segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Guiné 61/74 - P19022: Notas de leitura (1101): “Contos de N’Nori”; Edição UNEAS (União Nacional dos Escritores e Artistas de S. Tomé e Príncipe), 2005 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Junho de 2016:

Queridos amigos,
O guineense Carlos-Edmilson Marques Vieira é diplomata de profissão, apresenta-se como poeta, declamador e músico. Escreve em português, francês e crioulo guineense. Nota-se claramente que procuram um rumo para a literatura nacional, explora vários caminhos que vão desde a memória da luta de libertação, a presença colonial, as raízes da literatura oral, as lendas e tradições e a crítica ao cansaço, esta é uma constante da sua apreciação de um país que resignadamente espera pela hora da dignidade nacional.
A propósito do conto Mafingharawé? O escritor João de Melo sugere que se trata de uma metáfora quanto a um país em tempo de anarquia, violência e dissolução, a história em parte absurda de um homem que acaba às mãos de uma revolta do lixo e que é exibido como o culpado de uma grande contaminação que assola o país.

Um abraço do
Mário


Contos de N’Nori, por Carlos-Edmilson M. Vieira

Beja Santos

Não é a primeira vez que falamos aqui do escritor Carlos-Edmilson Vieira(*). É um diplomata de carreira que se orgulha de pôr no seu currículo que é poeta, declamador e músico. Por exemplo, compôs melodias para poemas seus cantados por Tabanca Jazz e N’Kassa Cobra. É um escritor cujas temáticas cobrem o mundo de Bissau e o tecido rural, sente-se que está apetrechado para tratar na atualidade lendas e tradições da Guiné-Bissau, são frequentes as suas incursões por histórias da infância, não ilude a sensualidade e muito menos esquece que é oriundo de um país onde houve uma pesada luta armada, onde graça a desilusão, os paradoxos e gritantes contradições.

“Contos de N’Nori”, Edição UNEAS (União Nacional dos Escritores e Artistas de S. Tomé e Príncipe), 2005, é um espelho deste largo amplexo de preocupações. Abre com o conto Noiba Nobo, em que o tio Pagode é pai de Tagara, uma menina muito requestada, o pai perde a cabeça e promete a mão da jovem a diferentes pretendentes. Metido numa camisa de onze varas, o tio Pagode contou a verdade a Tagara e esta chamou o porco, a vaca e a cabra e pediu-lhes conselho para resolver o problema. Veja-se a procura de exemplaridade no final do conto quando o tio Pagode se confrontou com quatro pretendentes à mão de Tagara:

“De repente, apareceu o tio Pagode. Todos se calaram! E maior foi o silêncio quando viram quatro meninas igualíssimas, quatro Tagaras que se alinharam atrás do tio Pagode.
Este levantou a cabeça cheio de orgulho, fez um breve discurso de conselhos e recomendações aos seus quatro genros, que partiram felizes cada um com uma mulher.
É por isso que, hoje em dia, de todo o homem cuja mulher é desarrumada e mantém a casa sempre suja se diz: este casou-se com o porco. Daquele cuja mulher está sempre a brigar: casou-se com a vaca e daquele cuja mulher é leviana: casou-se com a cabra. Só um dos homens casou com a verdadeira Tagara”.

Trata-se de um conto baseado em lendas e tradições da Guiné, onde não é incomum os animais falarem e tomarem formas antropomórficas.

O conto “O homem da flauta” faz cruzar outra forma de exemplaridade que é o combate à indiferença, com lembranças do período colonial. O homem da flauta dirige-se a toda a gente pelo nome próprio, é um vagabundo com hábitos rotinados, mata a fome prestando serviços. Um dia é desancado brutalmente por fuzileiros, procura correr desesperadamente e é atropelado por um carro. É levado para o hospital central de Bissau, o médico de plantão pergunta-lhe como se chama, ele abre os olhos e balbucia: “É a primeira vez que alguém me pergunta o meu nome”. O homem da flauta fora preso e trazido pela PIDE para Bissau. Quando o soltaram, anos mais tarde, tinha perdido a memória da família, só identificava as pessoas que via todos os dias e que o cumprimentavam e a quem prestava serviços.

