quarta-feira, 29 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17187: Os nossos seres, saberes e lazeres (205): De Pedrógão Pequeno a Tomar, com mala-posta e azémolas (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 10 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,
Advertiu o profeta José Saramago que o que se vê na Primavera não é o mesmo que se vê no Outono, uma miríade de detalhes, situações e comportamentos fazem divergir o olhar ou a tomada de atenção: a luz, a hora do dia, o frio ou o calor, os solos gretados ou lamacentos, o uivar do vento ou o braseiro do estio.
Em 60 quilómetros de viagem, de Pedrógão Pequeno a Tomar, quanta dissemelhança, quão pouca aproximação neste Portugal tão versátil, em que tantas vezes descremos dos seus esplendores intrínsecos. O que dói no passeio dá por dois nomes: o abandono e a fuga das gentes, temos aqui a fronteira na zona centro da interioridade desolada; e a incaraterística da arquitetura, passe por aqui um minhoto ou um alentejano e tem que se assombrar com a falta de caráter do casario.
E quanta beleza natural e que deslumbramento florestal...

Um abraço do
Mário


De Pedrógão Pequeno a Tomar, com mala-posta e azémolas

Beja Santos

São escassas dezenas de quilómetros e que substanciais diferenças entre a partida e a chegada. Logo à partida os solos ácidos, a aspereza florestal, mas uma luz de encandeamento. José Malhoa, o grande pintor que se acolheu a Figueiró dos Vinhos, não se cansava de exaltar o sol, a luminosidade, o cíclame vegetal. O turista afoita-se ao caminho neste tempo estranho de um Verão de S. Martinho, entre a glorificação dos santos e a homenagem aos mortos. Já chegou o tapete verde que esconde feridas e terrunho solto, o que fascina o viandante é aquele azul quase elétrico que culmina no sombreado das oliveiras, estão em amadurecimento.



Um grande contista vernacular, João de Araújo Correia, homem da região do Douro, de entre a sua prosa inesquecível retém o viandante a seguinte passagem: “No Outono, quando as vinhas se empurpuram e doiram de baixo de uma luz coada por um velário”. Pode ser tudo verdade, mas entre o que se vê e o que chega ao lagar é abissal a distância. Será ano de pouco vinho, mas quem não se fascina com estas vinhas que se empurpuram?


Os grandes poetas gregos e latinos exultaram com a flor dos campos, o inebriante dos seus olores, são o grande aprovisionamento de uma sinfonia pastoral, cantam as giestas, não esquecendo as acácias e os lírios do vale. A terra vai adormecendo, atapeta-se de um castanho que é bendita matéria orgânica, se o homem em pó se torna a natureza ao fenecer revigora a sua matriz, será o cântico da primavera.


É tempo de rosas, de margaridas, a lavanda está olorosa mas que dizer das dálias, orientam-se para a luz do sol, são flores femininas, talvez pela postura, por esperarem sabendo que são admiradas, ninguém lhes fica indiferente à coquetaria daquelas pétalas que parecem asas a voar.



Mudou a paisagem, mudou a luz, estamos agora em terrenos úberes. Já te trotou até à cidade, dezenas de quilómetros se fizeram até terras de lezíria, de aluvião e paul. Mil vezes se passou por este convento da Contra-Reforma, de aprumo austero. Nunca se dera pelo facto da dissemelhança existente na fachada, o arquiteto, a páginas tantas, lembrou-se da torre sineira e remendou airosamente, com sino de campanário e uma quase sineta, para dar um fio de música. E regista-se o que avulta na lápide, aquela pedra que foi botada ainda no tempo filipino. Como o viandante é septuagenário, aquela palavra botar é-lhe bem familiar, está hoje em desuso com as regras da sociedade de consumo que trucida tudo o que vem do mundo campestre, da vida aldeã, que cheira a córregos ou amanhos da terra.


Tem o viajante cismado como as glicínias concorrem com as buganvílias, ao tornar mimoso a frontaria das casas e as entradas com jardins. Àquela hora, Tomar estava em recolhimento, deu tempo que o viandante andasse calmamente entre a Várzea Grande e a Várzea Pequena à procura da glicínia mais exuberante. Aqui encontrou foi esta, e regista-a com indisfarçável alegria, Tomar com cores tem mais ternura.


Vens do passado, daquele tempo irrefragável em que houve Descobrimentos e aqui se fazia fortuna em nome da Ordem de Cristo. És memória, e sinal das fazendas prósperas, de sabões e azeites, de campos cultivados, de mantimentos que partiam nos navios. Bendita memória, ainda por cima num dia em que recebes a calorosa saudação dos céus.


O viandante atém-se a pormenores. Por exemplo, um prédio expetante, com janelas abandonadas, mas o edifício está pintado e permite ver o donaire da varanda, graciosa, e mais graciosa ficará quando se fizerem obras naquela casa que está um esconso. E depois procurou-se o Outono no Nabão, mas o destino troca-nos as voltas, o que se encontrou foi este encanto da água a escorripichar para o rio e lá no cimo uma nesga de castelo com o céu limpo.


E aqui finda o passeio que o viandante encetou a partir da barragem do Cabril, em Pedrógão Pequeno na mansidão outonal. Sempre que vê flores e mão de jardineiro, o viandante vai coscuvilhar. São begónias pequenas, flamantes, a caminho de uma ponte das mais importantes de Tomar. Queridas begónias que nos enchem a alma, são juventude e uma eterna fé no futuro nos ciclos da Terra.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17170: Os nossos seres, saberes e lazeres (204): Central London, em viagem low-cost (6) (Mário Beja Santos)

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