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segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9338: Memórias da CCAÇ 617 (2): Toby, o Cão da Tropa (João Sacôto)




1. Em mensagem do dia 7 de Janeiro de 2012 o nosso camarada João Sacôto (ex-Alf Mil da CCAÇ 617/BCAÇ 619, Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66), enviou-nos esta história quase inacreditável do seu cão Toby que o acompanhou na sua comissão de serviço na Guiné




MEMÓRIAS DA CCAÇ 617 - 2

Bissau > Santa Luzia > Quartel General > João Sacôto e o seu cão Toby

Toby o Cão da Tropa

Neste poste vou recuar um pouco cronologicamente.

Assentei praça em Mafra, em Agosto de 1962 após dois anos de adiamento, por mim pedidos, em virtude de estar a estudar no então ISCEF (Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras).
Tendo ficado bem qualificado no curso de oficiais milicianos (COM), fui colocado no RI 1 - Amadora e só fui mobilizado dois anos depois, em 1964 para a Guiné, já casado com vinte e cinco anos e uma filha que fez 2 anos exactamente no dia 8 de Janeiro data do embarque para a Guiné no Quanza.

Naquele 8 de Janeiro de 1964, embarcou comigo um elemento extra numerário, o meu cão Toby de raça boxer.

Na nossa estadia em Catió, sempre que saíamos do quartel para realizar alguma operação, fosse de dia ou de noite o Toby fazia questão de seguir com a tropa. Se alguma vez tentei que ele ficasse no aquartelamento, tive que o prender para que não nos acompanhasse.
A sua atitude no mato foi sempre de quem percebia o que se estava a passar, tanto em situações de emboscada, como em situações de patrulhamento, sempre atento e espectante.

Num dia de regresso ao quartel, caímos numa emboscada na estrada Cufar-Catió. Ficámos algum tempo sob fogo intenso e depois de conseguirmos pôr em debandada o inimigo, continuámos a nossa progressão para o quartel.
Estoirados de cansaço, porcos de sujidade e suor, desejosos de um bom banho refrescante e sedentos de uma bazuca bem gelada, só mais tarde, demos por falta do Toby, que, nesta altura já era conhecido pelo inimigo, como o cão da tropa (curioso, é o facto de, segundo julgo, toby, em balanta querer dizer chuva).
Ninguém se lembrava de o ter visto após a emboscada e foi grande a consternação durante os dois dias seguintes.

Durante uma patrulha na mesma estrada, o pessoal avistou ao longe, na berma do caminho um vulto que parecendo-lhes uma gasela ou uma cabra do mato se dispôs a dar-lhe um tiro, já antevendo algumas refeições de rancho melhorado. Porém ao aproximarem-se um pouco mais para garantirem um tiro certeiro, aperceberam-se no último momento que, afinal o objecto da sua caça era exactamente o Toby que se encontrava quase morto.
Transportado para a enfermaria, foi observado pelo médico da Companhia, o Ten. Mil. Cordeiro, que constatou ter o Toby sofrido o tiro de uma arma cuja bala lhe perfurou a barriga, tendo entrado e saído, deixando, portanto dois orifícios no abdómen.
A sua fraqueza nessa altura era extrema e durante muitos dias, sem força para se mover nem para comer, foi por mim alimentado a colheradas de papas de farinha dissolvida em água, até que lentamente foi recuperando até voltar a estar operacional.

Finda a comissão, não sei como mas a comunicação social, fez questão de fazer uma referencia ao Toby o cão da tropa.

No Cachil - Ilha do Como

Catió > Oficiais da CCAÇ 617 com o Toby

Chegada a Lisboa - Dever cumprido
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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 28 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9281: Memórias da CCAÇ 617 (1): A batalha de Bissau de Janeiro de 1964 (João Sacôto)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19507: Recortes de imprensa (102): "Diário de Notícias", 3/2/1966: o cão da CCAÇ 617. um bravo Boxer, que se bateu como um leão (João Sacôto / José Martins)


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > O valente Toby, um boxer... Ferido em combate, sobreviveu e regressou a casa com os seus "camaradas de guerra"... Infelizmente, e para grande desgosto do João Sacôto, teve de ser abatido por doença grave, infecciosa, contraída no TO da Guiné.  O João nunca mais voltou a ter um cão. "Amigo, guarda-costas, camarada"... são alguns dos epítetos que o seu dono a ele se referiu, em conversa que tivemos ao telefone... Acompanhou o João em diversas operações, e nunca o largava, nomeadamente quando o dono, sozinho, se embrenhava no mato para fazer as suas necessidades... Ficava de sentinela, não fosse o diabo tecê-las!... Um história, tocante, que faltava no nosso blogue...

Foto (e legenda): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Recorte do "Diárrio de Notícias", 3/2/1966

Fotos (e legendas): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


O Toby, junto com a malata da CCAÇ 617, desembarcando em Bissau,
em 15 de janeiro de 1964. Foto de João Sacôto (2019)
1. Mensagem de João Gabriel Sacôto Martins Fernande, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66),comandante da TAP reformado:

Data / Hora - 11/02, 14:45


Assunto - o meu cão Toby


Luis:

O meu cão Toby (*) era muito acarinhado pelo pessoal do batalhão [, o BCAÇ 619,] e famoso entre a população local de Catió. Regressou a Lisboa comigo, como documenta o "Diário de Notícias",  de 03/02/1966 (em artigo jornalisticamente trabalhado por excesso…) .

Acompanhou a companhia em algumas operações, assim como me fez companhia nos destacamentos que fiz em Ganjola e claro também nos acompanhou no último destacamento da CCAÇ  617 no Cachil, ilha do Como.

Quando foi ferido, durante uma das nossas operações [, no Cantanhez], não nos apercebemos da situação e foi só no dia seguinte que uma patrulha o avistou ao longe e estiveram a pontos de lhe dar um tiro, julgando tratar-se de uma gazela ou outro animal selvagem. Felizmente alguém gritou “Não atirem, é o Toby”. Encontrava-se quase desfalecido na berma da estrada já perto do quartel. A sua recuperação foi longa pois a sua fraqueza não lhe permitia nem levantar-se, nem alimentar-se normalmente. Foi recuperando as forças lentamente, alimentado com papas de farinha diluída em água que lhe ia dando com a ajuda de uma colher. 

Em boa verdade, ao contrário do que conta o jornalista, não foi operado, por decisão do nosso médico que achou ser preferível que as feridas com entrada e saída da bala fossem fechando lentamente e de dentro para fora, evitando uma infeção que poderia ocorrer, caso fosse suturado.

Um agradecimento ao José Martins.
Um abraço,  
JS


2. Mensagem do nosso colaborador permanente, José Martins, em complemento da mensagem anterior:

Data - segunda, 11/02, 18:51


Assunto - O  “cão-praça Toby”

Não estranhem o título.

No tempo em que a cavalaria era a cavalo, que os oficiais de  infantaria se deslocavam em cavalos e a artilharia era de tracção  animal (solípedes), os animais eram considerados “cavalo-praça” a que
se seguia o seu número de ordem.

Tinham direito a uma verba para alimentação e, era corrente nos  jornais de localidades em que existiam regimentos, haver concursos  para “fornecimento de forragens e palha”.

Veio isto a propósito de um recorte de jornal, devidamente explicado,  publicado no Diário de Noticias de 2 de Fevereiro de 1966, há portanto  53 anos [, reproduzido acima

A história vai ser escrita/contada pelo Luís mas, não me escuso de  antecipar um comentário, com base na notícia e descrição feita pelo  Sacôto.

Se o Toby tivesse nascido na terra do Tio Sam, hoje teríamos, nos anais militares, a existência do “cão-praça Toby” com direito a verba para a alimentação e coleira e trela fornecida pelos Serviços de
Material, depois de confeccionada por algum Sargento Artífice Correeiro.

