quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Guiné 61/74 - P18986: Historiografia da presença portuguesa em África (129): Relatório do Comando Militar do Oio, nascia o ano de 1915 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Abril de 2018:

Queridos amigos,
Ainda não consegui apurar até que ponto estes relatórios elaborados por administradores e militares em resposta a um longo questionário formulado pelo Governador Oliveira Duque tiveram utilização posterior, no campo da investigação ou mesmo no corpo dos relatórios dos governadores da Guiné para os respetivos ministros. Mas não deixa de ser uma grata surpresa ver o cuidado do governador em juntar as peças do puzzle e a resposta que foi dada pelos seus colaboradores.
Dirão que há poucos dados novos, que o que aqui se reporta é matéria mais do que consabida. Atenda-se que o Tenente Ribeiro enviou este seu manuscrito, em fina caligrafia, no dia 1 de janeiro de 1915, a chamada pacificação dá os seus primeiros balbucios, o comandante em Mansabá teve escassos meses para recolher este acervo informativo. É um militar que sonha com a liberdade da mulher, acredita que a sua libertação recomporá as relações de modo a que o homem passe a trabalhar e ela deixe de ser escrava. Sente-se no documento que ali chegou a I República.

Um abraço do
Mário


Relatório do Comando Militar do Oio, nascia o ano de 1915 (1)

Beja Santos

Através de uma circular publicada no Boletim Oficial da Guiné Portuguesa, em 1914, o Governador Oliveira Duque determinava a todos os responsáveis da administração civil e dos comandos militares que elaborassem um detalhado relatório contemplando um número apreciável de itens tais como: raças que habitam a região; organização social e política dos povos aí instalados; respeito para com os velhos; tribunais e julgamentos; contratos e seu cumprimento; relações com os povos vizinhos; qualidades guerreiras e armas usadas; constituição da família; formalidades que precedem o nascimento; fanado e sua cerimónia; consideração com a mulher; formalidades e cerimónias do casamento; adultério e sua punição; mortes, cerimónias, enterro e luto; administração da propriedade, sua transmissão; tratamento das doenças; práticas religiosas; vestuário e adornos; indústrias indígenas; formas de povoamento, casas e sua constituição; desporto; instrução; alimentação e bebidas; agricultura e seus produtos e que indivíduos estão ligados à agricultura; ferramentas e utensílios; épocas das diferentes formas de cultura; utensílios de uso doméstico; caça, gado, água potável; plantas especiais de aplicações úteis, e algo mais.

Desconhecia a circular, e mais adiante só vejo utilidade em a referir, há ainda instalado o preconceito da inexistência de inventários ou pouco cuidado dos governantes em identificarem as grandes questões da colónia, como se vê não foi necessário chegar ao importantíssimo mandado de Sarmento Rodrigues para tentar obter o perfil identitário da Guiné.

Quem vai responder a partir de Mansabá é o Tenente Barbosa, com uma caligrafia mais do que harmoniosa. O documento foi cedido à Sociedade de Geografia de Lisboa pelo Capitão Carlos Alberto Soares que serviu longos anos na Guiné, e está na secção dos reservados.

O nosso relator aborda em primeiro lugar as raças, fala nos Soninqués e Fulas. Os Soninqués são designados por “mouros” quando são convertidos à religião maumetana ou por Sonincas, os não convertidos. Sempre desfiando o que vai na caligrafia do Tenente Barbosa, ele avança que os Soninquenses são de origem Mandinga, cuja língua falam, foram os primeiros a estabelecerem-se na região, os Fulas terão vindo da atual circunscrição de Geba, estavam estabelecidos no Oio há cerca de um século, com consentimento dos Soninquenses, pagavam-lhes tributo.

Quanto à organização, Soninquenses e Fulas viviam em grupos de famílias sempre em tabancas. O chefe da morança é o seu fundador e proprietário. Cozinham por famílias, mas juntam os cabaços de comida e comem em três grupos distintos: homens, rapazes e mulheres e raparigas.

É grande o respeito para com os velhos, é um atentado desconsiderar um velho, a sua experiência é sempre tida em conta pelos mais novos. Os homens, logo que começam a aparecer os cabelos brancos, são considerados grandes e conhecerão uma redução no trabalho.

Não tinham tribunais. Os chefes não fazem justiça alguma por sua conta, com receio do que possa vir a suceder-lhes. Antes da ocupação, porém, quando algum indivíduo cometia um delito era capturado e levado para casa do régulo, onde continuava preso para responder pelo crime de que era acusado. O régulo consultava a sós dois grandes íntimos, seguia-se pois uma reunião dos grandes da Tabanca, havia exposição dos factos, decretava-se a sentença, quase sempre o pagamento de um certo número de vacas ao régulo.

Segundo o nosso Tenente, todos procuravam o cumprimento dos contratos, excecionavam-se os contratos de casamento e um ou outro sobre compra de gado, todos os contratos ficavam, em geral, logo liquidados.

Registava-se uma nova atitude de relações com os povos vizinhos. Ao tempo, os Soninqués do Oio não mantinham boas relações com os povos de Geba e Mansoa, mas mantinham boas relações com Farim e os Balantas de Bissorã, sendo estes últimos quem os auxiliava nas guerras. Mas depois da ocupação houvera uma melhoria de relacionamento com todos os povos vizinhos, daí estas etnias se conservarem pacíficas, sem demonstrações de guerra entre elas. Os Oincas eram guerreiros de nomeada, tendo rechaçado várias colunas que tentaram submete-los. Somente uma coluna de irregulares, com um pequeno núcleo de tropa, sob o comando do Exmº. Chefe do Estado Maior, Capitão Teixeira Pinto, conseguiu reduzi-los à submissão completa. Antigamente usavam espingardas de pedreneira e de espoleta e espada mandinga. Agora não lhes é permitido o uso de qualquer arma, com exceção para a defesa de gado contra os animais ferozes.

