terça-feira, 8 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15087: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (19): De 26 de Julho a 4 de Agosto de 1973

1. Em mensagem do dia 5 de Setembro de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 19.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74 

19 - De 26 de Julho a 4 de Agosto de 1973


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

JUL73/26 – Forças da 1.ª CCAÇ durante a acção “ORIENTE”, estenderam os patrulhamentos das NT mais para o interior, aproximando-se do R. BAPO. Na região (XITOLE 1 F 5-13) referenciaram rajadas e rebentamentos de AA. Segundo a direcção de SALANCAUR JATE (GUILEGE 3 G 3-23) aquando da passagem S/N (sul/norte) de um avião não identificado.

JUL73/27 – Forças da 3.ª CCAÇ durante a acção “ORDENAR” percorreram a antiga picada MAMPATÁ-BOLOLA fazendo C/PEN (contra penetração) na região do R. BAPO. Sem contacto.

JUL73/28 – (...)

JUL73/30 – GR IN não estimado flagelou durante dez minutos o Destacamento de Cumbijã com 20 granadas de canhão S/R 82, sem consequências. As NT reagiram com artilharia.

JUL73/31 – Inicia-se com forças da 1.ª, 2.ª e 3.ª CCAÇ e CCAV 8351 a acção “OUSADIA”, orientada para a região do UNAL. Neste dia é deslocada para a região do pontão destruído do R. HABI, a CCAV 8351 com a missão de o proteger na sua reconstrução. É reforçada com o PEL SAP, o PEL REC da CCS, encarregadas da sua reconstrução. 

[Vai começar a “festa”, digo eu. E sublinho o anúncio a negrito].

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[Ainda que possa interessar apenas a uns quantos e a mim próprio, a História da Unidade do BCAÇ 4513 e o Resumo dos Factos e Feitos, são documentos valiosos pelo registo conciso e sistemático de acontecimentos em que participámos e que marcaram as nossas vidas, mas dos quais a nossa memória apenas guardou o mais relevante, deixando que se esfumassem os detalhes. Há mesmo informações e situações datadas de que só agora tomo conhecimento. 
Por tudo isso transcrevo na íntegra a descrição da SITUAÇÃO GERAL referente ao mês de Agosto/73, período conturbado e de grandes alterações no sector (S 2), e a seguir transcreverei apenas as actividades mais relevantes que, no mês de Agosto é quase tudo. Continuarei a acrescentar as minhas notas, memórias e histórias, à frieza militar dos registos da H. da Unidade].


Da História da Unidade do BCAÇ 4513 – Período de 01AGO a 31AGO73: 

SITUAÇÃO GERAL 

Este período foi particularmente movimentado no que diz respeito às NT, pois que além da apresentação do novo Comandante do Batalhão, se processou a saída do Sector S-2 do BCAÇ 3852, que seguiu para BISSAU para regressar à Metrópole, sendo substituído na quadrícula desde 10AGO73 pelo BCAÇ 4513, e ainda a entrada no Sector do BCAÇ 4516 que substituiu na intervenção o BCAÇ 4513.

Operacionalmente, o período iniciou-se com a acção “OUSADIA” que, tendo como objectivo o UNAL, a 1.ª fase consistiu em reconstruir um pontão sobre o R. HABI, próximo de LENGUEL, recentemente destruído pelo IN, não se tendo atingido o objectivo por terem sido detectados os trabalhos no pontão havendo consequentemente do outro lado do rio uma forte resistência, sendo o pontão novamente destruído, durante o contacto.

Nesta acção o IN sofreu 3 mortos confirmados e mais baixas prováveis e as NT 5 feridos ligeiros. Insistindo numa acção sobre o UNAL foi montada a Op. “OUSADIA SATÂNICA”, segundo a direcção N/S a partir de BUBA, que não resultou por não haver guias para aquela região e por o terreno nesta época de chuvas intensas e contantes afectar extraordinariamente a possibilidade de progredir e mesmo de orientação.

Não obstante a quantidade enorme de colunas auto que houve que fazer a BUBA para levar o BCAÇ 3852 e trazer o BCAÇ 4516 com todos os seus materiais, e não obstante ainda o treino operacional do BCAÇ 4516 hipotecar efectivos apreciáveis deste BCAÇ, procurou-se estender os nossos patrulhamentos a quase todas as regiões do Sector e montar emboscadas nos locais propícios tendo no dia 12AGO, a 1.ª CCAÇ interceptado uma coluna de reabastecimentos e provocado baixas não estimadas, capturando 3 elementos da população.

