segunda-feira, 15 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5996: José Corceiro na CCAÇ 5 (6): Pânico no abrigo norte, crocodilo à vista

1. Mensagem de José Corceiro* (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos -, Canjadude, 1969/71), com data de 5 de Março de 2010:

Caros camaradas Luís Graça, Carlos Vinhal, J. Magalhães
Boa tarde e bom fim-de-semana. É com gosto, que envio esta história, não apócrifa, onde exponho alguns dos meus pulsares e acontecimentos, do dia-a-dia em Canjadude, Guiné. Quanto à publicação da mesma, assim como à inclusão das fotos (embora referencie) coloquem no local que entendam, deixo ao vosso critério.
Um Abraço
José Corceiro


José Corceiro na CCAÇ 5 (6)

Canjadude, PÂNICO NO ABRIGO NORTE


Estarei certo se afirmar que,  nos dois anos e tal que passei na Guiné, na CCAÇ 5, em Canjadude, em situações normais, (excluindo doença ou descanso por trabalho nocturno) não me deitei na cama meia dúzia de vezes no período entre as 12.00h e as 15.00h, o chamado “almoço e dormir a sesta”, é um hábito que nunca consegui adquirir e nunca senti falta dele.

Nesse período do dia, (considerado de descanso) eu, se o tempo o permitisse, após o almoço era frequente ir até às rochas de Canjadude, que me ajudava a suavizar o desconforto da tensão do passar dos dias, alentando-me a escrever uns aerogramas, cartas, ou outras escritas que para mim eram essenciais. Era neste local de inspiração, expansão e tranquilidade, que eu amenizava a minha paz interior.

Foto n.º 1 > Corceiro numa das rochas do Aquartelamento de Canjadude.

Foto n.º 2 > Corceiro rocha do Aquartelamento de Canjadude. Posto de sentinela.

Foto n.º 3 > Rocha de Canjadude com posto de sentinela Norte/Nascente

Também, neste intervalo de tempo, apreciava sentar-me a ler um livro em cima do abrigo dos graduados, à sombra do embondeiro grande, onde se sentia o fluir duma brisa suave acariciadora e tonificante, que me reconfortava a animosidade para suportar a luta desta “puta” de vida, que aqui levava; por vezes, sentia um sopro denso, abafado e húmido, sufocante; outras vezes uma atmosfera carregada exalando um bafo áspero e cálido, que era peganhoso e melaço, grudava-se ao meu corpo e teimava em não se deixar limpar, mas a obrigação impunha-se e o meu dever era continuar e avançar.

Foto n.º 4 > Corceiro a ler livro em cima do abrigo de graduados

Encontrava amenidade ao ir até à Tabanca, ilusão de porta aberta que me deixava partir para a descoberta da terra da fantasia que eu sonhava, onde alguém por mim esperava. Envolvia-me com o seu povo, a tentar compreender e analisar os seus costumes, vivências e necessidades, que despertavam no meu íntimo, sentimentos consistentes de amizade e solidariedade. Compadecia-me ver aquelas criancinhas desnutridas, calmas e afectuosas, muito “barrigudinhas”, consequência do insuficiente e desapropriado padrão alimentar, associado à escassez de alimentos e à muita fome que por ali abundava, dava bem para compreender a luta pela sobrevivência destes meninos tão ”ventrudozinhos”.

Foto n.º 5 > Corceiro na Tabanca

Foto n.º 6 > Criança “Ventrudozinha” de Canjadude

Apresava-me, se o tempo estivesse nublado, logo de feição, para tirar alguma foto, porque nesta hora com o Sol a incidir na perpendicular e os raios UV na sua maior convergência, não era propício a fotos. (Atender, que estava equipado para auto-foto, pois tinha tripé, máquinas com disparador automático, o enquadramento e focagem fazia por estimativa).

Deleitava-me, nesta hora, ir até à bolanha para ter contacto de proximidade com as lavadeiras, apreciar a destreza e desembaraço com que amanhavam a roupa. Neste local, podia dar rédeas ao impulso de atracção e fascínio, que despertavam em mim aquelas humildes criaturas, com a sua postura e conduta despudorada, livre, sem preconceitos ou inquietude, face à indumentária usada, por vezes completamente nuas, sem manifestar grande inibição, estranheza ou retracção, provocados pela presença de estranhos. (A bolanha ficava a Nascente do Aquartelamento, fora do arame farpado, aí a uns 200m a 300m de distância.)


Foto n.º 7 > Azáfama na Bolanha de Canjadude

Na Bolanha, soltava e dava asas à minha imaginação e sentia-me como ave livre a esboçar, observando o pulsar da natureza a metamorfosear o milagre do seu ciclo de renovação de vida, cujo rejuvenescimento é consequência da concomitância dos factores, luz, calor, ar e enxurradas de água, que jorram de todas as nascentes a fertilizar e inundar os solos, que outrora estiveram ressequidos e encarquilhados, tornando-se agora manancial e fonte de criação, excitando o explodir e desabrochar espectacular, de tudo o que seja Biodiversidade (todos seres vivos e suas características genéticas).

