quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Guiné 61/74 - P19007: Historiografia da presença portuguesa em África (130): Relatório do Comando Militar do Oio, nascia o ano de 1915 (2) (Mário Beja Santos)

Construção do Palácio do Governador, imagem inserida no livro “Guiné, Início de um Governo”, 1954, obra hagiográfica dedicada ao Governador Mello e Alvim


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Abril de 2018:

Queridos amigos,
Entrou-se numa fase de pacificação, o Governador Oliveira Duque expede uma circular determinando aos administradores de circunscrição e comandantes militares com um sem número de requisitos, pretende ir compondo um retrato das etnias, dos usos e costumes, das práticas religiosas, apurar os tipos de agricultura e se existem indústrias, como se pratica a justiça, qual a organização familiar, etc.
Se o fez é porque não existe uma caraterização, não se conhece os povos que se colonizam, daí a originalidade da iniciativa e o interesse em ver as informações dadas pelos respondentes. Dir-me-ão que é tudo matéria consabida, convido a marcar distâncias, as autoridades desconheciam inteiramente o mosaico étnico, a organização económica, era uma ocupação de fresca data, e dou comigo a pensar a injustiça que praticamos em desconhecer estas iniciativas e medir o alcance dos seus resultados nas governações que se seguiram.

Um abraço do
Mário


Relatório do Comando Militar do Oio, nascia o ano de 1915 (2)

Beja Santos

Foi de Mansabá que em 1 de janeiro de 1915 o Tenente José Ribeiro Barbosa, comandante militar do Oio, enviou o seu relatório para o Governador Oliveira Duque, está depositado nos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa.

Antes de darmos a palavra ao Comandante que em Mansabá do Oio enviou ao Governador o seu relatório, em 1 de janeiro de 1915, importa situar as expetativas postas pelo Governador Josué de Oliveira Duque na circular que enviou aos administradores das circunscrições e comandos militares e que constam do Boletim Oficial da Guiné nº 33, de 15 de agosto.

Vejamos o teor da circular, vale a pena a sua reprodução integral:
“É da mais reconhecida conveniência, para o desempenho de cargos administrativos, em qualquer colónia, o conhecimento perfeito, quanto possível, dos usos e costumes dos indígenas que constituem a sua população, usos e costumes que, em grande número de resoluções a tomar, devem ser respeitados.
Este princípio, existente em diversos diplomas, dimanados das estações superiores, acha-se especialmente consignado para os Administradores das Circunscrições Civis, que mais de perto lidam com esses indígenas, e a quem compete, em primeira instância, a resolução de pendências entre eles suscitadas, tendo igual aplicação aos comandantes militares, acidentalmente investidos de iguais atribuições.
É, portanto, conveniente, para difundir o mais possível o conhecimento desses usos e costumes, que diferem de região para região da Província, segundo as raças que as habitam ou nelas predominam, reuni-los em um só diploma, cuja publicidade habilite todas as autoridades a proceder de modo que as suas deliberações, sendo as mais convenientes para os interesses da Província, sejam ao mesmo tempo acatadas pelos indígenas como as mais justas.

Nesta ordem de ideias, determina Sua Ex.ª o Governador que os Administradores de Circunscrições Civis e Comandantes Militares procedam, no prazo máximo de 2 meses, e dentro das regiões em que exercem a sua autoridade, a uma conscienciosa investigação desses usos e costumes, de cujo resultado enviarão relatórios circunstanciados, tendo em vista os seguintes pontos concretos:

- Que raça ou raças habitam a área da sua jurisdição?

- Essas raças são aborígenes ou imigrantes? Se são imigrantes, donde, e em que época imigraram?

- Qual a sua organização social e política? Têm um ou mais chefes? Graus hierárquicos, e poderes inerentes a cada um?

- Se há chefes, como são nomeados? Por eleição, por herança?

- Têm respeito pelos velhos, e têm estes qualquer predomínio na administração indígena?

- Como procedem para com delinquentes? Têm tribunais especiais, como são constituídos, quem preside ao julgamento? Que penas especiais são aplicadas?

- Como procedem nos seus contratos, e como são punidas as faltas do cumprimento dos mesmos?

- Quais as relações desses povos com os vizinhos?

- São guerreiros ou pacíficos? Que armas usam? Adquirem-nas ou fabricam-nas?

