sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Guiné 61/74 - P19014: Notas de leitura (1100): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (51) (Mário Beja Santos)

O hastear das bandeiras na filial de Bissau, nas comemorações do centenário do BNU, 1964.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos,
O Gerente Virgolino Pimenta é frontal nas suas exposições, não esconde o seu asco pelo Governador Carvalho Viegas e traça-nos nestes documentos, com absoluta crueza a situação da praça, a vida miserável dos indígenas, as práticas de exploração nos preços da mancarra e as operações ilegais que eram prática corrente da Casa de Gouveia, que não sai nada bem na fotografia. Acumulavam-se as provas, entretanto a Casa Gouveia dirige-se ao Ministro das Colónias, este está perfeitamente elucidado do que se passa. Virgolino Pimenta responde igualmente pelo património, leia-se o primor da carta que envia para Lisboa a queixar-se do estado desgraçado da mobília.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (51)

Beja Santos

Embora com a data de 4 de janeiro de 1938, o Gerente Virgolino Pimenta expede para Lisboa um relatório exercício de 1936 onde na rubrica “Casas Fortes, Móveis e Utensílios” tece observações curiosíssimas:
“As medidas a adoptar para evitar a deterioração da mobília são muitas e caras mas não servem para nada. O mal está em se gastarem milhares de contos em prédios e deixar-lhes dentro mobílias minadas de baga-baga que, fatalmente, irá passar para os madeiramentos novos. Poupam-se assim quinze a vinte contos mas perdem-se muito mais em futuro curto.
A mobília de Bissau tem muitos anos. Os móveis da sala estavam já há muitos anos minados pela baga-baga e agora estão a desfazer-se. Há cómodas, debaixo das quais se tira, todos os dias, um punhado de madeira roída. O móvel principal da sala, canapé com alçado, já tem pés que nem chegam ao chão. As cadeiras vão-se deitando fora, como os tremós dos quais há só um que tem que estar encostado à parede, todo tombado, para fazer vista, senão fica uma sala enorme sem nada dentro.
As medidas para defender a mobília da baga-baga, nem no início serviriam para nada, pois ela marcharia sempre. O mal é entrar.
Agora nem pensar em se gastar dinheiro para impedir o estrago. Ele está quase no fim e não se impediria.
Aqui não há quem faça mobílias capazes. Poderia fazer-se uma para um remedeio, pesada, desgraciosa, imprópria e caríssima. Facilmente nos pediriam oito a dez contos para se não obter coisa de jeito.

A capital da colónia está a mudar e o governador pensa vir depressa para aqui. Ficará o Gerente Geral do Banco em situação de não poder recebê-lo ou a qualquer outra pessoa de categoria sem se arriscar a que uma das melhores cadeiras se desfaça e dê com o visitante em terra. Esta é a verdade.
Em nossa opinião, e dada a facilidade com que a baga-baga invade tudo e dada ainda a agravante de haver mais móveis com baga-baga que passará para os novos, a solução mais prática, se bem que possa parecer cara de início, é a aquisição de uma mobília decente formada por maples e sofás de metal cromado, grandes para dizerem com a sala, acrescentada com umas pequenas mesas e étageres que se poderão aqui fazer, sem grande despesa.
Poderá esta mobília custar oito ou dez contos que custaria uma ruína feita aqui? Talvez não. No entanto, a sua muita duração tornava-a própria para aqui e, portanto, barata mesmo que tal custasse.
Como já dissemos a V. Ex.ª, e tomamos a liberdade de repetir, poderia a esposa do gerente signatário, logo que saísse do Hospital de S. José, escolher a mobília de metal adequada à sala em questão e assim se compraria o que fosse próprio, dentro da mais absoluta economia”.

