Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 10 de julho de 2013
Guiné 63/74 - P11824: Os nossos médicos (64): A propósito do nosso anedotário médico militar... (Rui Silva)
1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 3 de Julho de 2013:
Estimados caros amigos Luís, Vinhal e Magalhães Ribeiro:
Recebam um grande abraço e os maiores votos da continuação de uma boa forma para a sustentação deste querido Blogue.
Rui Silva
A propósito de médicos militares na Guiné
Ultimamente tem-se “falado” no Blogue de médicos incorporados nas tropas na Guiné e então fez-me lembrar um episódio; episódio que tem o valor que tem, ou que lhe queiram dar.
Não indico, por razões de princípio e óbvias, os nomes dos principais protagonistas: Médico psiquiatra no Olossato e Furriel com a cisma do “Paludismo crónico”.
A minha Companhia era das ditas independentes. Independente de quê, não cheguei a saber. Era, era bem dependente do Batalhão. Primeiro do BArt 645 os “Águias Negras” (águias com 3 cabeças!) e depois deste vir embora passou para a alçada do BCaç 1857.
Um e outro com sede em Mansoa. Zona de Ação: Oio, ou grande parte deste.
As Companhias ditas independentes eram assim como Companhias bastardas e ao que parecia as mais sacrificadas, para fazer jus ao epíteto. As do próprio Batalhão eram mais protegidas. Isto era o que bem parecia e o que se dizia. Terá sido bem assim? Bom, que a minha Companhia era quase sempre o Grupo de Assalto…
Não, não. Não pretendo fazer juízos de valor, e então lembrar-me dos que andaram por exemplo na operação Tridente, dos que estiveram em Guileje, Guidage, na fase final da guerra, entre outros lugares… Irra (!) por bons sítios ainda andei eu, afinal.
A minha Companhia não tinha médico próprio e, em Bissorã, quando estávamos ali com a 643 (Companhia de BArt 645) julgo que ali havia um clínico permanente e que pertencia ao efetivo do Batalhão. Não tenho a certeza porque, felizmente, não tive necessidade dos seus préstimos, isto em cerca de 5 meses que a Companhia 816 ali esteve.
No Olossato onde a Companhia 816 trabalhava já sozinha, a visita do médico era esporádica, mas, mais ou menos regular, convenhamos.
A messe dos Furriéis no Olossato. As portas da fachada, são as do refeitório e a primeira janela do lado esquerdo é a do meu quarto, onde ficava com mais 3 camaradas. Ali, no refeitório, comia-se menos mal, escreviam-se os aerogramas, ouvia-se a toda a hora o Roberto Carlos (quase sempre “Quero que todo o mais vá pr’ó inferno”) e jogava-se a batota à noite, e às vezes com batatada pelo meio (só ameaços).
Foto do álbum fotográfico do meu amigo José Augusto Ribeiro, ex-Furriel mil. da 566, que aqui reproduzo com a devida vénia.
E por falar de saúde, aqui se ilustra e se interroga se estávamos a tratar da saúde ou a dar cabo dela. Depois das “operações vaca” não faltavam uns miolos fritos bem regados com cerveja (bebia-se tipo trompete). Era um pitéu que acontecia muitas vezes e ao meio da manhã. E tão bem que sabia! Dimais! Travessa e pratos da época: alumínio engelhado. Copos? não me lembro!
Estávamos então uns poucos de Furriéis na nossa messe no Olossato quando chega um Furriel camarada, da consulta no médico.
Perguntamos-lhe então qual era o problema.
- “O que é que o médico disse?”
- “Ele respondeu que isto passava, que, do que eu me queixo, ele anda bem pior, mas que não dá importância, que isso passa”.
- “Disse-lhe que me doía a barriga e ele aponta-me o sítio: “É aqui.?” “É mesmo aí Sr. Doutor”, ao qual ele me reponde: “É exatamente como eu, ando aí com umas dores…, mas, nem ligo, é melhor não tomar nada, que isto passa.”
- “Bom, como vi que o médico afinal ainda andava igual ou pior do que eu, vim resignado”.
Aqui então é que se despoletou a discussão.
- “Oh(!) caramba!!,” - disse outro após aquela queixa e ulterior resultado:
- “Ele também disse que andava pior do que eu. Queixei-me das costas e após algumas perguntas sobre outros sintomas ele diz-me”:
- ” Olhe, eu também ando exatamente como você e não me queixo. Isto passa.”
