segunda-feira, 8 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11814: Notas de leitura (498): Guineidade e Africanidade, por Leopoldo Amado (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Março de 2013:

Queridos amigos,
Trata-se de uma coletânea para onde o autor fez convergir mais de 50 textos que vão desde notas avulsas, prefácios a trabalhos de maior fôlego, alguns deles já conhecidos no blogue.
Como cidadão, Leopoldo Amado não está esquecido do Estado disfuncional, mas é sem dúvida nas suas peças de análise que se torna de leitura pertinente (se não obrigatória) quando invoca as grandes questões da luta armada e as da literatura colonial e da guerra colonial. Exercício de cidadania e olhar do historiador, a conjugação é feliz e a leitura deixa-nos mais exigentes.

Um abraço do
Mário


Guineidade e Africanidade, por Leopoldo Amado (2)

Beja Santos

Trata-se de uma obra onde o historiador e nosso confrade Leopoldo Amado juntou cerca de 50 intervenções de diferente índole, optei por referir um conjunto de artigos de maior significado quanto às matérias para as quais o blogue está mais fadado, e assim farei referência a dois trabalhos “Simbólica do Pindjiquiti na ótica libertária da Guiné-Bissau” e “Diapasão e persistências na novíssima literatura de guerra colonial: o caso da Guiné-Bissau”. Convém recordar que estes ensaios foram publicados no nosso blogue.

O massacre de Pindjiquiti foi móbil utilizado na formação ideológica dos jovens quadros do PAIGC e, acima de tudo, forneceu ensinamentos para o quadro teórico de Cabral: a subversão não deveria partir das reivindicações urbanas mas sim do campesinato em condições tais que as forças armadas e as autoridades não pudessem debelar. Uma nota curiosa é de que Leopoldo Amado não refere, a propósito do massacre, o relatório elaborado na altura pelo Comando Marítimo da Defesa da Guiné, indiscutivelmente uma peça que não se pode subtrair à análise desses acontecimentos (“Fuzileiros – Factos e Feitos na Guerra de África, Crónica dos Feitos da Guiné”, por Luís Sanches de Baêna, Edições Inapa, 2006). Descreve a emergência no nacionalismo em África e na Guiné, o trabalho desenvolvido por Cabral entre 1953 e 1954, o aparecimento do PAI, do MLG (Movimento para a Independência da Guiné, o trabalho desenvolvido por Cabral já na clandestinidade, a sua vinda à Guiné em Setembro de 1959, os atos de subversão que ocorreram em Bissau em 1960, os documentos escritos por Cabral e endereçados ao governo português, reivindicando a independência do território, a tal propósito Leopoldo Amado observa que nesta fase o PAI optou sempre por enquadrar o seu substrato ideológico no espírito dos princípios da legalidade internacional, mormente nos postulados das Nações Unidas e dos Direitos Humanos, concluindo que “não foi por acaso que depois do Pindjiquiti o PAIGC logrou atingir uma assinalável mobilização que permitiu posteriormente desencadear a luta armada de libertação. Também não foi por acaso que no decorrer da guerra colonial, invariavelmente, o PAIGC normalmente assinalava a efeméride com ataques simultâneos a várias localidades, inclusivamente os centros urbanos, sobretudo a partir de 1968”.

Quanto ao seu ensaio sobre a novíssima literatura de guerra, publicado no nosso blogue em Outubro de 2008, Leopoldo Amado dá ênfase à obra de Armor Pires Mota, considerando-o a figura proeminente de literatura forjada no decurso da guerra colonial. Refere que “Tarrafo” é editado em 1970, a verdade é que a sua primeira edição é de 1965, logo retirada pela PIDE, enquanto todas as suas peças tinham sido publicadas entre 1963 e 1964 no jornal da Bairrada, acontecimento singularíssimo. E não é exato que a sua extensa obra apenas abarque a fase inicial da guerra, como é sabido “Estranha noiva de guerra” e “A cubana que dançava flamenco”, duas obras maiores de Armor Pires Mota extravasam essa temporalidade. Mas há um aspeto que se partilha com as suas observações, na fase inicial da sua obra é percetível que o autor se identificasse com a missão civilizadora de Portugal, ele próprio disse ter acreditado naquela guerra por nela residir “o mistério da continuidade da missão histórica-imperial de Portugal; numa fase posterior ao 25 de Abril, o autor envereda por enredos apologéticos da amizade “entre os portugueses de outrora e de hoje e os povos da Guiné-Bissau”. Sem nunca fazer qualquer referência aos escritos de Álvaro Guerra, Leopoldo Amado chama a atenção para o inquestionável valor literário do livro “O lugar de massacre”, de José Martins Garcia, obra que marca a nova literatura após o 25 de Abril.