A 2 de Março, o mesmo Virgolino Pimenta dá notícias sobre a situação da praça:
“A campanha da mancarra abriu há cerca de um mês, oficialmente. Antes dessa data, já se faziam transacções encobertas, na fronteira.
A Casa Gouveia mantém-se num jogo um pouco diferente dos anos anteriores. Principiou a oferecer preços baixíssimos que alarmaram o indígena.
O Sr. Governador, para contrabater esta atitude, deu ordem para que as administrações não forçarem o indígena na cobrança do imposto. Assim, não sendo forçado a pagar, não era forçado a vender. Os preços melhoraram um pouco mas não atingem 50% do preço do ano anterior. O máximo que se paga pela mancarra posta em Bissau é de Esc. $45 por quilo. No interior, por vários preços que oscilam entre $30 a $40 por quilo.
A Gouveia retraiu-se para responder à atitude do Governador e o restante comércio tem andado perfeitamente atarantado por não conhecer as directrizes da Gouveia.
O preço baixíssimo da mancarra força o indígena das regiões fronteiriças a vendê-la para a colónia francesa que a paga bem melhor.
Dizem que a colheita deste ano chega às 30.000 toneladas, o que nos parece exagerado. Mas dando de barato que seja assim e deduzindo, por alto, umas 5000 toneladas que se escoam para terra francesa, restam 25.000 toneladas que, à cotação média de $40 dão 10.000 contos ao indígena. Ora, este tem que pagar uns 9000 contos de imposto. Restam-lhe 1000, o que não é nada para dar escoante às mercadorias em poder dos comerciantes, e que valem uns bons milhares de contos.

A Gouveia continua sem dinheiro e corre na praça que V. Exas. se negaram a dar dinheiro nas condições do ano anterior.
O gerente da Casa diz que não tem dinheiro e a alguns que lhe oferecem mancarra já diz que vão ao Banco oferecê-la em caução de empréstimos.
Não sabemos o que há, mas sabemos que a Gouveia tem batido a todas as portas que sabe terem dinheiro para o apanhar aqui, por transferências que faz. Assim, arranjou uns 500 contos nestas condições.
Enfim, faz tudo que pode para não nos pedir dinheiro, leva-nos o dinheiro que pode, dos depositantes e é natural que seja de lá que sai a atoarda de que não há dinheiro na praça, por culpa do Banco.
Ontem, tivemos uma informação de que pagava mancarra com francos do Senegal. Por todas estas razões, V. Ex.ª. verá a incerteza com que se está trabalhando, incerteza essa que nós estamos aproveitando ao máximo sempre que ficam absolutamente garantidos os interesses do Banco”.

Imagem retirada do livro “Uma Apoteose- duas visitas - uma despedida”, obra relacionada com a partida do governador Raimundo Serrão, 1953.

A 16 de março, nova correspondência para Lisboa, a Casa Gouveia continua na berlinda, o assunto é taxativo: “Transferências – António da Silva Gouveia, Ltdª.”, é este o teor da carta:
“Como V. Ex.ª., também pensámos que o assunto do formidável movimento de transferências que a Casa Gouveia faz, por vezes a taxas elevadíssimas, devia merecer a atenção muito e muito especial do Governo da Colónia, já porque é uma função ilegal e que faz da Casa Gouveia uma instituição bancária com uns lucros fabulosos, sem pagar as respectivas taxas ao Governo; já porque existe o Banco cujos interesses são prejudicados; já porque os comerciantes, sabendo de antemão que vão pagar taxas formidáveis à Gouveia, oneram os preços de venda de uma maneira tal que tornam a vida caríssima e insuportável a quem aqui vive.
E o Governo da Colónia sabe bem disto tudo mas não faz nada e, absorvendo para si no ano passado uns 40% das coberturas da colónia, contribui assim para avolumar o negócio das transferências ilícitas da Gouveia, que se aproveitou da situação para elevar taxas entre 10 e 12% que, com alcavalas de selos e outras, oneram bem os tomadores em 15% senão mais.
É o consumidor quem paga isto.
Assim, a Casa Gouveia fornece de dinheiro e ainda lhe pagam quantias fabulosas por isso. E, deste modo, também não pede crédito ao Banco nem lhe dá um real a ganhar e ainda por cima a gerência não perde a menor oportunidade de – embora grosseiramente – atacar o Banco e tudo que ao Banco esteja ligado.
Ainda no dia 11 do corrente o Sr. Governador recebeu a bordo do Guiné o gerente da Casa Gouveia para ouvir as suas costumadas e pouco inteligentes considerações sobre ‘O crime do Banco ter todas as culpas do que se está passando na Guiné, só por o Banco não querer dar dinheiro à Casa Gouveia’

