Reflexão sobre a oportunidade (a falta dela) decorrente do MFA
Caros Luís e Vinhal,
Cantou-se durante antigamente que o tempo voltasse para trás. Não volta, nem há volta a dar-lhe. É passado, e pesam as consequências do que ficou por fazer, como do que foi feito. Este texto, na minha opinião, pode seguir-se ao último que enviei durante o mês passado e aguarda publicação, se tal for o vosso entendimento. Em vésperas de novo aniversário sobre o golpe volto a referir a descolonização, no pressuposto do abandono do ultramar. Em anteriores comentários já tive ocasião para mostrar alguns índices do desenvolvimento económico e social de Angola, que era o motor português para a sustentabilidade do modelo integracíonista prosseguido pela política de Salazar, que viria a passar por alterações com Caetano no reconhecimento da autonomia crescente daquela "província", dadas as diferenças entre elas de circunstâncias sócio-económicas.
"Já em pleno período terrorista, o problema do futuro do ultramar português foi posto, pelos próprios portugueses, no quadro destas quatro teses:
1.ª - O ultramar integrado no todo nacional - Portugal - com o qual ele constitui um território indivisível.
2.ª - A autonomia progressiva dos territórios ultramarinos (tese de Caetano).
3.ª - A autodeterminação, em cada território, decidindo livremente a integração no todo nacional (indivisível, ou federal, etc), ou a independência (tese de Spínola, mais apressada por ele próprio nas comunicações oficiais decorrentes da sua condição na Guiné, apesar da impreparação de algumas das províncias, designadamente a que governava).
4.ª - O abandono, puro e simples, dos territórios, aos movimentos terroristas, que se auto-intitulavam "movimentos de libertação".
A primeira tese ... ignorava as mais diversas realidades geo-étnicas ... sucedeu e opôs-se à política representada pelo Acto Colonial (1930) ... cada uma delas possuindo legislações próprias - política muito discutível, sem espírito de previsão salvo no que respeita uma eventual tentativa de redistribuição internacional dos territórios coloniais; porque ... as descolonizações começaram a realizar-se alguns anos depois, exigindo uma estratégia completamente diferente.
A tese da "integração" ... não tanto como estratégia de momento, mas sobretudo realidade histórica (foi) retomada apressadamente (1951) em substituição do Acto Colonial ... continuando a política de Paiva Couceiro ... seguida também por Norton de Matos. O engrandecimento de Portugal - diz N.M. - só se conseguirá pela Unidade da Nação - Todas as nossas leis se têm de basear na unidade nacional ... em primeiro lugar a unidade territorial ... haverá para tanto um organismo único - orientador, propulsor e fiscalizador, onde estejam representados todos os interesses nacionais. (...) a nossa dupla missão em Angola devia ser, segundo Norton de Matos, a de introduzir nesse território elementos demográficos metropolitanos, e a de civilizar a raça negra . (...) o elo essencial ou, pelo menos, indispensavelmente complementar desta "unidade", era a língua: "Enquanto os habitantes de Angola, Moçambique, Guiné, Índia e Timor não falarem todos correctamente o português, a Unidade Nacional não será perfeita e a civilização desses povos poderá fazer-se, mas conduzirá fatalmente a nacionalidades diversas. (...) tratava-se de uma "Unidade" que garantisse, em caso de independência, como no Brasil, a língua e o génio da cultura portuguesa". Mas até 1961, a política de integração ... foi mais retórica do que de realizações governamentais. A verdadeira colonização eram os colonos que a faziam; e foram os colonos que se opuseram aos terroristas em Angola, antes que as primeiras forças militares ... chegassem a África. Não se tratava de uma sublevação de populações, mas apenas de um movimento conduzido por aventureiros e ajudado por potências estrangeiras.
