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Queridos amigos,
Este “sairòmeM” é surpreendente, conclui-se a leitura com a sensação de que autor e leitor mereciam mais confissão, mais intimidade, mais memória.
Seria muito bom que pudéssemos contar com o Gustavo Pimenta (ou quem se esconde sob este nome) para saber mais sobre Béli e Madina de Boé, por exemplo.
Um abraço do
Mário
Um beijo, minha mãe, eu prometo voltar
Beja Santos
Este autor, que se apresenta como limiano pelo berço, vianês por amor, do Porto por circunstância e do mundo por opção, começa por nos dizer no fim das suas recordações que à despedida “O beijo da minha mãe demorava uma eternidade”. Fechou os olhos para que todas as impressões daquele momento guardassem o tempo, ele estava a despedir-se de si próprio, pressentia as mudanças que se iriam operar.
Em Setembro de 1967 chegou à Guiné, a bordo do paquete Timor, com armas e bagagens foi a unidade despejada em Fá Mandinga. Aqui foram praxados, aprendeu que a maneira mais eficaz de pescar era lançar uma granada na bolonha, os serões eram passados a jogar o póquer de dados. Surge um registo de espanto e admiração: “Não teria mais do que doze ou treze anos. Seria mandinga, mas falava uma data de línguas nativas, era o nosso guia, participava nas acções mais arriscadas. Exibia uma postura colaborante, às vezes irónica face à nossa ignorância. Nunca subserviente. Devia viver a um ritmo incrível para saber tanto com tão poucos anos. Adoptámo-lo, passou a viver connosco”. A sede do seu batalhão estava em Bambadinca, era dali que se telefonava para Portugal.
A primeira operação foi no Poidom. Em Bambadinca tinham-lhes dito que ia ser um ronco, tratava-se de revistar o local onde os guerrilheiros se acoitavam, isto depois do fogo de artilharia e aviação. Na capela de Bambadinca foi depositado um dos camaradas, morto com um tiro furtivo: “O fogo, intenso, do inimigo surpreendeu-nos. Havia pouco que os T6, connosco a poucas centenas de metros, tinham terminado o arrepiante – e belo, no seu descer a pique, largar a bomba, subir em manifesto sobreesforço do motor – exercício de bombardear o refúgio do PAIGC”.
Seguiram depois para Porto Gole, aqui se passou o primeiro Natal. Mais tarde em Nova Lamego, aquela tropa é confrontada com o pesadelo das minas, viaja-se para Madina do Boé, nova morada. O registo das impressões faz vibrar qualquer combatente, o que ele diz das abelhas, dos jogos da malha, o interior daquela fortaleza praticamente inexpugnável, as extravagantes regras do jogo da sobrevivência, o delírio da guerra: “Deslocarmo-nos para as tarefas mais comezinhas, para uma simples mijada fora do abrigo, tornara-se numa espécie de jogo do gato e do rato. Nunca sabíamos se eles estavam à coca e nos sairia na rifa o tiro isolado do dia. Aos mais afoitos, ou mais loucos, já lhes dava, às vezes, para subirem ao alto de um abrigo e despejarem insultos a tudo quanto fosse guerrilheiro e respectiva família, enquanto evidenciavam convenientes manguitos”. É um registo antológico, o de Madina do Boé: os jogos de carta dentro dos abrigos, a criação de animais nas tabancas, a solidariedade dos amigos, longe ou perto, sempre prontos a mandar vitualhas. É no meio deste inferno que o autor se confessa sobre as razões que o levaram a ir para a guerra: “De apego à minha tribo, de não sustentar que me pudessem apodar de cobarde e, também, porque sentia uma grande necessidade de ver no locar se as coisas eram como dizia a propaganda do regime. Provavelmente, o que me faltou foi coragem de atrever sozinho o desconhecido”.
A chegada do correio, descobre ele, é um evento crucial, receber correio era mais importante que o seu conteúdo, era a imperiosa necessidade de nos sabermos lembrados (“Quem passa mal, gosta de perceber que o mundo se incomoda com o mal que passa”). Cartas ou aerogramas lidos e relidos, fica a memória indelével da algazarra que rodeava a distribuição do correio, cada piloto que os visitava em Madina de Boé era recebido na pista com balde de gelo, água perrier e garrafa de uísque na mão. Conta-nos a evacuação de Béli: “Chegámos a Béli noite avançada. Tantas viaturas e tanta gente naquele espaço habitualmente ocupado somente por um grupo de combate, tinham feito temer uma flagelação com armas pesadas de consequências imprevisíveis... um grupo de picadores à frente da coluna, a tropa em protecção lateral e os T6 a despejarem bombas sempre que a picada era rodeada de acidentes geográficos que nos parecessem suspeitos, propícios à emboscada”.