Referem-se como actividades mais importantes:

AGO73/02 – Em 0208AGO73 GR IN estimado em 100 / 120 elementos flagelou as NT quando durante a acção “OUSADIA” pretendíamos atravessar um pontão sobre o R. HABI próximo de LENGUEL. Do contacto resultou que o IN sofreu 3 mortos confirmados e outros mortos e feridos prováveis, tendo as NT sofrido 5 feridos ligeiros. O pontão referido foi destruído pelo IN, impossibilitando a passagem do R. HABI.

[Sobre os nossos “feridos ligeiros” cabe dizer que, alguns, não eram assim tão ligeiros: houve um alferes – já não recordo de que Companhia -, que ficou bastante ferido num olho com a terra projectada pelas rajadas no chão e, um dos muitos adolescentes civis que fazia de carregador, mesmo ao meu lado, ficou com uma mão furada de um lado ao outro].

Mapa da região de Cumbijã com referências ligadas à operação “Ousadia”

Das minhas memórias:

2 de Agosto de 1973 - (quinta-feira) – Ousadia insana a caminho do Unal; O meu 5.º confronto.

Estava em marcha a operação de maior envergadura em que participei. O destino era o Unal, considerado por muitos como um “santuário” do PAIGC. Mas esta operação também era considerada por alguns como uma aventura condenada ao fracasso, desde logo pelo modo de deslocação das tropas para o Unal, apeada e em fila indiana pelo interior da mata, e pela época do ano em que se realizou. Todavia, estávamos ali homens e armamento, por certo, capazes de assaltar com sucesso aquela base, ainda que, certamente, à custa de muitas baixas.

Assim, mal passámos a ombreira da porta, e eis que nos fazem uma espera do outro lado rio barrando-nos o avanço. É certo que, para chegar ali, tínhamos andado metade do caminho para o Unal mas, em termos de dificuldades, ainda estávamos a sair de casa.

O início do confronto foi bastante desigual, pendendo para eles a vantagem de estarem à nossa espera do outro lado do Rio Habi, com todo o dispositivo apto a atacar, e tendo à sua frente o campo aberto da bolanha. E fizeram-no quando os nossos da frente atravessavam essa bolanha em direcção ao rio, após terem saído da mata, por onde se prolongava um cordão humano desmesurado mas sem condições para reagir. Até que conseguíssemos trazer para a orla da mata os morteiros e bazucas dos primeiros grupos, eles iam alvejando a frente da coluna e dispersando pela mata as suas granadas, que rebentavam um pouco por todo o lado de mistura com rajadas de armas automáticas. Quando abrandou o ataque e eles começaram a debandar, concentrámos na orla a maioria dos morteiros de 60 e 81 mm e as bazucas das nossas forças, batendo a retirada deles quase até ao esgotamento das munições.

Pela primeira vez senti que, por um triz, me vazavam o crânio, obrigando-me a assistir ao resto do confronto lá de cima, junto dos anjinhos... Estava de pé, espalmado numa árvore a cerca de uma dezena de metros da orla da mata, tentando descortinar movimentos e posições do outro lado do rio. A folhagem dessa árvore roçava-me a cabeça e quase me ocultava a cara. Num instante, o zunir de uma rajada cortou essa folhagem e fê-la cair por mim abaixo, e eu atirei-me instintivamente para o chão com a garganta numa secura. Outros tiveram menos sorte e saíram feridos, principalmente na bolanha.

A meio da manhã e quase sem munições para os morteiros e com feridos, é feito um contacto para o Comando dando conta das dificuldades. Mandaram-nos aguardar para avaliarem a situação. A demora na chegada de ordens pareceu-me um acto punitivo, mas talvez fosse só o tempo de conferenciarem com o Comando-Chefe... Finalmente mandaram-nos regressar mas, à chegada a Cumbijã, como um balde de água fria, recebemos a informação de que sairíamos cedo no dia seguinte para Buba em viaturas, a fim de relançar a operação a partir daí com o mesmo objectivo mas com o nome melhorado. No estado físico em que me encontrava, tal como a maioria -, perante essa perspectiva, senti-me desfalecer.