Outros ratificaram o diagnóstico/ terapêutica quase taxativo do médico, sobre os seus casos, e chegamos à conclusão que era uma boa maneira psicológica de tratar os pacientes. Podia era não chegar. Não havia drogas, o que dava um certo conforto, e o pessoal queixoso esquecia o seu mal.
- “Afinal quando o médico se queixa mais do que eu…”. Nem sequer sinal dos tais comprimidos que “saravam tudo”.
Aqueles comprimidos brancos de cerca de um centímetro de diâmetro que eram dados dois, embrulhados num papel, que nos davam na tropa na metrópole. Os comprimidos LM. Estava ali tudo neles, o que era preciso para curar, tudo (ou quase tudo).
Na Guiné não dei por eles. Os micróbios, fungos, parasitas e outros seres microscópicos que por ali andavam eram bem outros e mais variados (à la carte).
- “Porque é que estes seres não são visíveis para que a gente possa dar conta deles antes que eles nos “cosam?” - como dizia um camarada meu, ajuntando que era um defeito da natureza.
Curiosa a imagem seguinte e legenda subsequente obtida e aqui reproduzida, com a devida vénia, do Blogue http://bart1914.blogspot.pt
Por que foi que deixaram de fabricar os comprimidos "LM"?... Acudiam a tudo - diarreias, cefaleias, bicos de papagaio, panaríssios, enjoos, malária, gripes, tremideiras, eu sei lá mais o quê?
Após alguma pesquisa viemos a saber que o médico ali no Olossato era um Psiquiatra.
Bom, de Psiquiatra também precisávamos e não era pouco, pois os neurónios da malta não andavam bem sincronizados, naquela situação, mas precisávamos mais alguma coisa da medicina, obviamente. E então de erupções na pele havia para todos os gostos. Logo as virilhas com a “flor do congo” à cabeça. Manga de erupções cutâneas, em forma de borbulhas de rosetas, de manchas, etc.
Aqui, os enfermeiros, com o 1214, também resolviam boa parte dos problemas de pele. Os alérgicos à tintura de iodo (raros), às vezes ficavam era ainda bem pior. O Ásterol era bom mas dava para chamar “oh da guarda!!”
Só que o 1214 não sarava tudo, o que era na pele, claro.
Mas que o Dr. Psiquiatra diagnosticou e “terapeuticou” muita gente, à custa de “boas palavras” e com (no mínimo) razoáveis resultados, lá isso foi uma boa verdade.
Tive um colega meu (julgo que o único caso do foro), que cismou que tinha o Paludismo crónico. Chegou a acordar-me alta madrugada com o “Simpósium terapêutico” na mão a apontar-me os sintomas do Paludismo crónico. E que era isso mesmo que tinha.
Os sintomas, que o livro preconizava, coincidiam precisamente c’os dele, isto na sua maneira de ver, claro. Chegou a comprar um termómetro e a andar com ele no bolso.
Um dia, em Bissau, andávamos juntos a passear, quando a certa altura dei por a falta dele ao meu lado. Olho para trás e ele estava encostado a uma árvore a medir a temperatura na axila.
Ao ler, olha para mim e diz-me:
- “Vês? Há pouco tinha 37.2 e agora já tenho 37.4. Vês? É uma característica do Paludismo crónico: oscilação da temperatura. Estou f…..”
Sei que após algum tempo recuperou, não sei se foi o aludido Psiquiatra que o curou. Se calhar até foi!
Passem bem!
Rui Silva
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Nota do editor:
Último poste da série de 9 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11820: Os nossos médicos (63): O dr. Sousa Fernandes, o VCC de Guileje, era de Coimbra e infelizmente já nos deixou em 2000 (José Crisóstomo Lucas)
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8 comentários:
"De médicos e de loucos todos temos um pouco".
Em pleno ano da graça de 2013....
"Quero fazer um "taco" ao corpo todo"
Então porquê ?
"É para me verem toda por dentro"
Oh minha senhora,certamente tem "vergonha" quando a vêm por fora, já viu o que é verem-na toda por dentro.
Já,já levei a injecção contra o "teto"..difícil mas consegue-se.
"Este é para o castrol,este para a betes,este para a tensão..obrigadinho pela informação.
"É do fígdo,não é ?..e aponta para o lado esquerdo do abdómen..
As análises estão bem..."estão bem !!..mas eu sinto-me tão mal..
"Será que tenho castrol"?..o GT ou o 40..
"Doi-me tudo desde a cabeça aos pés".
"Tenho uma ursa crónica há mais de 50 anos".
"A idade tudo traz e nada é bom"
O sortudo
"Olhe só me dói às vezes a cabeça e as pernas não querem andar"..tem 97 aninhos.