Como cita o tratador, o referido cão-praça foi ferido em acção de combate, tendo desaparecido no decurso dessa operação. Em situação normal, dentro da anomalia da guerra que todos vivemos, ao ser dado como desaparecido em combate, o mesmo teria sido objecto de menção na Ordem de Serviço e, provavelmente, os helis teriam levantado para “bater o terreno de operação”.

Como foi recuperado em condições físicas graves, teria direito a ser socorrido num hospital VET. Como caso raro, seria posteriormente recebido pelo General Comandante-chefe e Governador da Província, para lhe colocar numa “Casaca bordeada a ouro” que seria confeccionada numa
qualquer rua de Bissau, uma condecoração.

Digam lá: Era um grande Ronco, não era?

Gandabraço
Zé Martins


3. Nova mensagem do João Sacôto,  com data de 11/02/2019, 19:24  



Obrigado José Martins. Gostei.

O fim da historia é um pouco triste:

Alguns meses após o nosso regresso da Guiné, o Toby  adoeceu. A sua doença foi-se agravando até que o levei ao veterinário que lhe diagnosticou uma infecção generalizada do sangue derivado dos imensos ataques dos famigerados mosquitos da Guiné.

Por mais esforços que eu fizesse, tentando protegê-lo dos ataques que ocorriam durante a noite enquanto dormia, pela manhã, no lugar em que tinha estado deitado, era notável uma mancha de sangue, creio que dos mosquitos por ele esmagados quando em desespero se voltava no lugar que lhe servia de leito.

Sem condição de cura da enfermidade, fui confrontado com a solução posta pelo médico veterinário de pôr termo ao seu sofrimento, aplicando-lhe a eutanásia.

Foi para mim muito doloroso mas foi também um acto de solidariedade pondo fim ao sofrimento do “cão-praça TobY”, meu amigo e "camarada de armas”.

Um abraço,
JS
_________________


domingo, 17 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19502: Álbum fotográfico de João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como, Cachil, 1964/66) e cmdt da TAP, reformado - Parte III: O meu cão Toby, que fez comigo uma comissão no CTIG, e que será depois ferido em combate no Cantanhez

´
N/M Quanza > 10 de janeiro de 1964 > O cão Toby, pertencente do alf mil inf João Sacôto, da CCAÇ 617, foi uma das estrelas da companhia...e efz uma comissão no TO da Guiné onde será ferido em combate...Embarcou no dia 8 de janeiro de 1964 e desembarca em Bissau a 15, juntamente o pessoal do BCAÇ 616 e as suas subunidades de quadrícula: CCAÇ 616, CCAÇ 617 e CCAÇ 618;O Diz o dono, orgulhos: "O meu cão o Toby seria mais tarde ferido em combate durante uma operação no Cantanhez, uma bala prefurou-lhe a barriga, foi tratado e recuperou".


Guiné > Bissau > Quartel General > s/d > c. 1964 > O alf mil João Sacôto e o seu companheiro, o cão Toby, ante de partirem para Catió.


Guiné >1964 > CCAÇ 617 > O Toby, a caminho de  Catió.


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 > c. 1964 > O alf mil João Sacôto e o seu  cão Toby,  na hora da higiene.


Guiné > Região de Tombali > Cachil , Ilha do Como  CCAÇ 617 >  s/d > O Toby nstrada de acesso ao cais no Cachil, Como.

Fotos (e legendas): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O João Sacôto {, João Gabriel Sacôto Martins Fernandes, de seu nome completo,] foi alf mil da CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66). Trabalhou depois como Oficial de Circulação Aérea (OCA) na DGAC [Direção Geral de Aeronáutica Civil]. Foi piloto e comandante na TAP, tendo-se reformado em 1998.

Estudou no Instituto Superior de Ciencias Económicas e Financeiras (ISCEF, hoje, ISEG) . Andou no Liceu Camões em 1948 e antes no Liceu Gil Vicente. É natural de Lisboa. É casado. Tem página no Facebook (a que aderiu em julho de 2009, sendo seguido por mais de 8 dezenas de pessoas. É membro da nossa Tabanca Grande desde 20/12/2011.

Continuação da publicação do seu álbum fotográfico: no poste anterior publicámos algumas fotos da chegada a Bissau, em 15/1/1964. Aqui esteve cerca de 2 meses, na dependência do BCAÇ 600. Parte da companhia ainda irá participar na Op Tridente, na ilha do Como (jan-março de 1964).

Neste poste mostram-se algumas fotos do valenet Toby,que será, no regresso, tratado como um herói pelo "Diário de Notícias", de 2/3/1966 (Poste a publicar oportunamente, na série "Recortes de Imprensa").
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segunda-feira, 11 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19575: Notas de leitura (1157): Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’, por Patrick Chabal e Toby Green; Hurst & Company, London, 2016 (4) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,
Se dúvidas subsistissem sobre a importância desta obra antológica elaborada por investigadores do mais alto nível e onde participaram estudiosos de mérito, essa dúvidas dissipam-se com as análises efetuadas na última parte do livro: o significado da diáspora; os fundamentos da etnicidade na turbulência política das últimas décadas; onde e como se impôs o Narco-Estado a partir do momento em que a militarização do regime subalternizou as instituições democráticas e como, em 2014, havia todos os ingredientes para encostar à parede a clique militar, após a vigilância norte-americana.
A instabilidade não passou mas as qualidades do povo, o elevado nível de convivência e a solidez das sociedades rurais indicam que a esperança se mantém de pé.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau: de Micro-Estado a Narco-Estado (4) 

Beja Santos 

Concluímos hoje as recensões sobre a obra “Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016, constituída por um acervo de estudos dedicados à memória de Patrick Chabal, falecido em Janeiro de 2014, e que idealizou até ao fim dos seus dias a organização desta análise coletiva com Toby Green. Obra constituída por três partes (fragilidades históricas; manifestações da crise e consequências políticas da crise) convocou nomes importantes da historiografia da Guiné-Bissau no plano internacional como Toby Green, Joshua B. Forrest, Philip J. Havik, entre outros. Doravante, não se poderá ter um grande ecrã das investigações deste tempo sem consultar análises tão pertinentes, algumas delas completamente ausentes nos estudos sobre a história contemporânea da Guiné-Bissau. Veja-se logo o primeiro estudo sobre a diáspora guineense depois do conflito político-militar, recordando as rotas clássicas da diáspora, a presença de guineenses em Portugal e um pouco por toda a Europa, lembrando que na diáspora ganhou relevo certos blogues como Didinho, Doka Internacional e Intelectuais Balantas na Diáspora. Aspeto que o autor considera é a dispersão de estudantes em muitas universidades como Marrocos, Argélia, Nigéria, Rússia, China, Senegal e Brasil. É também referido como vivem os migrantes nos subúrbios de Lisboa, como se processam as relações entre a diáspora e a pátria e dá-se a sugestão para a criação de um fórum entre guineenses em diáspora para promover o desenvolvimento e construir a paz, um lóbi que suporte iniciativas para o desenvolvimento da Guiné-Bissau.

Um outro autor debruça-se sobre a questão étnica e interétnica, a questão étnica não esteve ausente das eleições de 2014, e o exemplo mais claro foi dado pelo PRS – Partido da Renovação Social, que fez campanha sobre a aura da etnia Balanta, mas que não conseguiu sugestionar o eleitorado que preferiu José Mário Vaz. As grandes fraturas hoje existentes no PAIGC não assentam na etnicidade mas sim na concertação de grupos que querem chegar ao poder e manobrar negócios. O autor faz um breve historial da questão étnica do lado da luta armada e da sua exploração do lado colonial, as grandes tensões e confrontos dividirão guineenses e cabo-verdianos, assistir-se-á depois ao vexame dos Balantas, será a interetnicidade a ganhar força durante o conflito político-militar, Kumba Ialá exacerbará a questão étnica e tentará misturá-la com a questão religiosa, sem sucesso pois a convivência religiosa entre guineenses está de pedra e cal. A coligação entre os militares ligados à droga para destituir Raimundo Pereira e Carlos Gomes Júnior e afastar a influência angolana foi uma coligação de interesses devido à traficância de droga, explorando o sentimento de que a CEDEAO não aceitava Angola dentro deste quadro político e geoestratégico.

