Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 31 de março de 2017
Guiné 61/74 - P17190: Notas de leitura (942): “O país fantasma”, de Vasco Luís Curado, Publicações Dom Quixote, 2015 (1) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Janeiro de 2016:
Queridos amigos,
Percebe-se como a literatura pós-colonial passou a ter um lugar cativo na imaginação romanesca e ocupar cada vez mais os escaparates das livrarias. Sobretudo em Angola, mas igualmente em Moçambique, houve colonos que ali viveram ao longo de gerações e que tomaram como seu lugar de pretensa aqueles rincões onde labutaram. Vasco Luís Curado escreve na dedicatória: "Para os meus pais e os meus irmãos, que há vários anos desenham o mapa de um país fantasma".
Com rigor e coragem ele não desenha um mapa, ele tece um romance épico e trágico. A ação inicia-se no Norte de Angola, naquele período convulsivo de Março de 1961. Um alferes irá afeiçoar-se àquele bocado de África, casa-se e as vidas vão-se cruzar com outro casal de funcionários coloniais, em Gabela. Essa coragem está patente no modo como ele desvela, de cima a baixo, as relações coloniais. A guerra prolonga-se e parece estar distante, é nisto que chega o 25 de Abril e Gabela vai experimentar um horror diferente: os movimentos de libertação desencadeiam a guerra civil, e a minoria branca vai ser posta em causa.
Temos aqui o retrato dantesco do caos em Luanda.
Por muito boas razões, recomendo este livro.
Um abraço do
Mário
O país fantasma, por Vasco Luís Curado (1)
Beja Santos
É patente na literatura do período pós-colonial que uma das alavancas que põem em funcionamento uma arquitetura literária que ganha crescente procura passa pela apresentação de famílias nos tempos e nos lugares em que soprou a guerrilha, com a sua maré apocalítica, e o caos que acompanhou os acontecimentos da independência, em 1975, nos casos específicos de Angola e Moçambique.
“O país fantasma”, de Vasco Luís Curado, Publicações Dom Quixote, 2015, engrena neste tipo de romance histórico: duas famílias, juntas pelo acaso, o alferes Capelo que assistiu em cheio ao massacre de centenas de brancos, e que ao fim de duas comissões já não descobre qualquer razão para regressar, casa com uma menina de Gabela e torna-se proprietário de plantações de café; e Mateus, a iniciar-se na administração colonial, em Moçâmedes, e que assiste à prisão e tortura de rebeldes e guerrilheiros, vai com a família para Gabela, chega o 25 de Abril e revela-se um novo caos, três movimentos independentistas semeiam o terror, é uma guerra civil que espalha o caos e muitos ajustes de contas pessoais. Não assistamos só ao fim do período colonial, Vasco Luís Curado dá-nos com mestria a riqueza de pormenores sobre as relações entre brancos e negros, e muito antes de 1961.
Mas é em 1961 que começa o romance histórico, Capelo vai nos primeiros contingentes que avançam para as plantações do distrito do Uíge. O cenário é dantesco, civis armados, uma atmosfera de raiva e exaltação, vão depois de Carmona ao Negage e daqui até Quicangulo, as gentes andam em fuga, as sanzalas ou destruídas ou abandonadas, é um quadro de desolação indescritível. Quicangulo foi destruída, algumas dezenas de civis estão ali entrincheirados, a resistência é épica, só uma vaga de bombardeamentos aéreos consegue repelir os homens da UPA. Mas a partir de Quicangulo, o desastre ainda é maior, há sinais de depredação por toda a parte. E descreve-se brutalmente o terror:
“Perto da estrada que continuava, e que ia ter a Damba, a Maquela do Zombo e à fronteira, a companhia encontrou, na fazenda Felicidade os primeiros mortos. Logo à entrada, o portão estava encimado por cabeças de bailundos espetadas em varas. No terreiro da secagem do café, viram porcos a foçar em cadáveres. Dava para reconhecer, apesar de desfigurados, aqueles que deviam ser o pai, a mãe, os filhos. Mais afastados, os criados. Adultos e crianças tinham a carne retalhada e os ossos dos braços e das pernas partidos por golpes de catanas”.
O escritor, vê-se desde as primeiras linhas, está altamente documentado, todo este horror vivido no Norte de Angola,em Março de 1961, consta de inúmera documentação: os civis tresloucados, as fugas para o mato, nem sempre bem-sucedidas, os interrogatórios bárbaros, o estado de pavor das populações, sempre à espera das multidões ululantes, de catana em riste. Ouve-se falar em feitiçaria, em canibalismo, cabeças cortadas.