"Nunca mais me curo desta apiação"..95 primaveras.. e a culpa é certamente minha.
Poderia continuar...
Já tenho utilizado a técnica "do a mim também"..mas fico com a sensação de que o doente pensa "o gajo é parvo".
Um alfa bravo
C.Martins
Amigo Rui
Na 643, havia um camarada de nome Sousa que tinha uma "ursula" no estomago, mas era ele que sonhava com a artista de cinema da altura, aquela com os airbags bem aviados.
Falando a sério, o médico da 643 era o Drº Lourenço Ribeiro de Campos, que era da Branca-Albergaria a Velha.
O teu psiquiatra era um sujeito que um dia fomos dar com ele todo nu, deitado na cama de pernas abertas e a pôr pó de talco ás carradas nas chamadas partes e a rir sózinho, e o nosso fur. Enfº o Peixoto disse-lhe, Doutor tem de ir ao médico. Um abraço RC
Meu caro doutor Martins: todas as profissões têm o seu anedotário... O dos médicos é um enciclopédia.
E porquê ? A relação médico/doente, ou relação terapêutica, foi, é e continuará a ser (apesar do aumento da literacia da saúde...) uma relação de consulta entre um profissional (especialista) e alguém (que é um leigo) que procura ajuda para um problema de saúde.
Já não é hoje, como no passado uma simples relação "infatilizante", assimétrica entre o doutor e o paciente (objeto passivo), a nºão ser quando eu no bloco operatório, anestesiado ou em coma...
O doente (ou utente, cliente, termos que os nossos médicos mais velhos tiveram alguma dificuldade em aceitar, sobretudo em ocntexto hospitalar...) é um hoje um "sujeto ativo e proativo", embora continue a ser válida a ideia de "relação de agência" (não sou eu, mas sim o meu médico assistente ou de família que sabe qual é a especialidade certa e o especialista certo para me tratar da minha ancoartrose...)
Em suma, a relação médico/doente é hoje, e cada vez mais, uma relação de negociação, de poder, embora os termos de troca não sejam iguais: no caso da doença crónica, por exemplo, a relação médico/doente é inegavelmente mais equilibrada, baseada na negociação e cooperação... O "doente crónico" não é um doente fácil, mas a "adesão à terapêutica" é um resultado fundamental de um boa relação entre os dois atores...
Vem este paleio, sociológico, a propósito de quê ? Ah, do anedotário médico... Sou péssimo a contar anedotas, contrariamente ao meu saudoso pai, que tinha sempre uma artilhada para cada caso e situação, para cada pessoa ou grupo..
Mas delicio-me a ouvir médicos amigos a contá-las... E fico grato a quem aqui quiser ajudar a aumentar e melhorar o nosso anedotário médico da Guiné, como é aqui o caso do Rui Silva, o camarada que mais escreveu até agora sobre os nossos males do corpo no TO da Guiné... Eu até julgava que ele era profissional de saúde nesta vida! Só o conheci, pessoalmente, o ano passado, creio eu, em Monte Real.
Para os dois um abraço. Luis Graça
PS - Esta é velha, mas é das poucas de que me "alembro"... Um velhote alentejano, lá na Cuba, às voltas com o seu problema de disfunção eréctil, vai à consulta, programada, do médico de família:
- Atão, Ti Domingos, o que é que temos hoje ?
- O doutôri, era pra ver se me aviava uma caixa de pa-na-sê-ta-moli...
Valeu mesmo a pena!! Oh(!) se valeu.
Só para ver os 3 comentários (o seu teor principalmente) da gente ilustre que aqui os pôs, eu acho que foi mesmo muito bem sucedido com a minha mensagem.
Fiquei contente.
Bem hajam, Dr. Martins; amigão Cardoso e comandante Luís.
Rui Silva
Não sendo médico também eu tenho muitas estórias de clientes.Aqui vai uma:
Então D.Guilhermina,como vai?
-Muito mal,senhor drº!Fui chamada à
Escola.Parece que o meu filho mais novo é mental.O outro é toxicoindependente e o meu marido está doente,subiu-lhe o cachecol..
J.Cabral
E já agora,num dos meus últimos julgamentos,o meu cliente disse-me muito sério-Quem me tramou,foi o mistério público...
J.C.
Ganda Jorge... Médicos e advoghados, usam uma linguagem "esotérica", palavrões compridas e ininteligíveis... Costados dos pobres dos humanos... Vingam-se a dizer mal deles, nas costas...Atenção: nunca ouvi um doente/utente dizer mal do sue médico... Prefere falar no plural, como nos provérbios populares (que devem ser entendidas como formas de crítica social, sobretudo por práticas médicas do tempo em que a eficácia terapéutica era nula ou reduzida).