“Ousadia Satânica”: estava muito bem posto o nome da operação seguinte. Mas já não era para mim.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

AGO73/04 – Em 041710AGO73, forças da CCAV 8351, encontraram na região (GUILEGE 3 I 6-64) o seguinte material:
7 GR/RPG-7; 10 GR/RPG-2; 3 GR/LGF; 2 tambores/armas autom.; 7 cargas/RPG; 4 minas A/Pess; 5 disparadores MUV; 6 cargas de trotil para minas A/pess; 2 cartuchos/GR MORT; 1 espoleta M6 BIU 17-68.

 - Op. “OUSADIA SATÂNICA”

Depois de se concentrarem em BUBA as três CCAÇ/BCAÇ 4513 durante o dia 3AGO, no dia 4 deu-se início à operação que visou atingir o UNAL, progredindo na direcção N/S. Foi ainda empenhada nesta operação um agrupamento do BCAÇ 3852 constituído por 2 GR COMB/CCAÇ 3398 mais 1 GR/COMB/CCAÇ 3400, [estas tropas do BCAÇ 3852 com a comissão mais do que terminada, relembro eu], destinado a fazer base temporária em BOLOLA, para colaborar nas evacuações e nos reabastecimentos das nossas companhias.


Das minhas memórias:

4 de Agosto de 1973 – (sábado) – Estadia forçada em Buba; O caso do 1.º Cabo Artilheiro.

Excluindo o curto período em que estive em Nhala a comandar a Companhia, pela primeira vez não acompanhei o meu grupo numa saída para o mato, neste caso na famigerada operação Satânica. Não que tivesse paludismo, micoses ou matacanha, mas porque estava no limite das forças: astenia, somente... Aquilo não era para meninos, repito, e a meu favor só tinha a idade. Como eu ficaram muitos em Buba, com as maleitas mais diversas. E o meu grupo saiu muito desfalcado para a operação, comandado pelos meus dois furriéis, valorosos e sempre prontos, e a quem devo enorme gratidão para além do apreço e reconhecimento que sempre tive.

Chegados de véspera a Buba, deve ter sido enorme o reboliço para acomodamento de todas as companhias, para o rastreio dos inoperacionais, para os detalhes da logística, enfim..., não recordo nada disso, tão pouco a saída das tropas para a operação mas, estranhamente, a ansiedade pelo que poderia acontecer lá longe, a sensação de vazio após a saída das tropas e o sentimento desconfortável, a roçar o remorso de ter ficado, nunca mais esqueci. Um ou outro episódio menor, também ficou para sempre, como aquele incidente com o Major D. M., mais um, quando me cruzei com ele junto das camaratas dos graduados. Cruzámo-nos, cumprimentámo-nos, ainda demos uns passos mas depois ele parou e chamou-me para implicar com a minha barba de vários dias. Incrédulo, ainda me tentei justificar com a operação de anteontem, o ter vindo para Buba para nova operação, obviamente sem apetrechos de barba porque não vinha em lazer, enfim, já muito zangado rematei com uma exclamação agressiva e pouco ortodoxa que me coíbo de reproduzir aqui. Áspero, interrompeu-me o fluxo de atoardas:
- Faça a barba imediatamente e apresente-se no meu gabinete!

E eu não tive outro remédio, senão ainda me iam pôr lá onde decorria a operação... A verdade é que sempre fui avesso aos exageros dos regulamentos militares, embora me esmerasse no aprumo quando nada justificasse o contrário, assim como no zelo e no empenho da minha actividade. Mas fora da tropa nunca aceitaria uma ordem daquelas nem a maior parte do que vem expresso no RDM, onde existe matéria a rodos que é ofensiva da dignidade, sobretudo para quem integra as Forças Armadas por ser obrigado. Ainda assim, pela minha falta de correcção, renovo publicamente o meu pedido de desculpas ao Sr. Major.

Um outro episódio que nunca mais esqueci, passou-se em Bissau em Agosto de 1974, um ano depois destas operações, mas que sempre relacionei com Buba e com o fracasso destas e de outras operações. Então, começando por Buba: enquanto decorria a operação “Ousadia Satânica”, eu almoçava na messe com outros militares quando vieram interromper o almoço ao Major D. M. para que ele fosse ao posto de rádio com urgência. Se não me trai a memória, neste e noutros detalhes, tenho ideia que entrou em acção o obus 14 ainda no decorrer do almoço e todos perceberam a urgência do apelo e que algo estaria a correr mal lá para os lados da operação. Possivelmente pediram para ser batidos com obus pontos concretos da região.

