Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 30 de abril de 2018
Guiné 61/74 - P18582: Notas de leitura (1062): Retrato do colonizado e retrato do colonizador, por Albert Memmi; editado por Gallimard (1) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Maio de 2016:
Queridos amigos,
Já tinha ouvido falar da obra no contexto dos grandes documentos que acompanharam a ascensão da luta anticolonial, mas nunca encontrei estes ensaios de Albert Memmi. Dei por ele num escaparate numa livraria de Bruxelas, foi atraído pela imagem, parecia-me uma reprodução de um quadro de Joaquim Rodrigo, e era mesmo. O preço também era convidativo, imagine-se um livro recém saído ao preço de 5 euros! E depois foi ler de uma empreitada e voltar a ler para digerir melhor.
Jean-Paul Sartre diz que no livro está o fundamental do colonialismo, do colono e do oprimido e em rigor não está. É um trabalho de meados da década de 1950, de alguém que se quer compreender melhor a si próprio, um tunisino a fazer carreira universitária em França, preso pelos homens, assumidamente inserido na cultura francesa. Nem tudo foi assim entre colonizados e colonizadores, ditará o conhecimento histórico posterior. Mas os grandes pilares dos comportamentos, e a relação fundamental do que condiciona o colonizador e colonizado pode ler-se aqui, com todo o rigor e seriedade.
Um documento cuja leitura se recomenda a toda a gente.
Um abraço do
Mário
Reler um clássico do colonialismo:
Retrato do colonizado e retrato do colonizador, por Albert Memmi (1)
Beja Santos
A conceituada editora Gallimard acaba de reeditar uma das obras mais relevantes da década de 1950 no tocante ao debate sobre o colonialismo, o "Retrato do colonizado e o retrato do colonizador", de Albert Memmi, professor honorário da Universidade de Paris, nascido em Tunes, conheceu os campos de trabalho na ocupação alemã.
Estes dois ensaios foram escritos antes da guerra da Argélia, procuravam descrever a fisionomia e a conduta do colonizador e do colonizado, passar a pente fino o que os unia. Os seus postulados eram rigorosos e concluía-se que não havia saída para a colonização, tudo passaria pela independência dos colonizados. Tratava-se de uma solução que muitos consideravam radical, houve até muita boa gente de esquerda que duvidou de que tal seria viável. Depois os acontecimentos precipitaram-se na Argélia e por toda a África, e o que Albert Memmi descrevia revelava-se mais do que premonitório. A obra de Memmi é hoje estudada nas faculdades africanas. Gente de todo o mundo identificou-se com estes escritos, e uma firmação ficou lendária: “A colonização fabrica colonizados do mesmo modo que fabrica os colonizadores”.
As edições sucederam-se. Em 1966, Memmi preparou para uma nova edição um longo prefácio. Recordou que tinha escrito um romance “A estátua de sal”, a história de um casamento misto, que culminava num rotundo insucesso. O autor constatava que o mundo sobre o qual escrevia era o da colonização e para compreender os insucessos da sua prosa era preciso compreender o colonizador e o colonizado. Ele, um tunisino e também um colonizado. A sua vida não fora fácil na Sorbonne. E foi assim que se lançou num inventário na condição de colonizado para se compreender e identificar o seu lugar no meio dos outros homens. Acabou por concluir que todos os colonizados e todos os oprimidos se assemelham. Em vários pontos do globo explodiam contestações, reclamavam-se direitos humanos: havia as independências asiáticas, os norte-americanos negros reivindicavam direitos e leis não discriminatórias, o Norte de África reclamava a sua independência, de uma ponta à outra. Outras verificações ocupavam-lhe o espírito: o viver quotidiano do colonizador e do colonizado em que a humilhação do colonizado não é meramente económica, mesmo o mais pobre do colonizador considerava-se superior ao colonizado, isto ditava o privilégio colonial. Memmi considerava igualmente que a psicanálise tal como o marxismo não dispunham de formulação teórica e equipamento prático para explicar todos os sentimentos, todos os sofrimentos da relação entre o colonizador e o colonizado. E assumia corajosamente a sua identidade: um indígena, próximo da cultura muçulmana e igualmente apaixonado por muitos traços da cultura francesa; do que via e do que sentia, estava em querer que o retrato do colonizador em parte do seu. Enquanto autor, pedia ao leitor que não tratasse este livro como um objeto de escândalo, mas que fosse crítico para os dois retratos apresentados, tendo em mente que este livro poderia ser útil quer para o colonizador quer para o colonizado.