Num outro ensaio apreciam-se as questões de segurança na Guiné-Bissau no quadro da geopolítica global, são referidos os diferentes atores, as missões de paz das Nações Unidas, o histórico da política externa guineense desde a sua postura não-alinhada, depois da independência, a deslocação para a esfera francesa e a aceitação de pertencer à CEDEAO e a ascensão da instabilidade quando alguns políticos e militares aderiram ao tráfico da cocaína. Têm vindo a falhar as diferentes tentativas da reforma do Estado e das Forças Armadas, Angola fez propostas e pôs dinheiro em cima da mesa, os militares da droga perceberam que ficariam algemados, desencadearam um golpe de Estado. O investigador dá conta das tentativas desenvolvidas a partir da eleição de José Mário Vaz para se chegar a um plano de arranque para o desenvolvimento, foi assim que se criou o plano “Terra Ranka”, que chegou a ter previsto um financiamento superior a um bilião de dólares, a seguir veio a barafunda institucional, os doadores continuam à espera que as entidades guineenses dêem sinais de maturidade.

O impacto do Narco-Estado é matéria de outro estudo onde se parte da consideração que a militarização do regime, logo em 1980, por etapas sucessivas levou à anomia do quadro político por sujeição a uma clique militar que beneficia do trânsito da cocaína e da cumplicidade com o cartel colombiano. O aspeto curioso é que a chegada ao poder de José Mário Vaz era contemporâneo do enfraquecimento dessa clique graças à vigilância norte-americana coroada de êxito com a prisão de Bubo Na Tchuto e a neutralização de António Indjai. Esta instabilidade é acrescida com os acontecimentos do Casamansa, um conflito que precisa de instituições sólidas na Guiné-Bissau para pôr termo ao livre-trânsito de vendedores de águas, traficantes de crianças e mercenários na região.

A conclusão de todo este estudo cabe a Toby Green que resume admiravelmente a passagem da colónia da república independente e a multiplicidade dos conflitos que surgiram e refere os contextos adversos a partir de 1974: crise petrolífera, ascensão e consagração das teses neoliberais, crescentes desigualdades entre o Norte e o Sul à esfera global, passagem de um coletivismo demencial para um liberalismo que favoreceu uma certa clique do regime, a emergência de monocultura do caju, um sistema económico à deriva. Daí a resistência posta pelas sociedades rurais para sobreviverem a um sistema político autodevorador, em que em todas as instituições se cobiçam benefícios da ajuda externa e do financiamento de projetos. Os indicadores de desenvolvimento humano são dos mais baixos do mundo, mas o povo mantém-se admirável, pela sua convivência, pela sua esperança, pela sua energia cultural. Daí poder dizer-se que a construção da nação está em marcha enquanto o Estado faz parte do imaginário coletivo. Talvez a retoma ao princípio da justiça e da igualdade entre todos os povos da Guiné, que fez parte do sonho de Cabral, possa ser a mola de arranque para solidificar as estruturas da colaboração interétnica e estabelecer as novas bases da confiança mútua, dentro de um princípio consciente de aprender com os erros do passado e saber perdoar.
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Notas do editor

Postes anteriores de:

18 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19505: Notas de leitura (1151): Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’, por Patrick Chabal e Toby Green; Hurst & Company, London, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

25 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19526: Notas de leitura (1153): Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’, por Patrick Chabal e Toby Green; Hurst & Company, London, 2016 (2) (Mário Beja Santos)
e
4 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19548: Notas de leitura (1155): Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’, por Patrick Chabal e Toby Green; Hurst & Company, London, 2016 (3) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 8 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19562: Notas de leitura (1156): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (76) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16708: Notas de leitura (901): “Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016 (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,
Se dúvidas subsistissem sobre a importância desta obra antológica elaborada por investigadores do mais alto nível e onde participaram estudiosos de mérito, essa dúvidas dissipam-se com as análises efetuadas na última parte do livro: o significado da diáspora; os fundamentos da etnicidade na turbulência política das últimas décadas; onde e como se impôs o Narco-Estado a partir do momento em que a militarização do regime subalternizou as instituições democráticas e como, em 2014, havia todos os ingredientes para encostar à parede a clique militar, após a vigilância norte-americana. A instabilidade não passou mas as qualidades do povo, o elevado nível de convivência e a solidez das sociedades rurais indicam que a esperança se mantém de pé.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau: de Micro-Estado a Narco-Estado (4)

Beja Santos

Concluímos hoje as recensões sobre a obra “Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016, constituída por um acervo de estudos dedicados à memória de Patrick Chabal, falecido em Janeiro de 2014, e que idealizou até ao fim dos seus dias a organização desta análise coletiva com Toby Green. Obra constituída por três partes (fragilidades históricas; manifestações da crise e consequências políticas da crise) convocou nomes importantes da historiografia da Guiné-Bissau no plano internacional como Toby Green, Joshua B. Forrest, Philip J. Havik, entre outros. Doravante, não se poderá ter um grande ecrã das investigações deste tempo sem consultar análises tão pertinentes, algumas delas completamente ausentes nos estudos sobre a história contemporânea da Guiné-Bissau. Veja-se logo o primeiro estudo sobre a diáspora guineense depois do conflito político-militar, recordando as rotas clássicas da diáspora, a presença de guineenses em Portugal e um pouco por toda a Europa, lembrando que na diáspora ganharam relevo certos blogues como Didinho, Doka Internacional e Intelectuais Balantas na Diáspora. Aspeto que o autor considera é a dispersão de estudantes em muitas universidades como Marrocos, Argélia, Nigéria, Rússia, China, Senegal e Brasil. É também referido como vivem os migrantes nos subúrbios de Lisboa, como se processam as relações entre a diáspora e a pátria e dá-se a sugestão para a criação de um fórum entre guineenses em diáspora para promover o desenvolvimento e construir a paz, um lóbi que suporte iniciativas para o desenvolvimento da Guiné-Bissau.

Um outro autor debruça-se sobre a questão étnica e interétnica, a questão étnica não esteve ausente das eleições de 2014, e o exemplo mais claro foi dado pelo PRS – Partido da Renovação Social, que fez campanha sobre a aura da etnia Balanta, mas que não conseguiu sugestionar o eleitorado que preferiu José Mário Vaz. As grandes fraturas hoje existentes no PAIGC não assentam na etnicidade mas sim na concertação de grupos que querem chegar ao poder e manobrar negócios. O autor faz um breve historial da questão étnica do lado da luta armada e da sua exploração do lado colonial, as grandes tensões e confrontos dividirão guineenses e cabo-verdianos, assistir-se-á depois ao vexame dos Balantas, será a interetnicidade a ganhar força durante o conflito político-militar, Kumba Ialá exacerbará a questão étnica e tentará misturá-la com a questão religiosa, sem sucesso pois a convivência religiosa entre guineenses está de pedra e cal. A coligação entre os militares ligados à droga para destituir Raimundo Pereira e Carlos Gomes Júnior e afastar a influência angolana foi uma coligação de interesses devido à traficância de droga, explorando o sentimento de que a CEDEAO não aceitava Angola dentro deste quadro político e geoestratégico.

Num outro ensaio apreciam-se as questões de segurança na Guiné-Bissau no quadro da geopolítica global, são referidos os diferentes atores, as missões de paz das Nações Unidas, o histórico da política externa guineense desde a sua postura não-alinhada, depois da independência, a deslocação para a esfera francesa e a aceitação de pertencer à CEDEAO e a ascensão da instabilidade quando alguns políticos e militares aderiram ao tráfico da cocaína. Têm vindo a falhar as diferentes tentativas da reforma do Estado e das Forças Armadas, Angola fez propostas e pôs dinheiro em cima da mesa, os militares da droga perceberam que ficariam algemados, desencadearam um golpe de Estado. O investigador dá conta das tentativas desenvolvidas a partir da eleição de José Mário Vaz para se chegar a um plano de arranque para o desenvolvimento, foi assim que se criou o plano “Terra Ranka”, que chegou a ter previsto um financiamento superior a um bilião de dólares, a seguir veio a barafunda institucional, os doadores continuam à espera que as entidades guineenses deem sinais de maturidade.