Aqui vai uma lista da lista coleção (sobre o físico ou médico):
"A crença dos médicos que falta nos sãos sobeja nos doentes"
"A desgraça de uns é a fortuna de outros"
"A despeito dos médicos viveremos até morrer"
"A doença é o celeiro do médico"
"À falta de médico não morre o doente"
"Ao médico, ao letrado e ao abade falar verdade" (Séc. XVII)
"A médico, confessor e letrado nunca enganes"
"Aos trinta anos quem não é tolo é médico"
"De médico e de louco todo mundo tem um pouco"
"De médico, engenheiro e louco todos temos um pouco"
"De poeta, médico e louco cada um tem um pouco"
"Deus, assim como dá a doença, dá o médico"
"Deus cura os doentes e o médico recebe o dinheiro"
"Deus é que cura e o médico leva o dinheiro"
"Deus te guarde do parrafo de legista, do infra de canonista, et-caetera de escrivão e de recipe de mata-são"
"Do São Martinho ao Natal, o médico e o boticário enchem o bornal"
"É médico ou pregador de dúzias"
"Emenda de jogador e prognóstico de médico serão o que for"
"Enfermo paciente faz o médico cruel"
"Erros de físicos a terra os cobre"
"Erros de médicos a terra os cobre"
"Guarde-nos Deus do físico esperimentador e de asno ornejador" (Séc. XVI)
"Médico novo e puta velha, todos gostam de experimentar"
"Médico velho, advogado novo"
"Médico velho, cirurgião novo, boticário coxo"
"Médicos de Valência: grandes fraldas, pouca ciência"
"Mostarda na horta, médico à porta"
"Não há melhor médico do que o fiel amigo"
"Nem com cada mal ao médico, nem com cada trampa ao letrado"
"O bom médico é o do terceiro dia"
"O médico deve ser prudente, o enfermo paciente e o criado diligente"
"O médico e o calceteiro cobrem os erros com terra"
"O médico é o pai da crença"
"O médico quando é pago por ricos é considerado criado; quando recebe dos pobres, é ladrão"
"O melhor médico é o que menos fala e mais observa"
"O melhor médico é o que se procura e se não encontra"
"O melhor médico é, por vezes, o pior doente"
"Pior é ter mau médico que estar enfermo"
"Por causa do fedor ninguém vai ao doutor"
"Quando é de morte o mal, não há médico para curar tal"
"Quando o doente diz ai, o físico diz dai"
"Quando o doente diz ai, o médico diz dai"
"Quando o doente escapa, foi Deus que o salvou; e quando morre, foi o médico que o matou"
"Quando o médico é piedoso é o doente perigoso"
"Quando os doentes bradam os médicos ganham"
"Quanto mais médicos, mais moléstias"
"Quem sempre traz má cor não é médico nem doutor"
"Se tens físico teu amigo, manda-o a casa do teu inimigo"
"Serigaita sã não precisa médico"
"Tratem-nos à moderna, que eles morrem à antiga"
"Um médico cura, dois empatam, três matam"
Caro L.Graça
Muitos dos provérbios que citaste não estão desactualizados..
Não resisto a contar uma "estória" de disfunção eréctil..neste caso já nem era disfunção..era apenas resultado de múltiplas patologias..82 anos,obeso,diabético,hipertenso,insuficiência cardíaca...etc..normal não conseguir por o "coiso" hirto e firme...
1.ª consulta
"Sabe arranjei uma cachopa nova e não consigo..sabe..não consigo..
Gostava que me aviasse aí um remédio pra coiso..sabe".
Na altura não existia o viagra..mas perante tanta insistêcia..passei-lhe um polivitamínico,sabendo de antemão que nem como efeito placebo resultava..
2.ª consulta
"sabe aquilo não fez nada"..pudera
"disseram-me que há um pó que se tira das "cantaricas"..que faz um efeito do caraças..um gajo anda com a "veia" tesa durante semanas..
Eh..lá que exagero..
" o sr.doutor não sabe".."embatuquei"..fiquei à rasca..bem de facto existe uma coisa dessas mas é muito perigoso,o sr. pode morrer no acto.
"Ai...sr. doutor..dê-mo..dê-mo..se morrer morro satisfeito".
PS
A cachopa nova tinha 75 anos.
O doente faleceu pouco tempo depois, de morte natural.
Um alfa bravo
C.Martins
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