Em Bissau, na data referida acima, eu encontrava-me a aguardar avião para as derradeiras férias na Metrópole. Quase noite, deambulava sozinho nos limites da cidade, na estrada que ia para o aeroporto, quando entrei num bar – ou café? -, para comprar tabaco ou beber uma cerveja, já não recordo. Só depois de ter entrado me apercebi do ambiente penumbroso e pouco acolhedor. Já um pouco incomodado encostei-me ao balcão para pedir qualquer coisa com a intenção de não demorar ali. A algazarra nos fundos escuros do estabelecimento fez-me virar o olhar e perceber que os clientes eram todos guineenses ainda jovens. Depois de os olhar fiquei com a sensação de que começaram a sussurrar e, de facto, logo a seguir, um levantou-se e disse de lá:
- Alferes Murta!

Olhei de novo mas meio perplexo, pois estava à civil e porque não reconheci ninguém naquela obscuridade. Então o indivíduo dirigiu-se para mim e, com ar de quem reencontra um amigo amnésico, perguntou:
- Então não me reconhece de Buba? Eu conhecia-o bem de Buba. Eu era 1.º Cabo do obus de lá, não se lembra de mim?

Claro que não lembrava. Disse-lhe que não era de Buba embora por lá passasse às vezes, mas aquela intimidade começou a deixar-me mal disposto. Mesmo assim, ainda encetámos uma conversa que eu queria que fosse breve, não lhe dando grande saída. Falou do aquartelamento, dos nomes de militares que ele referia como se fossem todos íntimos, lugares comuns sobre a tropa e, de súbito, orgulhoso e como se fizesse uma declaração que ia agradar aos dois, diz-me que era e que sempre fora membro do PAIGC. Tive um sobressalto e pus-me em guarda, ainda na dúvida de que fosse tudo bazófia. E se não fosse? Que acções teria executado em obediência ao PAIGC e em prejuízo das nossas tropas? Não cheguei a saber porque a conversa descambou: começou-se a falar das tropas especiais e dos pelotões de milícia que tinham combatido ao nosso lado e eu, conhecedor de que muitos destes se recusavam a entregar as armas, vergonhosamente abandonados pelas autoridades portuguesas, - militares e políticas -, quis saber o que pensava sobre a resolução deste problema que iria afectar milhares de combatentes guineenses. (Quando embarquei para Portugal o assunto estava longe de estar resolvido). Respondeu-me que os chefes dessas revoltas seriam todos fuzilados, mas que não iriam fazer mal a mais ninguém. Já fora de mim disse-lhe que a sorte desses combatentes era que a opinião dele não contaria para nada, era nula, revanchista e primária. Julgo que ainda lhe perguntei se o que acabara de dizer fazia parte da ética e dos princípios, dos lemas e das palavras de ordem do PAIGC, mas eu já só queria era virar-lhe as costas e sair dali. E foi isso que fiz.

Mas todos sabemos o que aconteceu. Este incidente, não tendo abalado em nada as minhas convicções, até por ter envolvido um actor insignificante, foi como que uma premonição. Mantenho as convicções, mas ficou definitivamente abalada a minha confiança nas causas aparentemente nobres, passando a considerar ao mesmo nível os responsáveis dessas causas e o indivíduo que se dizia 1.º Cabo de Buba.

Segue-se uma série de fotografias de Buba (reproduções de slides) provavelmente todas de 1974, e que podem agradar aos muitos camaradas que antes de mim por ali passaram.

Foto 1: Entardecer em Buba vendo-se o rio ao fundo. 

Foto 2: Entardecer em Buba: Vista do aquartelamento a partir do rio. 

Foto3: Passeantes ao fim da tarde. 

Foto 4: Idem. 

Foto 5: Menino de Buba e tabanca. 

Foto 6: Um aspecto da tabanca. 

Foto 7: Monumento do Pelotão de Morteiros 2138 – BC 10 / Jullho69 – Junho71. 

Foto 8: Instalações que me parecem ser o refeitório de oficiais e abrigo. 

Foto 9: Bar de oficiais e camaratas. 

Foto 10: O meu grupo de combate frente à capela numa desfocagem posterior ao 25 de Abril/74.

(continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15062: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (18): De 8 a 21 de Julho de 1973

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