O impacto do Narco-Estado é matéria de outro estudo onde se parte da consideração que a militarização do regime, logo em 1980, por etapas sucessivas levou à anomia do quadro político por sujeição a uma clique militar que beneficia do trânsito da cocaína e da cumplicidade com o cartel colombiano. O aspeto curioso é que a chegada ao poder de José Mário Vaz era contemporâneo do enfraquecimento dessa clique graças à vigilância norte-americana coroada de êxito com a prisão de Bubo Na Tchuto e a neutralização de António Indjai. Esta instabilidade é acrescida com os acontecimentos do Casamansa, um conflito que precisa de instituições sólidas na Guiné-Bissau para pôr termo ao livre-trânsito de vendedores de águas, traficantes de crianças e mercenários na região.

A conclusão de todo este estudo cabe a Toby Green que resume admiravelmente a passagem da colónia da república independente e a multiplicidade dos conflitos que surgiram e refere os contextos adversos a partir de 1974: crise petrolífera, ascensão e consagração das teses neoliberais, crescentes desigualdades entre o Norte e o Sul à esfera global, passagem de um coletivismo demencial para um liberalismo que favoreceu uma certa clique do regime, a emergência de monocultura do caju, um sistema económico à deriva. Daí a resistência posta pelas sociedades rurais para sobreviverem a um sistema político autodevorador, em que em todas as instituições se cobiçam benefícios da ajuda externa e do financiamento de projetos. Os indicadores de desenvolvimento humano são dos mais baixos do mundo, mas o povo mantém-se admirável, pela sua convivência, pela sua esperança, pela sua energia cultural. Daí poder dizer-se que a construção da nação está em marcha enquanto o Estado faz parte do imaginário coletivo. Talvez a retoma ao princípio da justiça e da igualdade entre todos os povos da Guiné, que fez parte do sonho de Cabral, possa ser a mola de arranque para solidificar as estruturas da colaboração interétnica e estabelecer as novas bases da confiança mútua, dentro de um princípio consciente de aprender com os erros do passado e saber perdoar.
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Notas do editor

Postes anteriores de:

31 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16660: Notas de leitura (897): “Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

4 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16681: Notas de leitura (898): “Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016 (2) (Mário Beja Santos)
e
7 de Novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16692: Notas de leitura (899): “Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016 (3) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 7 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16697: Notas de leitura (900): a História do BEng 447, que todos conhecemos. Um publicação que merece ser conhecida e lida (António J. Pereira da Costa, cor art ref)

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16660: Notas de leitura (897): “Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Outubro de 2016:

Queridos amigo,
Tanto quanto sei, é a mais importante obra publicada este ano sobre a Guiné-Bissau por investigadores internacionais credenciados. Toby Green, do King's College de Londres, assume a homenagem a Patrick Chabal, um dos biógrafos de Amílcar Cabral, organizando um conjunto de valiosos ensaios onde a etnicidade, a fragilidade do Estado, as instituições coloniais e pós-coloniais, as manifestações de crise e o impacto do Narco-Estado e os riscos e ameaças que pendem nos países da sub-região. Os investigadores aceitaram este desafio da complexidade, na interseção do colonial com o pós-colonial e o resultado salta à vista: um documento poderoso, incontornável, sobre a Guiné-Bissau do nosso tempo.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau: de Micro-Estado a Narco-Estado (1)

Beja Santos

"Guinea-Bissau, Micro-State to 'Narco-State'", por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016, é constituído por um acervo de estudos dedicados à memória de Patrick Chabal, falecido em Janeiro de 2014, e que idealizou até ao fim dos seus dias a organização desta obra com Toby Green. Obra constituída por três partes (fragilidades históricas; manifestações da crise e consequências políticas da crise) convocou nomes importantes da historiografia da Guiné-Bissau no plano internacional como Toby Green, Joshua B. Forrest, Philip J. Havik, entre outros. O livro inclui glossário e acrónimos, dados biográficos de personalidades influentes, sinopse de acontecimentos relevantes e biografia dos investigadores.

Toby Green contextualiza a natureza do trabalho, a natureza da sua instabilidade, as suas implicações no tráfico das drogas e a necessidade de estudar a Guiné-Bissau para compreender o país como um estado da África pós-colonial, com outras questões implicativas como seja a instabilidade da Guiné face às questões da segurança global e quais as condições necessárias para que a Guiné-Bissau encontre estabilidade. E lança algumas reflexões para se entender a especificidade do país: a singularidade do caso humano nas suas etnias e línguas e como se dispõe pelo território; o facto de durante muitos séculos o país ter sido um espaço para interações e cruzamentos culturais; a situação de que os navegadores portugueses aportaram à região quando os Mandingas do Mali eram um império e como a região veio a fazer parte da poderosa federação; a geografia do país concorreu para tornar os povos da região um refúgio seguro das incursões do império do Mali nomeadamente nos séculos XIII e XIV; uma multiplicidade de fatores concorreu para tornar estes povos hostis a um qualquer poder centralizador; a investigação permite encontrar linearidade endémica para cooperação étnica nas fases pré-colonial, colonial e pós-colonial.

O falhanço económico-financeiro guineense pós-independência convidou a que o país ficasse convidativo para o tráfico de drogas, mormente da Colômbia. A Guiné-Bissau tornou-se um ponto de chegada e distribuição, neste comércio se envolveram importantes figuras militares, políticos e distribuidores. Toby Green tece uma detalhada observação sobre a tragédia do Narco-Estado, não deixando, porém de recordar que o país tem ainda disponibilidade para soluções no quadro do desenvolvimento, do emprego e da criação de riqueza atendendo às potencialidades agrícolas, florestais e píscolas. Estamos agora na primeira parte, a dimensão da etnicidade histórica. As categoria étnicas do período pré-colonial estão hoje muito melhor identificadas e permitem apurar que esses povos foram manifestamente relutantes ao poder imperial, celebraram casamentos mistos e cooperaram até na criação de novas povoações, aceitando-se nas suas diferenças. O período colonial, até ao século XIX, não afetou a essência destas linhagens das comunidades rurais, o colono ou o negreiro contratavam a compra de escravos ou de mercadorias com um régulo, não faziam incursões para ocupar território; a situação agudiza-se com um comércio que se intensifica, com a chegada de um funcionalismo, a montagem de uma administração, a imposição de impostos, tudo contribuiu para que o alargamento de influência do poder colonial gerasse tumulto na ordem estabelecida, mas a identidade étnica manteve-se, os agricultores continuaram a agricultar e a vender livremente; a “pacificação”, a obra brutal de Teixeira Pinto modificou superficialmente as regras do jogo; um dos investigadores desta obra, Philip Havik, mostra claramente como os negócios da CUF através da Sociedade Ultramarina, Barbosa & Comandita e Casa Gouveia se processavam num certo enquadramento administrativo e havia as tensões dos preços mas os comerciantes também tinham a noção de que os agricultores podiam ir vender os seus bens no Casamansa ou na Guiné Francesa.