Depois é a retirada de Madina de Boé até Nova Lamego. Parecia um cortejo fúnebre, mais de 40 homens tinham sido levados pela correnteza do Corubal. O autor está de férias, encurta-as em função dos acontecimentos. Seguem para Cabuca, mais tarde são colocados em S. Domingos. A curiosidade é forte, interessasse pelo povo Felupe: “Era o povo mais primitivo que já conhecêramos. Pescavam deixando deslizar as suas canoas ao sabor da corrente, sobre as quais se posicionavam em pé, parecendo estátuas, arco tenso e flecha apontada. O mergulho nas águas para recolher o peixe, sucedia-se ao disparo, que nunca vi falhar, nas cenas da nossa fascinação olhadas da margem do rio e do centro do nosso espanto”. Comprova que os imprevistos brutais não eram só os de Madina, em S. Domingos a morte também ronda: “Do lado por onde saíra a bala, o buraco. Enorme. Do outro, num ouvido, tudo chamuscado à volta e um orificiozinho. Fragmentos de couro cabeludo, miolos e sangue a manchar os beliches ao lado. A G3 caída. A mala aberta. Sobre o desalinho do seu conteúdo, um aerograma escrito para a mulher. Fechado. Outro, para o amigo lá da terra, ostensivamente aberto, exposto na indecência de explicar o inexplicável: não suportava regressar a Portugal, para a mulher, com a pichota toda estragada. O estrondo do tiro na caserna, pela tórrida calmaria da hora do almoço”.
A comissão está a findar, agora já não se teme propriamente andar na mata, o que custa é pensar no que fazem as minas anti-pessoais. Com alvoroço, partem para Bissau, entregam-lhe um cão à sua guarda. O relato termina tal como começou (isto é, começa onde tudo cronologicamente se finda): “A casa antiga – para não dizer velha – acolheu-me com o cheiro e o conforto que a memória reconheceu. Quanto tempo passado e como tudo me pareceu, de súbito, regressar ao princípio”. O pai e filho estreitam-se num abraço longo. O cão espreguiça-se, a viagem a partir de Lisboa foi de táxi, deixando três soldados em vários destinos. Com o beijo de sua mãe, ele despedira-se de si próprio, nesta chegada todos os recantos se identificam, a guerra, finalmente, ficou para trás. Décadas depois, deu público testemunho de si.
O contacto telefónico da Palimage Editores é 232 432 244 (palimage@mail.telepac.pt).
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 16 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6001: Notas de leitura (78): Morrer Devagar, de José Martins Garcia, De Catió para Farim (Beja Santos)
3 comentários:
De facto, como dá a entender Beja Santos, há muita coisa ainda para contar. E no que respeita à eveaucação da 1790 de Madina do Boé o que está contado parece-me que não esteja bem. Convivi com alguns sobreviventes daquela última viagem da jangada que se virou e a verdade era outra.
Nestas andanças pelo blog também não me lembro que tenha aqui sido referida outra figura mitica do abastecimento de frescos e da entrega do correio em Madina do Boé. Era o Furriel Honório que pilotava uma DO27 e parece que era dos poucos que ia mais ou menos à vontade a Madina. Quem é que sabe dizer maisl aguma coisa sobre o Honório?
Ora bem
Como diz o amigo Beja Santos parece-nos que o autor fez parte da 1790. E diz no seu livro uma coisa importante. Madina do Boé era inexpugnável. Isso já eu sabia e por isso é que o cerco a Madina não fazia sentido. A única maneira de nos atingirem era com atiradores solitários postados no cimo das árvores. Foi assim que sofremos um morto no regresso de uma patrulha e já com parte do pessoal dentro do aquartelamento.E veja-se a 1790 os mortos que sofreu. 3 e todos nativos. E onde estavam nessa altura ? Se calhar na tabanca. Reparem que o nosso camarada José Martins na sua Hitória sobre Madina do Boé Parte II diz Morto em Madina do Boé em combate com o IN. Isso é o que está escrito, mas pode não ser verdade.Como exemplo temos o sodado Ilidio Bonito Claro que foi abatido por um atirador postado no cimo de uma árvore, não tendo a patrulha tido qualquer contacto com o IN. São azares da vida.
Gustavo Pimenta foi Alferes da CCaç 1790 e é advogado.
Visitou Madina do Boe, juntamente com o Camandante, então Capitão Aparicio, que deu lugar ao vidio que foi difundido na SIC, há já algum tempo, e que foi objecto de largos comentários no blogue.
o livro sairómeM foi referido nessa altura.
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