É nesta edição que se inclui um artigo que Jean-Paul Sartre escrevera em Les Temps Modernes, ao tempo uma das mais conceituadas revistas de produção ideológica. O Prémio Nobel da Literatura procura enquadrar a máquina colonial que começara a ser construída no fim do II Império e se aperfeiçoara na III República: a colónia vende barato as suas matérias-primas, compra caro à metrópole os produtos manufaturados. O subproletariado agrícola colonial não pode contar com qualquer apoio dos europeus. E dava um exemplo concreto: o rendimento médio de um francês na Argélia era 10 vezes superior ao de um muçulmano. Não o surpreendia as manifestações de violência dos oprimidos, até porque o colonialismo manifestamente recusava os direitos humanos a que submetera por violência. E desta constatação partia para a análise da obra, reconhecendo as verdades avançados pelo autor: não há nem bons nem maus colonos, há colonialistas. O colono autoabsolve-se, é predominantemente conservador; quanto maior fora dimensão do subproletariado mais será a subexploração. O sistema colonial é uma forma em movimento perpétuo, nascida em meados do século XIX e que irá produzir a sua própria destruição, não havia que ter ilusões sobre o destino da Argélia.
Entramos agora no retrato do colonizador, os mitos sobre a sua imagem. O que acima de tudo distingue o colonizador é a casta dos seus privilégios, a relação frutuosa que estabeleceu com os seus negócios, os benefícios que extrai do estatuto de adquiriu, o reconhecimento que o sistema colonial lhe oferece. Em caso algum ele vê a legitimidade no acervo das leis que o servem e que acabam por o tornar um usurpador. Observa que há várias mistificações na colonização, colonizados por um lado colonizadores por outro com diferentes fisionomias de grupos humanos. Pode haver candidatos à assimilação, pode haver assimilados de fresca data, a comunidade europeia pode ter negociantes de várias nacionalidades.
É de questionar se existe um colonizador de boa vontade, aquele que se assume como respeitador tanto dos direitos humanos e que até se compadece com a condição dos mendigos, das crianças subalimentadas, daqueles que exibem pela rua as suas horríveis doenças tropicais, e que se indignam e que procuram ajudar os grupos carenciados. De um modo geral, essa corrente de protesto é considerada como romantismo humanitarista pelas pessoas da colónia, a pessoa de boa vontade acabará por se integrar na corrente principal do colonizador, converte-se, e para esbater as contradições fará o reconhecimento que há outros costumes, que o colonizado precisa de tempo para se incorporar noutra onda de civilização – são estes os colonizadores de boa vontade. Memmi observa que simplesmente não se pode viver toda a vida a olhar candidamente o pitoresco, o colonizador não pode renunciar a criar um qualquer tipo de identificação com o colonizado. É no âmbito desta análise que Memmi faz uma longa e polémica leitura do quadro do nacionalismo africano e como é que este é encarado pelos homens da esquerda e, o que é mais grave é que uns e outros acabam na prática, por serem escolhidos do movimento de libertação colonial: assim como não há colonizadores de esquerda, a esquerda europeia passa a desconfiar daquele nacionalismo que em caso algum tem a ver com a sua prática ideológica, tal como ele a conhece no seu país de origem.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 27 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18568: Notas de leitura (1061): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (32) (Mário Beja Santos)
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