Foi nestas condições que Caetano tomou as funções de Presidente do Conselho (1968), já com a ideia da autonomia progressiva (2.ª tese), isto é, a autonomia administrativa e financeira. (...) as províncias ultramarinas "deviam reger-se por legislação própria, com respeito das culturas e dos usos e costumes das populações nativas". Em 1972 foram publicados a nova lei orgânica do ultramar português e os estatutos das suas diversas províncias (que consagravam a ideia de autonomia progressiva e participada). Economicamente, cada província mantinha o seu próprio sistema monetário e de câmbio, mas as saídas de divisas não podiam exceder as entradas - o que limitando as importações (equipamentos e bens de consumo), estimulou a criação de novas industrias em Angola e em Moçambique. Esta tese estava ... entre a de Norton de Matos (no que diz respeito à fixação do elemento branco português em Angola e Moçambique, e à mestiçagem) e o método de colonização do Brasil . " (...) "como não era admissível o abandono do Ultramar nem a proclamação de independências prematuras, sob o domínio de minorias brancas que teriam de assentar na força o seu governo ou entregando a aventureiros africanos a vida, os bens e o destino de fortes núcleos civilizados dotados de infra-estruturas e equipamentos técnicos modernos, tinha de se procurar uma via intermédia" (Caetano).
A colonização portuguesa foi, no seu conjunto histórico - reabilitando-se do do que ela pôde ou teve que ser cruel, para tornar-se a mais humana de todas - autodescolonizadora no próprio processo das relações humanas estabelecidas entre colonizados e colonizadores. Portanto, o neologismo "autodescolonização"... designa uma descolonização que se faria pela própria iniciativa dos colonos e da metrópole, obedecendo a essa força de relações humanas entre metropolitanos e autóctones, determinando a promoção destes à mesma cidadania daqueles, para uma mesma consciência nacional. (...) (tal autodescolonização) ... deve desenvolver-se pela mestiçagem. Se não houver mestiçagem, não se pode falar de autodescolonização, porque haverá, então, um apartheid ou separação pura e simples, em que uma das partes continua a colonizar a outra (ou então as duas comunidades tornar-se-iam independentes uma da outra)".
Para entendimento das boas intenções deste parágrafo, vou repetir a evolução demográfica registada em Luanda, no período de 1960 a 1970, que já divulguei em posts anteriores:
Em 1960 havia 55.567 brancos, que em 1970 já eram 126.817; no inicio do mesmo período, eram 13.593 mestiços, que passaram a 37.974; enquanto em 1960 os pretos que eram 155.325, passaram a ser em 1970, 312.290. Com outras origens, em 1960 eram 55 indivíduos, que em 1970 passaram a ser 247 (não se especifica onde foram integrados os indivíduos de origem asiática). Assim, constata-se que o número de brancos e pretos, de per si, quase duplicou, e os mestiços quase triplicaram, o que vem dar razão aos que afirmam o bom ambiente na cidade, e o crescente número de relações de paternidade entre brancos e pretos. Era porque a população se sentia à vontade e sem preconceitos. Depois do golpe, e antes da independência já se verificava a instilação de ódios racistas, que o MFA não se coibia de incrementar, conforme revela o General Silva Cardoso, "Angola, anatomia de uma tragédia", Oficina do Livro, que ainda pode ser encontrado em livrarias, mas mais barato e frequente em alfarrabistas.
Assim, desta breve análise a textos da autoria de Amorim de Carvalho, "O Fim Histórico de Portugal", Porto, 1977, que inclui passagens de Norton de Matos em "Memórias e Trabalhos da Minha Vida", e de Marcelo Caetano no seu livro "Depoimento", obras só disponíveis em alfarrabistas, podemos constatar que o MFA não passou de um conjunto de oficiais (depois alargado a milicianos e a sargentos e praças) de nula ou escassa formação política orientada para o bem e integridade das populações como compete a quaisquer forças armadas (revelou-se prestimoso em serviços para potências estrangeiras), não mostrou conhecimento sobre a estrutura da nação (os que, de início, eventualmente tenham acreditado nas boas intenções e justiça da atitude desencadeada), e que no espaço de um ano, através de reuniões e mensagens mais ou menos clandestinas, evoluiu de uma motivação profissional reivindicativa, para uma justificação de mudança e transformação nacional. Eram imberbes, podem agora arguir, e não se deram conta dos alcances da iniciativa.