O relatório fala agora da família, é geral um homem ter várias mulheres. Quando morre um homem casado as mulheres são divididas pelos irmãos, principiando a divisão pelos mais velhos. A mulher, para o homem, vale tanto mais quanto mais filhos tiver, é na quantidade de filhos que é verdadeiramente lucrativa. As mulheres são escravizadas pelo trabalho. A mulher levanta-se, em média, das 3 para as 4 horas da manhã, para pilar o milho ou o arroz e preparar a primeira refeição; depois de comer, vai para as lavras de arroz, auxiliando ainda noutras lavras. É sobre ela que recaem todos os trabalhos pesados. Daí o comentário do Tenente Barbosa: “Chega a ser um crime o excesso de serviço das mulheres, comparado com a ociosidade dos homens”. Sente-se que os ideais republicanos devem atravessar a mentalidade do Tenente José Ribeiro Barbosa que conjetura tempos melhores para a vida das mulheres: “Uma vez abolido o pagamento da mulher e dada a esta a livre escolha do homem, este dedicar-se-ia necessariamente ao trabalho, desaparecendo a ociosidade e a origem das mais importantes questões”.

Na sequência, o relator aborda as formalidades que precedem e se seguem ao nascimento. Oito dias após o nascimento, corta-se o cabelo ao nascituro e dá-se-lhe nome. Quanto ao fanado, todos os Oincas o praticam, no homem e na mulher.

Quanto à consideração para com a mulher, a atenção que o homem lhe dispensa é só pela falta que ela lhe faz para o trabalho. Nenhuns cuidados especiais têm com as mulheres grávidas, estas trabalham até à ocasião do parto.

Neste quadro de desapego, abunda o adultério, devido à educação e meio em que são criadas às mulheres e principalmente à obrigação de viverem com um homem de quem às vezes não gostam.

(Continua)


Nos arquivos do BNU encontrei estes dois curiosos documentos de 1923 e 1925, é Governador da Guiné, Jorge Frederico Velez Caroço, que vive em permanente estrangulamento financeiro e com os comerciantes também em permanente protesto, tudo por causa dos impostos e dos cambiais. Em 23/7/1923, o Governador solicita ao Ministro das Colónias um empréstimo que seria canalizado através do BNU em Bolama; em 1925, estando trabalhos em curso, volta a pedir ao governo um contrato com o BNU, um empréstimo gratuito.

Litografia de Abel Bravo da Mata para o novo edifício do BNU (hoje Caixa Geral de Depósitos), situado entre Avenida 5 de Outubro e a Rua Laura Alves, projeto do arquiteto Tomás Taveira.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE AGOSTO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18946: Historiografia da presença portuguesa em África (127): Duas publicações sobre a Guiné na Fundação Mário Soares (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Antº Rosinha disse...

O relatório de 1915 deste tenente Ribeiro que Beja Santos nos traz aqui, se tem sido dado a ler aos alferes e tenentes, que passados 50 anos embarcavam no Uige e Quanza e Vera Cruz em Lisboa para o Ultramar, acreditariam estes que os usos e costumes tribais dos africanos continuavam na mesma nos anos 60?

Acreditariam os alferes e tenentes que hoje (2018)voam pela ONU para a República Centro Africana, que tribalmente continua tudo muito semelhante em África 100 anos após o tenente Ribeiro.

E continuam os europeus e ONU ainda sem conseguirem entender os africanos e obrigando-os a (e)integrarem-se.

Beja Santos é incansável com estas descobertas.

A propósito de integração, ainda hoje no jornal Público vem que os ciganos convenceram uma juíza do Porto, que uma rapariga de 15 anos andar na escola vai contra os seus princípios.

Ninguem devia mandar em ninguém, digo eu, tribalizemo-nos.

Viva o BS que me inspira.

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Os portugueses descobriram o Brasil,
Os portugueses importaram os escravos africanos,
Os portugueses exploraram todo o ouro do Brasil,
Os portugueses repeliram os holandeses,
Os portugueses repeliram os franceses,
Os portugueses inventaram a mulata,
Os portugueses liquidaram os índios,
Os portugueses enforcaram o tiradentes,
Os portugueses são corruptos,
Os portugueses deram o Grito do Ipiranga (Pedro)

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Os brasileiros não deram nem uma mãozinha pelo Brasil?

Valdemar Silva disse...

Rosinha
O caso da rapariga cigana de 15 anos passou-se em Avis , no Alentejo. A juíza que deu um despacho esquisito e não sei se daria o mesmo a outra rapariga de 15 anos que não fosse cigana. A Stora diz mais ou menos que o que a rapariga vai fazer de futuro não precisa de frequentar a Escola até aos 18 anos, como a Lei consagra. A
Stora já está, à partida, a violar a Lei e a arranjar maneira das raparigas ciganas
não poderem fazer outra coisa senão ter filhos e vender umas tixartes.

Quanto ao resto, mais um excelente relato apresentado por Beja Santos

Ab.
Valdemar Queiroz