Muito confidencialmente, constou-nos que o Sr. Governador falou em telegrafar a Sua Ex.ª. o Ministro, pedindo não sabemos que providências.
Em conversa com o Sr. Governador, fizemos-lhe perceber a sem razão da Casa Gouveia, fazendo-lhe compreender que o Banco não é uma casa de caridade para fornecer dinheiro de graça, de mais sabendo ele a guerra que Gouveia faz ao Banco. E qualquer intervenção junto do Sr. Ministro para se considerar o Banco criminoso por onerar as transferências da Gouveia, da Sede para aqui – como eles afirmam –, a intervenção de Sua Ex.ª. devia inclinar-se para o facto da Gouveia – ilegalmente – cobrar os tais 10 e 12% mas em dinheiro que lhe davam e em 90 dias, quando não em 30.
Sua Ex.ª. limitou-se a sorrir mas não telegrafou, ao que supomos.

A Casa Gouveia tem a Guiné por tabanca sua e tem razão para isso, porque ninguém – absolutamente ninguém – a impede de fazer o que quer, em matéria de transferências, que outra não nos interessa.
Dizem que não se pode provar que fazem transferências porque, nas respectivas cartas de ordem, dizem que se trata de ‘Valor de produtos coloniais comprados’. Mas numa averiguação era fácil ver-se e provar-se que a maior parte das pessoas não tinha géneros a vender. E pelo volume da exportação da Casa se chegaria à conclusão de que, afinal, não se sabia do destino de uma boa parte desses géneros.
Para nós, tudo o que se passa é apenas devido à cobardia moral que há em não se fazer respeitar a lei a quem anda fora dela.
Os rigores são todos para o Banco que não demarca as propriedades; que tem que fazer um muro onde gastará bons contos num terreno que não vale quase nada, etc., etc. O resto não tem importância!
Como V. Ex.ª. bem diz, o desrespeito pela lei não é admissível. Mas aqui é.”

Mulher Balanta, imagem constante do livro “No Governo da Guiné”, volume III, por Luís Carvalho Viegas, 1936.

Esta situação litigiosa irá prolongar-se, as queixas sobre a Casa Gouveia chegam de outras proveniências, caso da Sociedade Comercial Ultramarina, Bissau envia para Lisboa informações prestadas por um seu responsável, Monteiro Lopes, em 24 de março desse ano:
“Ignoramos quantas toneladas exportou a Casa Gouveia (Alfredo da Silva) em 1937, mas sabemos que uma parte muito apreciável não foi por ela directamente adquirida ao indígena, mas sim a casas concorrentes exportadoras, às quais, em 1937, conveio vender as suas mancarras à Casa Gouveia em vez de exportarem como nos anos anteriores. Isto não significa, porém, que as coisas venham a passar-se sempre assim de futuro, tanto que na campanha decorrente já a situação é diferente.
Diz-se que a Casa Gouveia se desinteressou a princípio do negócio. Diz-se mais que luta com falta de numerário, chegando a fazer ofertas para compra da mancarra com pagamento em Lisboa, no que não teria sido bem-sucedida. Equivale isto a dizer que a Gouveia faria assim transferências sob a Metrópole, em manifesta concorrência com o BNU, o que lhe é vedado.

O perigo das compras pelas casas francesas a ‘preços irrisórios’ não existe porque a mancarra, nesta altura, está virtualmente vendida a preços aliás bem superiores aos da paridade da Europa. Estes preços desconexos são devidos, ao que se diz também, à concorrência das casas francesas e da própria Gouveia.
Independentemente desta concorrência, que todos os anos existe, o Governo da Colónia é quem regula os preços da campanha, não consentindo que se paguem preços muito baixos.
Os intuitos da Gouveia ao apresentar a sua reclamação, devem, como de costume, ser inteiramente diferentes dos alegados, devendo figurar entre elas a sua velha ambição de ficar sozinha na colónia para, mais à vontade, desenvolver os seus planos que não podem deixar de envolver ataques aos interesses do BNU pelas transferências que obteria”.

É um interminável folhetim, a Casa Gouveia vai protestar junto do Ministro das Colónias, o gerente de Bissau está atento e contrapõe. Como iremos ver adiante.

(Continua)
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Notas do editor

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