Em Moçâmedes, anos antes de se desencadear este terror, Vítor Mateus é aspirante da administração colonial. Na construção da obra, cabe a este funcionário desvelar uma das imagens mais trágicas do colonialismo: a ferocidade com que eram tratados os negros, a palmatória e o chicote, a indiferença das autoridades com o trabalho forçado:
“Vi, na parada da Administração, doze negros a receberam, um a um, palmatoadas que um cabo de cipaios assentava na mão que lhe estava submetida, com uma palmatória grossa de madeira. O batido gritava a cada palmatoada, contorcia-se, recuava como quem queria fugir, entalava a mão entre o braço e o corpo para aliviar a dor, mas era obrigado a reaproximar-se para as palmatoadas seguintes”.
Mateus não se sente entusiasmado por caçar, é um apaixonado pelo jogo de xadrez. Dá passeios, num deles o velho Saraiva dá-lhe uma lição sobre a presença portuguesa em África:
“O preto não gosta de trabalhar. Há que castigar como um pai castiga um filho. É isso que se exige de nós, é essa a nossa missão: civilizar, ensinar, conduzir. Queremos tirar esta gente da barbárie”.
Novos personagens vão entrando no enredo, caso de Beatriz, a mulher de Mateus. Capelo finda a comissão, vem a Portugal, sente-se desenquadrado, volta para Angola. Estamos agora no aquartelamento de Quipedro, os guerrilheiros do MPLA fazem um golpe de mão, Mateus fica ferido, mais tarde é desmobilizado. Chegou o momento de Capelo conhecer Mateus, na Gabela, em plena zona cafezeira do Cuanza Sul, “estava a mil metros de altitude e espreitava os vales onde se produzia uma das melhores variedades de café do mundo. Do alto dos morros avistavam-se, em dias limpos, as montanhas que Paulo Dias de Novais, no século XVI, julgava que tinham minas de prata. Em cem fazendas, ricas e modelares, o café em flor trepava as encostas, entre casas brancas e terreiros de secagem. Daqui, de comboio, escoavam-se milhares de toneladas de mercadoria para os navios em Porto Amboim. O mar estava a menos de cem quilómetros”. Capelo apaixona-se por Mariana, uma das filhas do fazendeiro Mourão, empolga-se com a beleza dos vales, com o café e os palmares. Ficamos com um quadro elucidativo da vida em Gabela, a relação entre fazendeiros, a descriminação racial. Um dos filhos de Mourão, Alexandre, é um biltre, negoceia em droga, foi parar ao campo de S. Nicolau, caber-lhe-á, no decurso da guerra civil, ser a imagem viva do oportunismo. A guerra já vai demorada, os brancos falam na independência, há quem acredite que Angola será um Estado onde as relações entre brancos e pretos melhorarão profundamente, há imensas discussões e prognósticos sobre a Angola independente.
Com o 25 de Abril, muita coisa começa a mudar em Angola, até aos acordos de Alvor. Estala a violência entre movimentos independentistas, aquele mundo semiadormecida na Gabela entra em convulsão:
“A instalação das delegações dos movimentos de libertação e dos quartéis de guerrilheiros mudara a Gabela. A população negra estava mais confiante, enquanto a população branca observava com expetativa. Já não havia clubes exclusivos. Para este baile de fim de ano, onde a participação alargada aos negros era a nota dominante, muitos brancos sentiam-se coagidos a comparecer, com medo de passarem por reacionários se não o fizessem".
Estamos agora em Luanda, ao princípio falava-se muito na concórdia entre todos os angolanos. O futuro da minoria branca parecia depender das boas relações com a etnia dominante. É então que o conflito ganha uma dimensão medonha, vamos assistir às convulsões que a guerra civil irá gerar na capital angolana.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 27 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17182: Notas de leitura (941): Cocaína e golpe de Estado, fantasmas de uma nação amordaçada na revista Reporters sans fronteires, Paris, número de Novembro de 2007 (Mário Beja Santos)
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2 comentários:
Obrigado Beja Santos por mais esta, espero a continuação.
Romances são romances, mas como aquele alferes é meu contemporâneo em Angola, eu só não fiz segunda comissão como ele, fardado, quando encontrar o livro terei que lhe dar uma vista de olhos.
Mas achei graça ao velho Saraiva:o velho Saraiva dá-lhe uma lição sobre a presença portuguesa em África:
“O preto não gosta de trabalhar. Há que castigar como um pai castiga um filho. É isso que se exige de nós, é essa a nossa missão: civilizar, ensinar, conduzir. Queremos tirar esta gente da barbárie”.
Achei graça, porque me lembrei do sacana do holandês que recentemente em Bruxelas disse coisa pior da gente.
Mas romances são romances...e o chicote é uma arma!
O Saraiva pensou mas não disse: ..... Queremos tirar esta gente da barbárie, a escravatura nunca deveria ter acabado.
Valdemar Queiroz
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