É, a matização natural do equilíbrio da essência dinâmica, em transformação na Natureza!

Eu sentia-me escudado, rodeado de toda esta substância (formas de vida) que testemunhava o esplendor da vida, com toda a sua pujança e imperturbabilidade sinfónica, onde tudo se entrelaçava para criar e recitar uma ode à Mãe Natureza, e, tudo em conjugação, louvar a harmonia do Universo. Neste ambiente eu encontrava forças para me alicerçar e continuar na minha senda, para não me deixar arrastar para a trilha do desalento e do desânimo. Foi, escorando-me nestas observações, que o meu pensamento, depois de muito analisar pode vir a confirmar, que a incógnita que permanecia em mim, sobre os peixes da bolanha, não era um caso contra natura nem capricho de Deus Mitológico mas sim a consonância perfeita neste ecossistema (interacções entre seres vivos e o meio que habitam). Começou por ser para mim, um enigma, à luz dos conhecimentos que possuía, porque não conseguia encontrar justificação plausível que elucidasse esta minha cisma. Assim, a minha indagação persistia:

Como era possível o ciclo de vida do peixe da bolanha ter continuidade, neste nicho ecológico? (condições de habitat alimentação e comportamento)

Foto n.º 8 >Corceiro em Assimilação ao ver que na Bolanha resta um “charcozinho” de água.

Se ao chegar a época das secas, a água extingue-se na totalidade, na bolanha, deixando os leitos todos gretados e sôfregos de sede, coexistente, assiste-se ao definhar e desaparecimento de todo e qualquer peixe. Como entender, que ao chegar o ciclo das chuvas, que inundam de água o leito desidratado na Bolanha, a fogosidade volta e o peixe às molhadas aparece?! Até esclarecer, o que para mim foi mistério, e, deslindar tão natural questão, pois o âmago de toda a elucidação, estava na simplicidade de descobrir e perceber, que os ovos dos peixes, já fecundados, ficavam enterrados na terra, que servia de ventre na época da seca! Quando vinham as chuvas, a água era como o veículo do suporte fertilizante, que desencadeava a eclosão e desabrochar dos peixes na Bolanha no seu ecossistema, e ei-los a progredir para novo ciclo!

Foto n.º 9 > Corceiro em cima do abrigo de transmissões à volta com os seus enigmas.

O dia 8 de Novembro de 1969, vá lá o diabo saber porquê, o meu relógio biológico, neste dia, não me despertou para após o almoço ir para as rochas, Tabanca, ou Bolanha e fiquei no abrigo Norte, o meu hotel de 5 estrelas, todo refastelado no 1.º andar do beliche, esparramado na minha cama, descontraído e absorto a ler o livro – A Selva, do Ferreira de Castro -. Era perto das 13.30h, os alojados do abrigo estavam quase todos nas suas camas deitados, cada um a ruminar o seu abrolho, uns a cabecear, a sonhar, a ninar, a ressonar, a rosnar, outros a sonhar acordados, praticamente silêncio nocturno!

Eis senão, quando no meio deste sossego, agitando toda a tranquilidade, ouve-se uma voz aflita e horrorizada, dar um grito de alerta e perigo:
- Éi!!!!!… malta… um Crooocoodiiiloooo!!!!!…..

Tudo alarmado olha e fica apavorado, pois toda a minha gente vê um crocodilo dentro do abrigo!!!!!.. Entra tudo em pânico, cria-se ali colossal agitação e sobressalto, com a inesperada visão do arrojado e assustador visitante, ouvem-se gritos de alvoroço por todo o lado. Num abrir e fechar de olhos transforma-se o abrigo em abrupta balbúrdia, que mais parece uma capoeira, cujos galináceos se excitam e aterrorizam com a entrada duma raposa matreira, no poleiro. Os aquartelados das camas do rés-do-chão, do beliche, quais macacos trapezistas começam a trepar emaranhados, para as camas do andar de cima, para encontrar protecção e afastar-se do perigo de tão ameaçador intruso. Outros, pegam na G3, posição em riste, dedo no gatilho, enquanto outros, de granada numa das mãos e a outra orientada para argola da cavilha, preparam-se para o assalto final ao temível e tímido bicho. Este, por sua vez, tentava descobrir refúgio e ocultação, procurando alguma toca debaixo das camas onde se pudesse abrigar e aninhar. Eu, curioso e incrédulo, observo com olhar mais atento e vejo parte do bicho, pois era descomunal, certifico-me que já em tempos tivera, nas rochas, contacto com um irmão deste, em tudo igual, ainda que de tamanho inferior. Daí, o meu grito sedativo:
- Eih!!!… rapaziada, tenham calma, que o réptil é da família das Iguanas, é um lagarto,  não faz mal a ninguém…!