As comunidades rurais não só não esqueceram o legado de violência que acompanhou a pacificação como, após a independência, manifestaram relutância ao novo poder que rapidamente sentiram como uma extorsão nos preços, na ameaça de impostos, tudo isto acrescido do facto da etnia Balanta, o principal aliado de Amílcar Cabral, ter passado a sinónimo de repressor militar. O contexto é complexo nas suas envolventes: a rejeição cabo-verdiana pelos guineenses, estes sempre encarados com agentes da potência colonial, a permanente suspeita, durante a luta armada, que entendeu sobre os líderes cabo-verdianos do PAIGC. Nessas mesmas comunidades rurais a cooperação multissecular impediu conflitos religiosos, de uma parte etnias como os Felupes, os Balantas, os Bijagós e os Manjacos eram animistas e impermeáveis às regiões monoteístas, de outra parte os Fulas e os Mandingas e o seu proselitismo, aliás bem-sucedido, foram estendendo a sua influência e catequisando Beafadas, povos do Oio, entre outros. Mesmo durante o período colonial e até à luta armada as migrações processavam-se com grande tranquilidade e diálogo. No período pós-colonial, os líderes políticos promoveram os interesses da família e da etnia, tal o poder dos vínculos, esta atração da etnicidade acabou por concorrer para que o Estado fosse volátil.

Joshua Forrest analisa as instituições políticas dos períodos colonial e pós-colonial. Começa por observar que em muitos aspetos a Guiné Portuguesa tinha um modelo do governo típico, era muito semelhante ao de outras colónias: cordão umbilical com a metrópole; uma administração com profissionais preparados ou aprovados por Lisboa e que fundamentalmente se orientava para o desenvolvimento de infraestruturas que servissem para o aproveitamento dos recursos agrícolas para exportação, com esse mapa de estradas era mais fácil recolher os impostos para suportar a burocracia colonial. Contudo, a Guiné era um apêndice burocrático de Cabo Verde, daqui vinham os mais qualificados funcionários, até porque os metropolitanos temiam o clima inóspito. Foi este o Estado que herdou o PAIGC, não trazia quadros da altura, Bissau era uma tentação, tinha ruas alcatroadas e comércio, casas com água canalizada, um porto bem apetrechado, um aeroporto moderno, hospital, instalações adequadas para ali montar ministérios incipientes. Ninguém deu ouvidos às advertências de Cabral que propunha a regionalização e reduzir o significado de Bissau. Criou-se uma administração empolada e impreparada, desenvolveu-se o amiguismo, montaram-se negócios à volta da ajuda internacional, desviou-se de dinheiro para pagar os salários dos professores para satisfazer outras necessidades. Joshua Forrest explana sobre a política cultural, as Forças Armadas, os equívocos à volta da figura do Presidente, a ascensão dos militares ao poder, para concluir sobre a fragilidade do Estado, as disfunções da burocracia governamental e a anomia da própria justiça. A Guiné-Bissau nunca julgou em tribunal um só conspirador, um assassínio político, um ministro corrupto. Ninguém acredita nas leis do Estado.

A capa do livro é elucidativa da anomia, do equívoco e da desmemória a que está entregue a Guiné-Bissau: vemos a estátua de bronze de Amílcar Cabral jazente num camião militar onde está há mais de uma década.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16650: Notas de leitura (896): “A Guerra da Guiné”, por António Trabulo com a colaboração de Leston Bandeira, Editorial Cristo Negro, 2014 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19505: Notas de leitura (1151): Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’, por Patrick Chabal e Toby Green; Hurst & Company, London, 2016 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Outubro de 2016:

Queridos amigo,
Tanto quanto sei, é a mais importante obra publicada neste ano de 2016 sobre a Guiné-Bissau por investigadores internacionais credenciados. Toby Green, do King's College de Londres, assume a homenagem a Patrick Chabal, um dos biógrafos de Amílcar Cabral, organizando um conjunto de valiosos ensaios onde a etnicidade, a fragilidade do Estado, as instituições coloniais e pós-coloniais, as manifestações de crise e o impacto do Narco-Estado e os riscos e ameaças que pendem nos países da sub-região.
Os investigadores aceitaram este desafio da complexidade, na interseção do colonial com o pós-colonial e o resultado salta à vista: um documento poderoso, incontornável, sobre a Guiné-Bissau do nosso tempo.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau: de Micro-Estado a Narco-Estado (1)

Beja Santos

Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016, é constituído por um acervo de estudos dedicados à memória de Patrick Chabal, falecido em Janeiro de 2014, e que idealizou até ao fim dos seus dias a organização desta obra com Toby Green. Obra constituída por três partes (fragilidades históricas; manifestações da crise e consequências políticas da crise) convocou nomes importantes da historiografia da Guiné-Bissau no plano internacional como Toby Green, Joshua B. Forrest, Philip J. Havik, entre outros. O livro inclui glossário e acrónimos, dados biográficos de personalidades influentes, sinopse de acontecimentos relevantes e biografia dos investigadores.

Toby Green contextualiza a natureza do trabalho, a natureza da sua instabilidade, as suas implicações no tráfico das drogas e a necessidade de estudar a Guiné-Bissau para compreender o país como um estado da África pós-colonial, com outras questões implicativas como seja a instabilidade da Guiné face às questões da segurança global e quais as condições necessárias para que a Guiné-Bissau encontre estabilidade. E lança algumas reflexões para se entender a especificidade do país: a singularidade do caso humano nas suas etnias e línguas e como se dispõe pelo território; o facto de durante muitos séculos o país ter sido um espaço para interações e cruzamentos culturais; a situação de que os navegadores portugueses aportaram à região quando os Mandingas do Mali eram um império e como a região veio a fazer parte da poderosa federação; a geografia do país concorreu para tornar os povos da região um refúgio seguro das incursões do império do Mali nomeadamente nos séculos XIII e XIV; uma multiplicidade de fatores concorreu para tornar estes povos hostis a um qualquer poder centralizador; a investigação permite encontrar linearidade endémica para cooperação étnica nas fases pré-colonial, colonial e pós-colonial.

O falhanço económico-financeiro guineense pós-independência convidou a que o país ficasse convidativo para o tráfico de drogas, mormente da Colômbia. A Guiné-Bissau tornou-se um ponto de chegada e distribuição, neste comércio se envolveram importantes figuras militares, políticos e distribuidores. Toby Green tece uma detalhada observação sobre a tragédia do Narco-Estado, não deixando, porém de recordar que o país tem ainda disponibilidade para soluções no quadro do desenvolvimento, do emprego e da criação de riqueza atendendo às potencialidades agrícolas, florestais e píscolas.

Estamos agora na primeira parte, a dimensão da etnicidade histórica. As categoria étnicas do período pré-colonial estão hoje muito melhor identificadas e permitem apurar que esses povos foram manifestamente relutantes ao poder imperial, celebraram casamentos mistos e cooperaram até na criação de novas povoações, aceitando-se nas suas diferenças. O período colonial, até ao século XIX, não afetou a essência destas linhagens das comunidades rurais, o colono ou o negreiro contratavam a compra de escravos ou de mercadorias com um régulo, não faziam incursões para ocupar território; a situação agudiza-se com um comércio que se intensifica, com a chegada de um funcionalismo, a montagem de uma administração, a imposição de impostos, tudo contribuiu para que o alargamento de influência do poder colonial gerasse tumulto na ordem estabelecida, mas a identidade étnica manteve-se, os agricultores continuaram a agricultar e a vender livremente; a “pacificação”, a obra brutal de Teixeira Pinto, modificou superficialmente as regras do jogo; um dos investigadores desta obra, Philip Havik, mostra claramente como os negócios da CUF através da Sociedade Ultramarina, Barbosa & Comandita e Casa Gouveia se processavam num certo enquadramento administrativo e havia as tensões dos preços mas os comerciantes também tinham a noção de que os agricultores podiam ir vender os seus bens no Casamansa ou na Guiné Francesa.