- Como é constituída a família? Quem é, na família, o detentor de autoridade? Poderes do marido sobre a mulher, dos pais sobre os filhos … etc.?

- Que formalidades e festas precedem o nascimento? Que cuidados têm com as crianças?

- Praticam as cerimónias do fanado, em que consistem?

- Praticam iniciação no momento em que chegam à idade da puberdade? Em que consistem as festas feitas então?

- Como é considerada a mulher em geral? Têm especiais cuidados com a mulher grávida? Há cerimónias especiais durante o período da gravidez, e antes ou depois do parto?

- Quais as formalidades que precedem o casamento? Quais as cerimónias e festas que acompanham este acto? Existe a mancebia?

- Dá-se com frequência o adultério? Como é punido?

- Quais as cerimónias que têm com os mortos? Onde os enterram? Há ainda cerimónias depois de enterrados? Usam o luto, em que consiste?

- Quem administra a propriedade na família? Como se transmite?

- Têm indivíduos especiais que os tratem nas suas doenças?

- Professam alguma religião, e qual? Que práticas religiosas têm? Têm entidades especialmente encarregadas dessas práticas? Têm locais adequados a elas?

- Que vestuários usam as mulheres, os homens e as crianças? Usam adornos especiais, e quais? Empregam a tatuagem?

- Há alguma indústria indígena? Quais os principais artefactos? Podem constituir, pela sua aplicação e abundância, artigos de comércio? Como são constituídas as suas povoações, e construídas as casas de habitação? 

- Dedicam-se a qualquer género de desporto? Equitação, jogos atléticos ou quaisquer outros?

- Cultivam a dança, o canto, a música? Têm alguma dança, canto ou instrumento musical caraterísticos?

- Procuram instruir as crianças? Como procedem a essa instrução? Têm escolas, ou instituições equivalentes?

- Qual a sua alimentação? Empregam nela carne, vegetais, frutos e quais?

- Entregam-se ao uso de bebidas? Quais preferem? Fabricam ou adquirem essas bebidas?

- Dedicam-se à agricultura? Quais os produtos que agricultam?

- São esses produtos destinados à sua alimentação exclusivamente ou a negócio?

- Como é feita a permuta desses produtos?

- Há outros géneros coloniais, como borracha, café, copra, marfim…etc.? Como procedem à cultura e extração destes produtos?

- Quem se dedica especialmente à agricultura? Os homens ou as mulheres?

- Que ferramentas e utensílios empregam na agricultura? Fabricam ou adquirem esses artigos?

- Quais as épocas das diferentes fases das culturas?

- Quais os principais utensílios de uso doméstico? Fabricam ou adquirem esses produtos?

- Quais as matérias empregadas, e como são fabricadas? Têm artífices especiais para os diferentes ofícios?

- Há abundância de caça? Quais as principais espécies e as mais abundantes? Dedicam-se a algum género de caça com fins comerciais?

- Há abundância de peixe? Quais as principais e mais abundantes espécies?

- Há abundância de gado? Qual o que predomina? Há alguma espécie que especialmente convenha conservar e aperfeiçoar?

- Há abundância de água potável? Qual a sua origem?

- Há algumas plantas especiais, tais como a que chamam forro, e de que fabricam cordas? Ou outras quaisquer, com aplicações mais ou menos úteis, que convenha tornar conhecidas?

Além destes quesitos, deverá cada um, segundo o seu bom critério, ocupar-se de quaisquer outros não mencionados, que julguem dignos de menção especial, tendo em vista que nenhum, por insignificante que pareça, pode considerar-se sem valor para o fim que tem em vista: o conhecimento mais completo possível da vida, dos costumes, enfim, do modo de ser especial dos indígenas da Província.
É conveniente também que as citadas autoridades procurem obter exemplares autênticos de todos os artigos, armas, utensílios, instrumentos diversos, vestimentas e outros quaisquer fabricados pelos indígenas da região, bem como amostras dos diferentes produtos da mesma região, a fim de, em Bolama, poder organizar um mostruário, ou museu provincial, que muito pode contribuir para difundir entre todos o conhecimento das aptidões especiais dos mesmos indígenas".

Máscara KONI, inserida no livro “Esculturas e Objetos Decorados da Guiné Portuguesa”, por Fernando Galhano, Junta de Investigações do Ultramar, 1971.