De grande intensidade dramática é o conto “Mafingharawé?”. É um conto moral e de crítica política. O senhor Obopolô-camba-mar, um respeitável funcionário público, enquanto toma o pequeno-almoço ouve ler na rádio um estranhíssimo comunicado oficial: nenhum cidadão deve sair de casa, deve mesmo fechar as portas e as janelas, está em curso uma revolta do lixo para pôr cobro aos longos anos de irresponsabilidade de traição de todos quanto pactuaram com os que dirigem a cidade. Terrível é o comunicado oficial que adianta que os revoltosos testemunharam a decadência irreprimível da cidade, que foi ficando sem luz nas ruas, com energia elétrica e água potável intermitentes, as estradas cheias de buracos, alguns pontos da cidade parecem mesmo um depósito internacional de lixos, mesmo que alguns cidadãos andem desavergonhadamente com jipes 4x4, andam sempre com os vidros fechados para não sentirem cheiros.

O senhor Obopolô-camba-mar sente-se desorientado, desapoiado, mas ao mesmo tempo aquele texto de comunicado oficial que o obriga a estar quieto na escuridão, sem telefone e sem água, obriga-o a refletir e a ver o filme da sua vida em retrospetiva, há algo que bate certo entre o comunicado e a realidade: a progressiva miséria, o sentimento coletivo de abandono por esses governantes incapazes de governar. “O senhor Obopolô-camba-mar ficou horas em profunda meditação, a passar e a repassar em revista as diferentes facetas da sua vida nesta cidade. Ele que nasceu no interior do país, veio para a cidade com a revolução que acabou com a colonização. Católico não praticante, aplicado no trabalho, ocupou altos cargos administrativos durante a era colonial, ao mesmo tempo que desempenhava um papel relevante na luta clandestina contra o colonialismo, arriscando várias vezes a sua própria vida. Experiência que lhe conferiu uma ampla visão do funcionamento dos serviços públicos”. Ali esteve dois e duas noites retido em casa, na madrugada da terceira noite os lixos entraram aos empurrões e deram-lhe voz de prisão. Foi levado para a esquadra. E um dia, que ele já nem sabia que dia era, foi levado para um interrogatório. Fizeram-lhe perguntas que ele não compreendia, a fraqueza era tal que mal pôde balbuciar nas palavras. Bateram-lhe, humilhado, erguendo-se a custo, falou aos seus algozes como se estivesse a falar em nome de um país: “Estou cansado de dizer que estou cansado… Estou cansado de estar cansado. Lá fora, prosseguia a revolução dos lixos, com destruições, pilhagens, saques. Por fim, deram-lhe um tiro de misericórdia, e o senhor Obopolô, antes de cair, gritou-lhes: porque é que me estão a matar?"

No posfácio, o escritor João de Melo, atribui esta multiplicação de vozes à procura de um estilo e com uma tentativa de derrubar o silêncio de um país literário ainda por existir. Este amplexo em que se desdobra Carlos-Edmilson M. Vieira corresponde a um país à espera, a um país cansado, é um testemunho de uma Guiné-Bissau desfalecida pela violência gratuita, pelo modo como se espezinha a tradição e até a literatura oral. Como observa Leopoldo Amado, a Guiné-Bissau é um país cuja sina se chama a coitadessa (pobreza em crioulo, sofrimento) com a falência de modelos ideológicos, está tudo em aberto entre as pulsões arcaizantes, a espiritualidade que resta da luta pela independência nacional, a reação contra o cansaço e o impasse que se prolonga na Guiné-Bissau.
____________

Notas do editor

(*) - Vd. poste de 24 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11757: Notas de leitura (494): "Adormecer de um Sonho" por Carlos-Edmilson M. Vieira (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 14 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19014: Notas de leitura (1100): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (51) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Anónimo disse...

Nos Açores, em 1970, pelo menos em algumas ilhas, havia sacerdotes que já faziam serviço em mais que uma paróquia. para isso contribuíu o serviço militar de alguns, a emigração de outros e, claro, a falta de vocações para o sacerdócio, que ao tempo já era bem notória nas ilhas.
A minha companhia não teve o benefício da presença de um sacerdote. Durante os primeiros dez meses de comissão, o tempo em que estive na companhia, tenho referenciados duas visitas sacerdotais à Mata dos Madeiros (uma delas a procissão de velas que ali foi feita) e uma outra a Bassarel.
Dos sacerdotes referenciados na lista, para além do Sr. Arsénio Puim, conheço o #52 - Mariano Pereira Alves que, entretanto, deixou o sacerdócio e vive no Estado de Rhode Island, EUA.
Cumprimentos.
José Câmara