As comunidades rurais não só não esqueceram o legado de violência que acompanhou a pacificação como, após a independência, manifestaram relutância ao novo poder que rapidamente sentiram como uma extorsão nos preços, na ameaça de impostos, tudo isto acrescido do facto da etnia Balanta, o principal aliado de Amílcar Cabral, ter passado a sinónimo de repressor militar. O contexto é complexo nas suas envolventes: a rejeição cabo-verdiana pelos guineenses, estes sempre encarados com agentes da potência colonial, a permanente suspeita, durante a luta armada, que entendeu sobre os líderes cabo-verdianos do PAIGC. Nessas mesmas comunidades rurais a cooperação multissecular impediu conflitos religiosos, de uma parte etnias como os Felupes, os Balantas, os Bijagós e os Manjacos eram animistas e impermeáveis às regiões monoteístas, de outra parte os Fulas e os Mandingas e o seu proselitismo, aliás bem-sucedido, foram estendendo a sua influência e catequisando Beafadas, povos do Oio, entre outros. Mesmo durante o período colonial e até à luta armada as migrações processavam-se com grande tranquilidade e diálogo. No período pós-colonial, os líderes políticos promoveram os interesses da família e da etnia, tal o poder dos vínculos, esta atração da etnicidade acabou por concorrer para que o Estado fosse volátil.

Joshua Forrest analisa as instituições políticas dos períodos colonial e pós-colonial. Começa por observar que em muitos aspetos a Guiné Portuguesa tinha um modelo do governo típico, era muito semelhante ao de outras colónias: cordão umbilical com a metrópole; uma administração com profissionais preparados ou aprovados por Lisboa e que fundamentalmente se orientava para o desenvolvimento de infraestruturas que servissem para o aproveitamento dos recursos agrícolas para exportação, com esse mapa de estradas era mais fácil recolher os impostos para suportar a burocracia colonial.

Contudo, a Guiné era um apêndice burocrático de Cabo Verde, daqui vinham os mais qualificados funcionários, até porque os metropolitanos temiam o clima inóspito. Foi este o Estado que herdou o PAIGC, não trazia quadros da altura, Bissau era uma tentação, tinha ruas alcatroadas e comércio, casas com água canalizada, um porto bem apetrechado, um aeroporto moderno, hospital, instalações adequadas para ali montar ministérios incipientes. Ninguém deu ouvidos às advertências de Cabral que propunha a regionalização e reduzir o significado de Bissau. Criou-se uma administração empolada e impreparada, desenvolveu-se o amiguismo, montaram-se negócios à volta da ajuda internacional, desviou-se de dinheiro para pagar os salários dos professores para satisfazer outras necessidades. Joshua Forrest explana sobre a política cultural, as Forças Armadas, os equívocos à volta da figura do Presidente, a ascensão dos militares ao poder, para concluir sobre a fragilidade do Estado, as disfunções da burocracia governamental e a anomia da própria justiça. A Guiné-Bissau nunca julgou em tribunal um só conspirador, um assassínio político, um ministro corrupto. Ninguém acredita nas leis do Estado.

A capa do livro é elucidativa da anomia, do equívoco e da desmemória a que está entregue a Guiné-Bissau: vemos a estátua de bronze de Amílcar Cabral jazente num camião militar onde está há mais de uma década.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19496: Notas de leitura (1150): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (73) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16692: Notas de leitura (899): “Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,
Na sequência das análises que se tem feito a um importante livro que é um homenagem a um grande investigador, Patrick Chabal, dois autores apreciam as instituições da sociedade rural e a sua proverbial estabilidade que agora estão em mudança graças a vários fatores: a arbitrariedade dos preços do caju, a crescente procura de trabalho no exterior, a ameaça de segurança alimentar (entenda-se o risco e não haver comida para todos, até agora tem havido, a ameaça permanente é a subnutrição).
Outros dois autores dão-nos um quadro bem curioso do pluralismo religioso e da convivência interétnica, que permite a previsão de que não há condições para a presença avassaladora do terrorismo e fundamentalismo islâmico.
Por último, outro autor aborda a descriminação de género, um dos aspetos mais grotescos do incumprimento das promessas de Amílcar Cabral, isto quando a mulher combateu ao lado do homem, destemidamente, na luta de libertação.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau: de Micro-Estado a Narco-Estado (3)

Beja Santos

“Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016, é constituído por um acervo de estudos dedicados à memória de Patrick Chabal, falecido em Janeiro de 2014, e que idealizou até ao fim dos seus dias a organização desta obra com Toby Green. Obra constituída por três partes (fragilidades históricas; manifestações da crise e consequências políticas da crise) convocou nomes importantes da historiografia da Guiné-Bissau no plano internacional como Toby Green, Joshua B. Forrest, Philip J. Havik, entre outros.

A introdução e a primeira parte, dedicada às fragilidades históricas, motivaram os dois primeiros textos. Iniciamos hoje a segunda parte, centrada nas manifestações de crise. Marina Parão Temudo e Manuel Bivar Abrantes retomam a questão da estabilidade social e do modo de viver rural. Tenha-se em conta o que outros autores já referiram: o caráter suave do Estado da Guiné-Bissau, a sua ineficácia no processo de elaboração de políticas, o seu gradual desfasamento fazer chegar as instâncias do PAIGC à sociedade rural, aos poucos a participação política foi-se restringindo; foram exíguos os investimentos na agricultura, soçobraram as medidas de nacionalização do import/export e a nacionalização das terras não passou de uma utopia. Para estes dois autores as sociedades rurais guineenses foram resilientes, fizeram frente aos desaires do Estado, resistiram às suas prepotências e irresponsabilidades com a política agrícola. Mas o conflito político-militar de 1998-1999 apanhou as sociedades rurais já na monocultura do caju, as deslocações maciças de população desestabilizaram as formas de viver, uma coisa é a pobreza com alimentação e mesmo focos de subnutrição, outra coisa é subitamente as tabancas do interior serem confrontadas com insegurança alimentar. Até recentemente, estes pequenos agricultores e os ponteiros conseguiam uma harmonia precária entre a comida de subsistência e a produção de troca e a exportação, nomeadamente o caju. Está devidamente estudado que a intervenção colonial não desarticulou, dentro de certos limites, este precário equilíbrio nas sociedades rurais. O amendoim foi o produto de exportação por excelência entre 1846 e 1974. Houve igualmente exportação de arroz para a Europa, que se iniciou na década de 1930, a guerra de libertação inverteu esta tendência. Distinguem-se fundamentalmente os modos de sobrevivência alimentar dos povos animistas (com os Balantas e os Manjacos à cabeça) dos muçulmanos. Seja como for, é na diversidade étnica que se encontram formas complementares destes sistemas de modo de vida que integram cereais, coconote, óleo de palma, arroz, com uma correspondente economia de troca, onde pode entrar carne, pescas, frutos e outros produtos. A guerra de 1998 levou a que mais de 200 mil guineenses urbanos tenham procurado refúgio nos campos, houve que encontrar acolhimento e amortecimento ao choque de providenciar comida em tão grandes quantidades aos refugiados. Os autores abordam o fenómeno das pontas exploradas ao tempo em que houve financiamentos durante o processo de ajustamento estrutural, agravou as desigualdades sociais e criou uma nova elite política e financeira que, de um modo geral não pagou ao Estado os créditos concedidos pelas linhas generosas desse dinheiro vindo do exterior. Os autores fazem uma análise demorada das mudanças sociais que se estão a operar na vida comunitária cuja evidência é a explosão migratória, a perda da autoridade dos mais velhos e o crescente número de casamentos interétnicos. A monocultura do caju está a revelar-se um desastre, os agricultores estão cada vez mais dependentes de compradores que jogam com as baixas cotações do mercado internacional, a Índia está a tornar-se um feroz competidor e o mercado dos cereais é cada vez mais instável. As mudanças em curso estão a reduzir a solidariedade nas comunidades rurais.

Bem curioso é o artigo de Ramon Sarró e de Miguel de Barros sobre a convivência entre credos religiosos, entre crentes monoteístas e animistas. É crescente a presença da religião na esfera pública e o pluralismo de opiniões é uma moeda corrente. Os autores dão como exemplo a povoação de Enxalé onde há 8 diferentes línguas, uma mesquita, uma igreja católica, um templo protestante, neopentecostais e balobeiras, membros do movimento profético Kyang-yang, onde se misturam elementos simbólicos do Islão, da cristandade e da religião Balanta. Eles analisam historicamente o mapa religioso da Guiné-Bissau a partir das etnias, das práticas religiosas, para concluir que até ao presente têm funcionado com sucesso todos os processos de mediação entre convicções religiosas, acentuando que em pleno conflito político militar todos os atores se reuniram fazendo um apelo à paz.

