1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Novembro de 2016:
Queridos amigos,
Na sequência das análises que se tem feito a um importante livro que é um homenagem a um grande investigador, Patrick Chabal, dois autores apreciam as instituições da sociedade rural e a sua proverbial estabilidade que agora estão em mudança graças a vários fatores: a arbitrariedade dos preços do caju, a crescente procura de trabalho no exterior, a ameaça de segurança alimentar (entenda-se o risco e não haver comida para todos, até agora tem havido, a ameaça permanente é a subnutrição).
Outros dois autores dão-nos um quadro bem curioso do pluralismo religioso e da convivência interétnica, que permite a previsão de que não há condições para a presença avassaladora do terrorismo e fundamentalismo islâmico.
Por último, outro autor aborda a descriminação de género, um dos aspetos mais grotescos do incumprimento das promessas de Amílcar Cabral, isto quando a mulher combateu ao lado do homem, destemidamente, na luta de libertação.
Um abraço do
Mário
Guiné-Bissau: de Micro-Estado a Narco-Estado (3)
Beja Santos
“Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016, é constituído por um acervo de estudos dedicados à memória de Patrick Chabal, falecido em Janeiro de 2014, e que idealizou até ao fim dos seus dias a organização desta obra com Toby Green. Obra constituída por três partes (fragilidades históricas; manifestações da crise e consequências políticas da crise) convocou nomes importantes da historiografia da Guiné-Bissau no plano internacional como Toby Green, Joshua B. Forrest, Philip J. Havik, entre outros.
A introdução e a primeira parte, dedicada às fragilidades históricas, motivaram os dois primeiros textos. Iniciamos hoje a segunda parte, centrada nas manifestações de crise. Marina Parão Temudo e Manuel Bivar Abrantes retomam a questão da estabilidade social e do modo de viver rural. Tenha-se em conta o que outros autores já referiram: o caráter suave do Estado da Guiné-Bissau, a sua ineficácia no processo de elaboração de políticas, o seu gradual desfasamento fazer chegar as instâncias do PAIGC à sociedade rural, aos poucos a participação política foi-se restringindo; foram exíguos os investimentos na agricultura, soçobraram as medidas de nacionalização do import/export e a nacionalização das terras não passou de uma utopia. Para estes dois autores as sociedades rurais guineenses foram resilientes, fizeram frente aos desaires do Estado, resistiram às suas prepotências e irresponsabilidades com a política agrícola. Mas o conflito político-militar de 1998-1999 apanhou as sociedades rurais já na monocultura do caju, as deslocações maciças de população desestabilizaram as formas de viver, uma coisa é a pobreza com alimentação e mesmo focos de subnutrição, outra coisa é subitamente as tabancas do interior serem confrontadas com insegurança alimentar. Até recentemente, estes pequenos agricultores e os ponteiros conseguiam uma harmonia precária entre a comida de subsistência e a produção de troca e a exportação, nomeadamente o caju. Está devidamente estudado que a intervenção colonial não desarticulou, dentro de certos limites, este precário equilíbrio nas sociedades rurais. O amendoim foi o produto de exportação por excelência entre 1846 e 1974. Houve igualmente exportação de arroz para a Europa, que se iniciou na década de 1930, a guerra de libertação inverteu esta tendência. Distinguem-se fundamentalmente os modos de sobrevivência alimentar dos povos animistas (com os Balantas e os Manjacos à cabeça) dos muçulmanos. Seja como for, é na diversidade étnica que se encontram formas complementares destes sistemas de modo de vida que integram cereais, coconote, óleo de palma, arroz, com uma correspondente economia de troca, onde pode entrar carne, pescas, frutos e outros produtos. A guerra de 1998 levou a que mais de 200 mil guineenses urbanos tenham procurado refúgio nos campos, houve que encontrar acolhimento e amortecimento ao choque de providenciar comida em tão grandes quantidades aos refugiados. Os autores abordam o fenómeno das pontas exploradas ao tempo em que houve financiamentos durante o processo de ajustamento estrutural, agravou as desigualdades sociais e criou uma nova elite política e financeira que, de um modo geral não pagou ao Estado os créditos concedidos pelas linhas generosas desse dinheiro vindo do exterior. Os autores fazem uma análise demorada das mudanças sociais que se estão a operar na vida comunitária cuja evidência é a explosão migratória, a perda da autoridade dos mais velhos e o crescente número de casamentos interétnicos. A monocultura do caju está a revelar-se um desastre, os agricultores estão cada vez mais dependentes de compradores que jogam com as baixas cotações do mercado internacional, a Índia está a tornar-se um feroz competidor e o mercado dos cereais é cada vez mais instável. As mudanças em curso estão a reduzir a solidariedade nas comunidades rurais.
Bem curioso é o artigo de Ramon Sarró e de Miguel de Barros sobre a convivência entre credos religiosos, entre crentes monoteístas e animistas. É crescente a presença da religião na esfera pública e o pluralismo de opiniões é uma moeda corrente. Os autores dão como exemplo a povoação de Enxalé onde há 8 diferentes línguas, uma mesquita, uma igreja católica, um templo protestante, neopentecostais e balobeiras, membros do movimento profético Kyang-yang, onde se misturam elementos simbólicos do Islão, da cristandade e da religião Balanta. Eles analisam historicamente o mapa religioso da Guiné-Bissau a partir das etnias, das práticas religiosas, para concluir que até ao presente têm funcionado com sucesso todos os processos de mediação entre convicções religiosas, acentuando que em pleno conflito político militar todos os atores se reuniram fazendo um apelo à paz.
O último artigo é da responsabilidade de Aliou Ly que analisa as relações de género na Guiné-Bissau destacando que todas as promessas de Cabral no campo da promoção da mulher têm sido ignoradas pelos sucessivos poderes, ao longo de 40 anos. A mulher continua marginalizada do sistema político, o seu contributo nas estruturas sociais e económicas está praticamente limitado ao trabalho braçal e a obedecer sem reticências ao homem, estão sub-representadas no sistema educativo, administrativo e nas instituições políticas de todo o tipo. Estuda o impacto da marginalização da mulher na Guiné pós-independente, a despeito de muitas licenciadas que se impõem no mundo dos negócios. As leis contra a discriminação de género não são respeitadas, é notória a resistência masculina como se mantêm inúmeras desigualdades de classe e étnicas que agravam a condição da mulher. Nos primeiros anos da independência ainda se falava nas heroínas como Titina Sila, referindo-se sempre com respeito mulheres como Francisca Pereira ou Carmen Pereira. O autor atribui responsabilidades a este fenómeno discriminatório logo à governação de Luís Cabral, teria começado aqui o círculo vicioso da desigualdade de género e da imposição da ordem masculina. Os homens emigram para os países limítrofes, as mulheres ficam com cada vez mais trabalho na tabanca e na vida familiar. O paradoxo de tudo é que Amílcar Cabral tinha prometido que se construiria um país com igualdade e melhor vida para todos.
O próximo e último artigo centra-se na diáspora guineense depois de 1998, as consequências políticas da crise e o aparecimento do Narco-Estado e Toby Green apresenta as suas conclusões.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 4 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16681: Notas de leitura (898): “Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016 (2) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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