Para Amado, esta nova literatura interpela inexoravelmente a consciência crítica portuguesa, propondo igualmente uma catarse no imaginário coletivo: “Dir-se-ia que estes literatos mais não fizeram (e vão ainda fazendo) do que interpelar a sua própria identidade por intermédio de um exercício que visa encontrar o seu próprio lugar numa sociedade que, consciente ou inconscientemente, os violentou física, social e psicologicamente”. Analisa igualmente as participações de Gustavo Pimenta (SairòmeM – Guerra Colonial, Palimage Editores, 1999) e Salgueiro Maia em “Capitão de Abril – Memórias da guerra do Ultramar e do 25 de Abril”, Editorial Notícias. E em seu critério entendeu que devia referir-se-me a propósito de um textinho por mim publicado em 1984 nos cadernos de Memórias da Guerra Colonial, Andrómeda Publicações e intitulado Fotografias a Preto e Branco: “Fotografias? Sim, mas também sinais trémulos de alegria incontida no sacrifício inútil. Estas fotografias a preto e branco são fogo e água. Crianças a caminho de homens. Defuntos despojados de olhos impávidos e conflitos sibilinos. Amigos de abandono. Peço-vos compreensão para estas fotografias. Nenhuma palavra, som, barco, amigo, amanhecente equatorial, falta aqui. O meu álbum é um viaduto aberto, dele bifurcam caminhos de laterite, florestas de galeria, sonhos aterradores e a majestade terrífica da selva (…) As minhas e as vossas fotografias gritam: não esmoreçam, na vossa bolanha continuai a lavrar. A minha câmara dispara fotografias em série, é a locomotiva e também luar textual. Cada fotografia é um concerto polar. Despeço-me desta poalha afetiva. Em cada fotografia deixo um poeta perene, atado ao peso do próprio feito. E porquê? Porque houve uma guerra onde preparámos a fotografia da paz. Não se mexam. Fixo-vos para todo o sempre (…).”

E depois dá a palavra a Marcos Vidigal que igualmente escreveu em Memórias da Guerra Colonial, Andrómeda Publicações, 1984, ressalta o conto intitulado “As clareiras das emboscadas” como exercício de sublimação coletiva onde a música dilui a separação entre oficiais, sargentos e praças, os contactos com as populações também indiciam que estes literatos-soldados tinham entrado num profundo processo de auto-consciencialização, todos eles forçados a permanecer longo tempo dentro do arame farpado, o que forçava ao estreitamento de relações e cita Carlos de Matos Gomes, dizendo que na Guiné “(…) a guerra tinha ultrapassado o limite. As duas últimas operações dos generais Spínola e Bethencourt Rodrigues envolveram vários batalhões, navios e outros meios próprios de uma guerra convencional. A situação invertera-se: eram os militares a colocar as minas e a rebentar pontes para que os guerrilheiros não chegassem aos seus quartéis (…)”. Chama a atenção para a narrativa apocalítica de Salgueiro Maia a propósito do cerco de Guidage, descrição mais brutal sob a guerra da Guiné nunca houve: “Pouco depois de ter chegado, novo contacto do PAIGC com outro bigrupo das NT. Dos primeiros contactos resultaram seis mortos para as NT, incluindo três milícias, vários feridos graves e o destroçar do bigrupo, que deixou no terreno os mortos com tiros de armas ligeiras. Na fração de segundo em que, deitado no chão, tento perceber o que está a acontecer, começamos a ouvir com que o barulho de aviões a jato. São os jatos do povo, foguetões de 122 mm, que o PAIGC atira para a povoação sede do batalhão. Como a guerra não é connosco, mando retirar. O ferido na perna é acondicionado com as roupas do morto e todos os panos disponíveis na caixa do Unimog. O cabo enfermeiro segue sentado a seu lado com um frasco de soro nas mãos. O morto é colocado ao lado, embrulhado num pano de tenda; tem o peito aberto, parece um porco no talho”. Ao concluir o seu ensaio, Leopoldo Amado assevera que a literatura de guerra conquistou um estatuto próprio no panorama literário português, encerra em si uma profunda observação sociológica, numa inextricável mescla em que o exotismo e o eivado realismo se confundem com mitos que roçam os limites do paroxismo.

“Guineidade e Africanidade”, por Leopoldo Amado, Edições Vieira da Silva, 2013, é uma obra indispensável para quem pretende conhecer com rigor a Guiné da luta armada, o seu conteúdo ideológico, e o depois, um Estado disfuncional e sequelas dignas de nota como a literatura produzida a pretexto de toda aquela guerra.
____________

Nota do editor

Poste anterior da série de 5 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11804: Notas de leitura (497): Guineidade e Africanidade, por Leopoldo Amado (1) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Anónimo disse...

..."os documentos escritos por Cabral e endereçados ao governo português, reivindicando a independência do território"...

Caro Beja Santos, desculpa eu esperar muito da tua paciência,mas queria sugerir-te que rebuscasses e transmitisses para o blog, os documentos reivindicativos das independências de Cabral, Mondlane, Neto, Hoden Roberto...

É que tanto ouvimos falar desses documentos, que enriqueceriam muito este blog.

Será que eram dirigidos a Sexas Tomaz, Craveiro ou Salazar?

Seria em Papel azul de 25 linhas selado?
É que naquele tempo os nossos chefes ainda exigiam assinatura reconhecida no notário.

Á parte o humor negro, impróprio para este Portugal e esta Guiné,

Os meus cumprimentos.

O reaça, Antº Rosinha