O último artigo é da responsabilidade de Aliou Ly que analisa as relações de género na Guiné-Bissau destacando que todas as promessas de Cabral no campo da promoção da mulher têm sido ignoradas pelos sucessivos poderes, ao longo de 40 anos. A mulher continua marginalizada do sistema político, o seu contributo nas estruturas sociais e económicas está praticamente limitado ao trabalho braçal e a obedecer sem reticências ao homem, estão sub-representadas no sistema educativo, administrativo e nas instituições políticas de todo o tipo. Estuda o impacto da marginalização da mulher na Guiné pós-independente, a despeito de muitas licenciadas que se impõem no mundo dos negócios. As leis contra a discriminação de género não são respeitadas, é notória a resistência masculina como se mantêm inúmeras desigualdades de classe e étnicas que agravam a condição da mulher. Nos primeiros anos da independência ainda se falava nas heroínas como Titina Sila, referindo-se sempre com respeito mulheres como Francisca Pereira ou Carmen Pereira. O autor atribui responsabilidades a este fenómeno discriminatório logo à governação de Luís Cabral, teria começado aqui o círculo vicioso da desigualdade de género e da imposição da ordem masculina. Os homens emigram para os países limítrofes, as mulheres ficam com cada vez mais trabalho na tabanca e na vida familiar. O paradoxo de tudo é que Amílcar Cabral tinha prometido que se construiria um país com igualdade e melhor vida para todos.

O próximo e último artigo centra-se na diáspora guineense depois de 1998, as consequências políticas da crise e o aparecimento do Narco-Estado e Toby Green apresenta as suas conclusões.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16681: Notas de leitura (898): “Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 4 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19548: Notas de leitura (1155): Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’, por Patrick Chabal e Toby Green; Hurst & Company, London, 2016 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,
Na sequência das análises que se tem feito a um importante livro que é uma homenagem a um grande investigador, Patrick Chabal, dois autores apreciam as instituições da sociedade rural e a sua proverbial estabilidade que agora estão em mudança graças a vários fatores: a arbitrariedade dos preços do caju, a crescente procura de trabalho no exterior, a ameaça de segurança alimentar (entenda-se o risco e não haver comida para todos, até agora tem havido, a ameaça permanente é a subnutrição).
Outros dois autores dão-nos um quadro bem curioso do pluralismo religioso e da convivência interétnica, que permite a previsão de que não há condições para a presença avassaladora do terrorismo e fundamentalismo islâmico.
Por último, outro autor aborda a descriminação de género, um dos aspetos mais grotescos do incumprimento das promessas de Amílcar Cabral, isto quando a mulher combateu ao lado do homem, destemidamente, na luta de libertação.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau: de Micro-Estado a Narco-Estado (3)

Beja Santos

“Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016, é constituído por um acervo de estudos dedicados à memória de Patrick Chabal, falecido em Janeiro de 2014, e que idealizou até ao fim dos seus dias a organização desta obra com Toby Green. Obra constituída por três partes (fragilidades históricas; manifestações da crise e consequências políticas da crise) convocou nomes importantes da historiografia da Guiné-Bissau no plano internacional como Toby Green, Joshua B. Forrest, Philip J. Havik, entre outros.

A introdução e a primeira parte, dedicada às fragilidades históricas, motivaram os dois primeiros textos.
Iniciamos hoje a segunda parte, centrada nas manifestações de crise. Marina Padrão Temudo e Manuel Bivar Abrantes retomam a questão da estabilidade social e do modo de viver rural. Tenha-se em conta o que outros autores já referiram: o caráter suave do Estado da Guiné-Bissau, a sua ineficácia no processo de elaboração de políticas, o seu gradual desfasamento fazer chegar as instâncias do PAIGC à sociedade rural, aos poucos a participação política foi-se restringindo; foram exíguos os investimentos na agricultura, soçobraram as medidas de nacionalização do import/export e a nacionalização das terras não passou de uma utopia. Para estes dois autores as sociedades rurais guineenses foram resilientes, fizeram frente aos desaires do Estado, resistiram às suas prepotências e irresponsabilidades com a política agrícola. Mas o conflito político-militar de 1998-1999 apanhou as sociedades rurais já na monocultura do caju, as deslocações maciças de população desestabilizaram as formas de viver, uma coisa é a pobreza com alimentação e mesmo focos de subnutrição, outra coisa é subitamente as tabancas do interior serem confrontadas com insegurança alimentar. Até recentemente, estes pequenos agricultores e os ponteiros conseguiam uma harmonia precária entre a comida de subsistência e a produção de troca e a exportação, nomeadamente o caju.

Está devidamente estudado que a intervenção colonial não desarticulou, dentro de certos limites, este precário equilíbrio nas sociedades rurais. O amendoim foi o produto de exportação por excelência entre 1846 e 1974. Houve igualmente exportação de arroz para a Europa, que se iniciou na década de 1930, a guerra de libertação inverteu esta tendência. Distinguem-se fundamentalmente os modos de sobrevivência alimentar dos povos animistas (com os Balantas e os Manjacos à cabeça) dos muçulmanos. Seja como for, é na diversidade étnica que se encontram formas complementares destes sistemas de modo de vida que integram cereais, coconote, óleo de palma, arroz, com uma correspondente economia de troca, onde pode entrar carne, pescas, frutos e outros produtos. A guerra de 1998 levou a que mais de 200 mil guineenses urbanos tenham procurado refúgio nos campos, houve que encontrar acolhimento e amortecimento ao choque de providenciar comida em tão grandes quantidades aos refugiados. Os autores abordam o fenómeno das pontas exploradas ao tempo em que houve financiamentos durante o processo de ajustamento estrutural, agravou as desigualdades sociais e criou uma nova elite política e financeira que, de um modo geral não pagou ao Estado os créditos concedidos pelas linhas generosas desse dinheiro vindo do exterior. Os autores fazem uma análise demorada das mudanças sociais que se estão a operar na vida comunitária cuja evidência é a explosão migratória, a perda da autoridade dos mais velhos e o crescente número de casamentos interétnicos. A monocultura do caju está a revelar-se um desastre, os agricultores estão cada vez mais dependentes de compradores que jogam com as baixas cotações do mercado internacional, a Índia está a tornar-se um feroz competidor e o mercado dos cereais é cada vez mais instável. As mudanças em curso estão a reduzir a solidariedade nas comunidades rurais.

Bem curioso é o artigo de Ramon Sarró e de Miguel de Barros sobre a convivência entre credos religiosos, entre crentes monoteístas e animistas. É crescente a presença da religião na esfera pública e o pluralismo de opiniões é uma moeda corrente. Os autores dão como exemplo a povoação de Enxalé onde há 8 diferentes línguas, uma mesquita, uma igreja católica, um templo protestante, neopentecostais e balobeiras, membros do movimento profético Kyang-yang, onde se misturam elementos simbólicos do Islão, da cristandade e da religião Balanta. Eles analisam historicamente o mapa religioso da Guiné-Bissau a partir das etnias, das práticas religiosas, para concluir que até ao presente têm funcionado com sucesso todos os processos de mediação entre convicções religiosas, acentuando que em pleno conflito político militar todos os atores se reuniram fazendo um apelo à paz.