O comandante militar do Oio, como vimos no texto anterior, atirou-se afanosamente ao trabalho, foi respondendo a tudo o que o Sr. Governador Oliveira Duque lhe pedira, suspendemos as suas respostas até aos mortos, a cerimónia, o enterro e o luto. Diz ele que os Sonincas, logo após a morte de alguma pessoa sua, disparam vários tiros como sinal e abrem a cova debaixo de um coberto grande que em geral têm ao centro de cada morança. Se a família possui vacas, matam uma ou mais, de acordo com as suas posses. Fazem grande número de tiros para dentro da cova e enterram o cadáver. Só a mulher usa o luto quando o homem morre. Consiste em despir todos os enfeites, desmanchar o cabelo e usar um pano branco na cabeça. O luto dura três meses nos muçulmanos e um ano nos Sonincas e Fulas.

Falando da administração da propriedade, o oficial responde que o administrador é sempre o homem. Este passa-a, por herança, para os filhos, nos Mouros e Fulas. Nos Sonincas, os herdeiros são os sobrinhos. Acerca do tratamento das doenças, informa-se que os curandeiros confecionam remédios com folhas, cascas, raízes, tubérculos, etc. E diz o relator que consta haver peritos na cura da lepra que o indígena conhece como uma das piores doenças.

Na abordagem ao tema da religião, responde-se que uma parte dos Sonincas professa a religião maometana, praticam orações cinco vezes ao dia, têm um encarregado especial, “mouro grande”, que faz teorias às segundas e sextas-feiras, dias feriados para eles.

No que respeita ao vestuário e adornos, diz sem hesitar que os habitantes do Oio já não são gentios de tanga. A mulher usa panos a servirem de saia, blusa de manga curta e lenço apertado na cabeça. O homem usa o tradicional vestuário Mandinga, que inclui calça, usa um barrete de variadas formas, predominando o tipo turco, mais ou menos modificado. As mulheres, como adorno, usam braceletes, pulseiras, anéis, argolas nas orelhas, contas no cabelo e pescoço, etc. As mulheres Fulas costumam adornar o cabelo com pequenas moedas de prata e usam um toucado artificial em forma de barrete frígio. Não usam propriamente a tatuagem e apenas as mulheres fazem sobre o estômago e parte do ventre, com um ferro especial em forma de unha, uma série de pequenos golpes que depois de cicatrizados são considerados enfeite. Algumas mulheres pintam os lábios de preto.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE SETEMBRO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18986: Historiografia da presença portuguesa em África (128): Relatório do Comando Militar do Oio, nascia o ano de 1915 (1) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Antº Rosinha disse...

Responder a um questinário de 40 perguntas, que era preciso traduzir para português do fula, do balanta, papel, manjaco e mandinga...etc e bijagó, não deve ter sido fácil, principalmente sem gravadores e quase sempre com má vontade e desconfiança em responder coisas da tribo a desconhecidos, e interpretes duvidosos.

Quem não se preocupou com questionários destes, nem pela cabeça lhe passava tal ideia, foram os "amigos" dos guineenses, (e de outros africanos)tais como cubanos, suecos e meia europa "democrática" e civilizada russia e américa.

Quem é mais pragmático são os chineses, vão para África para trabalhar de mangas arregaçadas, sem se meterem na vida intima das pessoas, da política ou da religião de ninguém.

Não distinguém raças nem países nem fronteiras, trabalham para quem lhes pague, nem precisam dinheiro, só precisam produtos da terra.

Os europeus é que andam ainda hoje a meterem-se na vida daquela gente, ainda hoje um grupinho europeu e uma portuguesa, vinha no jornal, partiu para a Guiné a informarem-se se se continua a praticar a circuncisão feminina.

Cherno Balde disse...

Caro amigo Rosinha,

Os ocidentais continuam com aquela de ser " dono de tudo isto" e com as manias da civilizacao, mas ao mesmo tempo continuam a fomentar guerras sangrentas e de exterminio em todas as regioes do mundo.

A China sera, a longo prazo e com muita paciencia, a potencia maior do mundo e, sem que seja necessario o uso da forca e da violencia.

Um abraco,

Cherno AB

Valdemar Silva disse...

O extraordinário de todo este questionário foi ter acontecido no ano de 1915...ideias Republicanas.
Nem o Adriano Moreira se lembrou 'disto' no seu Estatuto de Indígena.
Ab.
Valdemar Queiroz