Mas, o meu alerta de apelação para amainar o rebuliço, não surtiu efeito nenhum, palavras caídas em saco roto, estavam todos tão apavorados que só viam ameaças e perigo de vida, causada pelo indefeso animal.
O espaço no abrigo era acanhadíssimo, pois havia beliches de duas camas dum lado e do outro, um corredor estreitíssimo ao centro. A falta de espaço, aliada ao desalinho e confusão no abrigo, provocaram uma desarrumação caótica, devido às deslocações das camas e ao desorganizar objectos que se apoiavam nestas. O bicho encurralado movimentava-se naquela anarquia sem que ninguém o conseguisse imobilizar.

Eu, ao ver que os meus apelos lenitivos entravam por uma orelha a 5km/h e saiam pela outra a 100km/h e ao constatar que ninguém conseguia infundir um pouco de calma naqueles desgovernados militares, fiquei receoso e inseguro, pois temia que a todo o momento rebenta-se ali uma granada, que estavam distribuídas e colocadas nos locais menos apropriados, ou que algum mais distraído, sentindo-se ameaçado começasse a dar tiro de rajada de G3. Ao ver-me envolvido em tamanha patacoada,  esgueirei-me dali, fui dar uma volta à Tabanca. Regressei passado meia hora, encontro o abrigo numa barafunda assustadora, até havia dificuldade para entrar, e, deparo-me com os meus haveres em displicência total, muitos deles caídos e espalhados pelo chão e o desgraçado do bicho já tinha sido sacrificado.

Logo depois de arrumar os meus objectos, que estavam num desmazelo de inspirar piedade, fui tentar investigar como chegou o “lagartão” ao abrigo. Consegui descobrir os últimos passos do atormentado animal, antes de se enfiar no corredor que o conduziu ao cadafalso.

Foto n.º 10 > Abrigo Norte pequena ideia como estavam as granadas acondicionadas objecto que caísse de cima podia “descavilhá-la”

Foto n.º 11 > Desarrumação de alguns dos meus pertences, na minha cama, devido à agitação com o “lagartão”.

Foto n.º 12 > Foto do lagarto que procurou refúgio no abrigo Norte. Tinha cerca de 2m de comprido a foto devido a ter sido tirada de longe não dá a real corpulência do animal. Lado direito é visível as pegadas do bicho.

Os répteis foram os primeiros vertebrados a libertar-se do meio aquático. São quanto à temperatura do corpo, devido ao seu sistema circulatório, ectotérmicos (calor vem de fora) isto quer dizer o seguinte: são animais que para regular (subir ou baixar) a temperatura do corpo, procuram ambiente adequado para equilibrá-la. Se têm o corpo muito quente, intuitivamente, acção de sensores, procuram sombra, se tem o corpo frio, procuram Sol, fonte de calor. Esta particularidade está definida no seu código genético e têm sensores que determinam o agir comportamental, mediante a temperatura do organismo.

O nosso “lagartão”, da ordem dos sáurios (esquamates), deve ter-se empanturrado de calor em cima de alguma rocha, (as rochas são concentradoras de calor e os répteis procuram-nas para se aquecer) às tantas, porque aqueceu excessivamente, teve necessidade de encontrar sombra para se refrescar, vai daí, deixou-se cair para dentro de uma das valas, (trincheira) que ia desde as rochas à porta do abrigo Norte. Sendo assim, entrou no corredor que o conduziu, sem pedir licença, à porta da forca. Foi uma aventura sem retorno para o nosso animal ectotérmico.

Na foto do lagarto, que tinha quase dois metros de comprido, à frente do lado direito, são visíveis as pegadas do lagarto que confirmam os passos até cair na vala. Depois de cair nesta, não tinha capacidade de sair pelos próprios meios, pois a vala tinha mais dum metro de profundidade e era estreita de paredes na vertical. (Esta foto, não dá a real corpulência do animal porque foi tirada de muito longe, para grande enquadramento e agora teve que ser reduzida)

A todos os tertulianos, um abraço.
José Corceiro
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 12 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5978: Mais casos de insubordinação no teatro de guerra: CCAÇ 5, Canjadude, 25 de Novembro de 1969 (José Corceiro)

Vd. último poste da série de > 28 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5906: José Corceiro na CCAÇ 5 (5): Primeiro ataque a Canjadude, o meu baptismo de fogo

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caro José Corceiro

É interessante acompanhar as tuas reflexões e verificar como utilizavas o teu tempo para observar e compreender o que se passava à tua volta.
Agora essa do lagartinho.... deve ter dado cá uma confusão...
Um abraço
Hélder S.