O último artigo é da responsabilidade de Aliou Ly que analisa as relações de género na Guiné-Bissau destacando que todas as promessas de Cabral no campo da promoção da mulher têm sido ignoradas pelos sucessivos poderes, ao longo de 40 anos. A mulher continua marginalizada do sistema político, o seu contributo nas estruturas sociais e económicas está praticamente limitado ao trabalho braçal e a obedecer sem reticências ao homem, estão sub-representadas no sistema educativo, administrativo e nas instituições políticas de todo o tipo. Estuda o impacto da marginalização da mulher na Guiné pós-independente, a despeito de muitas licenciadas que se impõem no mundo dos negócios. As leis contra a discriminação de género não são respeitadas, é notória a resistência masculina como se mantêm inúmeras desigualdades de classe e étnicas que agravam a condição da mulher. Nos primeiros anos da independência ainda se falava nas heroínas como Titina Sila, referindo-se sempre com respeito mulheres como Francisca Pereira ou Carmen Pereira. O autor atribui responsabilidades a este fenómeno discriminatório logo à governação de Luís Cabral, teria começado aqui o círculo vicioso da desigualdade de género e da imposição da ordem masculina. Os homens emigram para os países limítrofes, as mulheres ficam com cada vez mais trabalho na tabanca e na vida familiar. O paradoxo de tudo é que Amílcar Cabral tinha prometido que se construiria um país com igualdade e melhor vida para todos.

O próximo e último artigo centra-se na diáspora guineense depois de 1998, as consequências políticas da crise e o aparecimento do Narco-Estado e Toby Green apresenta as suas conclusões.

(Continua)
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Notas do editor

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sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16681: Notas de leitura (898): “Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Outubro de 2016:

Queridos amigos,
A questão agrária é a espinha dorsal dos acontecimentos guineenses pós-coloniais. Durante o período da luta armada, Cabral motivara os quadros políticos para um desenvolvimento agrícola descentralizado e na base do respeito popular. No período a seguir à independência investiu-se pouco na agricultura e apostou-se num modelo faraónico agroindustrial, também assente na substituição de interpretações. Descurou-se a formação agrícola, desapareceram os subsídios, as sociedades rurais ficaram entregues a si próprias. É essa notável resiliência que o investigador Philip Havik analisa neste livro, que é seguramente o documento histórico-político mais importante de 2016, no que concerne à Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau: de Micro-Estado a Narco-Estado (2)

Beja Santos

“Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016, é constituído por um acervo de estudos dedicados à memória de Patrick Chabal, falecido em Janeiro de 2014, e que idealizou até ao fim dos seus dias a organização desta obra com Toby Green. Obra constituída por três partes (fragilidades históricas; manifestações da crise e consequências políticas da crise) convocou nomes importantes da historiografia da Guiné-Bissau no plano internacional como Toby Green, Joshua B. Forrest, Philip J. Havik, entre outros.

Compete a Philip Havik, investigador sénior no Instituto de Higiene e Medicina Tropical e professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, uma apreciação em profundidade da economia rural e da sociedade guineense. No meu livro “História(s) da Guiné-Bissau”, Edições Húmus, 2016, procurei apurar como o PAIGC abordou a questão agrária, antes e depois da independência, e que tratamento político foi dada à chamada “linha de Cabral”, e invoco os trabalhos de Philip Havik nesta área. O PAIGC do tempo de Cabral punha em lugar de topo o desenvolvimento agrícola a par da mobilização rural, da descentralização política e numa perspetiva da melhoria dos níveis de vida das famílias camponesas. O PAIGC não ignorava que a sua base militante se situava nos campos, mas ascende ao poder com um pano de fundo de crise económica mundial, as agências internacionais não puderam acompanhar o impulso de modernização. Só no III Congresso é que o PAIGC apresentou uma estratégia para um desenvolvimento equilibrado que incluía programas de formação destinados aos agricultores guineenses. O grande objetivo era obter-se um excedente alimentar, sobretudo em arroz. Isto aconteceu no mesmo ano em que ocorreu uma grave seca. Os centros de extensão agrícola são criados enquanto os Armazéns do Povo e a SOCOMIN eram supostas oferecer crédito à custa da diferença de preços no produtor e no retalho/exportação.

Contrariando vozes autorizadas, o governo lançou-se na construção de um gigantesco complexo agroindustrial destinado ao descasque de arroz. Os investimentos injetados na agricultura, no entanto, eram mínimos. A “linha de Cabral” fora desviada. Com o golpe de Estado de Novembro de 1980 anunciou-se um regresso a essa linha de Cabral. Mas também não se passou das intenções. Philip Havik escreveu, a tal propósito:  
“A falta de quadros e de infraestruturas prejudicou seriamente a capacidade do Estado em planear e executar as suas intervenções na agricultura. O conflito então em curso entre as fações populista e tecnocrata, ou seja, entre os militantes rurais formados no mato e os educados na Europa e noutros locais, surge como fator determinante na incapacidade de um aparelho de aparelho de Estado supercentralizado mobilizar os camponeses, que não eram encarados como uma classe”.
Em resultado, deu-se um afastamento dos camponeses face aos decisores políticos instalados em Bissau. Philip Havik observa que ao abandonar a sua função mobilizadora, o PAIGC travestiu-se numa classe média burocratizada e mercantil. Os agricultores ficaram progressivamente mais pobres e entregues a si próprios.

No seu ensaio no livro de homenagem a Patrick Chabal, Havik retoma as suas teses de que a produção industrial e a substituição de importações se fez em detrimento do pensamento de Cabral e que a seguir ao golpe de Estado de 1980 as medidas associadas às políticas de ajustamento estrutural deixaram a agricultura periférica. Nunca se encontrou autossuficiência no arroz, a produção de amendoim veio a ser gradualmente substituída pela produção de caju. Enquanto o Estado enfraquecia, as sociedades agrícolas procuravam encontrar soluções graças aos djilas e aos compradores diretos de amendoim e caju. Philip Havik recorda que em meados do século XIX o amendoim se apresentava como excelente produto de exportação, criaram-se pontas ou propriedades agrícolas que privilegiavam o amendoim e o coconote.

Quando Nino Vieira ascendeu ao poder e deu luz verde ao plano de ajustamento estrutural veio muito dinheiro para crédito agrícola e que acabou desviado para formar uma classe rica a explorar as novas pontas. Philip Havik observa as grandes questões étnicas do século XIX, incluindo a luta de libertação, à luz da resposta das sociedades agrícolas. Mais adiante recorda a organização económica colonial pós o período da pacificação, em que preponderavam as exportações da CUF e as transações da Sociedade Comercial Ultramarina, Barbosa & Comandita, Nunes e Irmãos, Mário Lima, bem como uma série de negócios dirigidos por cabo-verdianos, sírios e libaneses. O PAIGC trazia um plano de nacionalizações e previa a integração de uma agricultura coletiva a par de uma distribuição estatal onde preponderavam os Armazéns do Povo e a SOCOMIN (integraram a Casa Gouveia, que mesmo durante o período da luta armada conseguiu manter uma gestão apreciável no import/export).

O dado importante deste ensaio de Philip Havik é a forma como ele integra a sua análise a partir do período colonial, destacando a etapa de desenvolvimento em torno de meados do século XX, como conflituaram a linha colonial e pós-colonial, como depois da independência foram permitidas depredações no campo florestal na miragem de bons negócios na venda de madeiras exóticas (é atualmente um dos grandes interesses dos chineses na Guiné-Bissau), e como se manteve a fragilidade da economia rural neste enorme puzzle de conflitos, migração, alterações climáticas e ambientais, falta de apoio à modernização agrícola e em que a reposta óbvia foi os agricultores encontrarem os seus meios de subsistência tanto na encomia de troca como na monocultura. A Guiné-Bissau é correntemente apresentada como um Estado frágil e passadeira de droga, mas à margem dessa cupidez e constituição de uma classe suportada por uma clique militar e políticos, a economia rural demonstra uma notável capacidade para resistir indiferente à fragilidade das instituições políticas, resiste pela economia informal, com as precárias infraestruturas de educação e saúde e com um per capita dos mais pobres do mundo. Como observa Philip Havik, a despeito de todos estes constrangimentos, a riqueza e a diversidade dos recursos económicos, sociais e culturais permanece o pilar fundamental da resiliência da sociedade rural e da possível dinâmica guineense.

(Continua)
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Nota do editor

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