As consequências já as conhecemos; pobreza, por falta de aparelho produtivo, destruído o anterior; perda da soberania, pela adopção obrigatória de normativos legais provenientes da Comunidade, susceptíveis de impedir ou obrigar a adopção de diferentes meios legislativos, para além de condicionarem medidas de carácter económico, financeiro, laboral, diplomático e outros; e indignidade de um povo que há 40 anos estende a mão à caridade (ainda os empréstimos que nos iludem e permitem alguma qualidade de vida), em consequência das demagógicas mentiras políticas, do que resulta o risco do banimento da independência, pela integração em nacionalidade mais forte, ou no ostracismo miserável de uma região abandonada pelos credores (tipo Albânia dos anos 70 com Enver Hoxha), que podem fartar-se de alimentar "projectos" revelados egoístas e insaciáveis a favor da plutocracia nacional estribada na subvenção dos partidos, ou na dúvida sobre a capacidade de retornos dos elevados montantes emprestados, que, neste momento, e pelo andar da carruagem - comum a todos os governos anteriores, é o que se afigura de mais viável. De facto, peço a alguém mais inteligente, que me demonstre como as sucessivas execuções orçamentais, sem expressão no aumento do produto, ou na expectativa sobre a capacidade produtiva, podem contribuir para a melhoria de vida dos portugueses, e permitir que a classe política continue a desbaratar verbas só justificadas no papel, a usufruir de rendimentos e privilégios desadequados à "democrática" condição nacional, e a cometer esse desaforo traiçoeiro de vender património público e sobrecarregar a população com os excessos de endividamento, vendas que não revelam quaisquer melhorias, quer das instituições, quer do equilíbrio económico-financeiro (amortizações e redução da dívida pública, que a privada deveria ter outras implicações.
Aqui chegados, já vimos por alto como a Descolonização foi um fracasso, sem termos recordado as infames traições aos africanos que integraram as FA; nem aos civis, brancos, pretos e mulatos que foram mortos ou desapossados dos seus bens e modos de vida; quanto ao Desenvolvimento, também é permanente a sensação de caducidade de uma sociedade que não se mostra auto-sustentável; e, por fim, sobre a Democracia, fica também demonstrado o livre arbítrio do MFA, que nunca pôs à consideração popular a avaliação dos seus procedimentos, antes, deu perseguição a muitos dos que clamavam contra a destruição das instituições e dos abusos cometidos sobre a vida normal das populações, sem nunca ter evidenciado a humildade de reflectir sobre os actos praticados ou estimulados, nem sobre as consequências registadas. Sobre o programa dos 3 dês, ficam desmascarados os benefícios do 25 de Abril, em oposição com a estrutura económica e social que garantia meios para o desenvolvimento português, apesar das previsíveis independências poderem alterar as situações de cada parcela, que deveriam contar com períodos de preparação e solidariedade, com vista à consolidação das respectivas autonomias.
Ter promovido eleições como o fez, equivaleu a dar (pseudo) escolha à população ainda "impreparada", crédula da bondade dos partidos, que não se deu conta do tabuleiro onde se disputou uma partida da guerra-fria, que influenciou as estratégias em África e na Península Ibérica; e sobre os partidos e os actos eleitorais, basta constatarmos a tradicional demagogia dos candidatos, contraditada logo que chegam ao poder e estabelecem os tradicionais esquemas e alianças, alicerçadas em despudorada impunidade. Como se diz popularmente, quem parte e reparte, e não fica com a melhor parte, ou é tolo, ou não tem arte. Pertenço ao grupo dos que não querem ser tolos, e tenho a ideia de que as boas empresas, são-no, porque fazem boas e frequentes auditorias. O que é o Estado senão uma grande empresa, a maior de cada nação, e quem deseja vê-la na falência?
Como não sou dono da verdade, chamo a atenção para a necessidade de interpretar o que deixo, daí suscitando uma de duas reacções: a adesão total ou parcial, ou a contestação. Lanço o repto aos contestatários para divulgarem os seus pontos de vista, e, daí, criarmos a possibilidade de podermos beneficiar de interessantes e construtivas trocas de impressões.
Abraços fraternos
JD
Notas:
- As frases entre comas referem-se a citações referenciadas no texto principal. As aspas abrem e fecham os períodos retirados do livro "O Fim Histórico de Portugal". Onde não há aspas nem comas, corresponde a textos da minha autoria, princípio e fim do texto.
- O presente texto destina-se a publicação no blogue www.blogueforanadaevaotres.blogspot.pt, de Luís Graça e Camaradas da Guiné.
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Nota do editor
Último poste da série de 26 de abril de 2016 Guiné 63/74 - P16021: (In)citações (88): Reflexão sobre o inicio da decadência nacional (José Manuel Matos Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679)