do editor:

Último poste da série 19 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15020: Manuscrito(s) (Luís Graça) (63): Lourinhã, paisagens jurássicas

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