segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19234: Notas de leitura (1124): “Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest; Ohio University Press, 2003 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2016:

Queridos amigos,
A investigação de Joshua Forrest é tão refrescante nas suas premissas que é indeclinável abrir-se à controvérsia. Para entender o que falhou na grande consigna que precedeu a luta vitorioso liderada por Amílcar Cabral, intitulada Unidade e Luta, é preciso ir muito atrás, à inexistência de Estado nos períodos pré-colonial e colonial, e ao facto de que tal ausência, bem como a ausência da própria nação eram superadas por identidade étnica e um maleável sistema de alianças que permitiu às sociedades rurais serem as portadores do património histórico, económico, social e cultural da Guiné. A unidade preconizada por Cabral, demonstrou-se, não sensibilizou as comunidades rurais a passar de nação a Estado dirigido por um partido-Estado. E o autor exemplifica com inúmeras formas de alianças, como se pode avaliar no período em análise, entre 1890 e 1909. Seguir-se-á um período de grande acalmia após a pacificação de Teixeira Pinto. Inevitavelmente, a potência colonial não se apercebeu a tempo e horas que era impossível manter submissa aquelas comunidades rurais que tinham repelido o ocupante português.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau: O Estado é frágil, as sociedades rurais são a alma da nação (3) 

Beja Santos 

“Lineages of State Fragility, Rural Civil Society in Guinea-Bissau”, por Joshua B. Forrest, Ohio University Press, 2003, é uma das investigações mais argutas e audaciosas que se publicaram no novo século sobre a Guiné pré-colonial, colonial e pós-colonial. Como se referiu em textos anteriores, o ponto de partida do investigador norte-americano é de que a fragilidade do Estado é um dado permanente daquele território, foram e são as sociedades rurais o esteio económico, social e cultural, sociedades com uma enorme capacidade volitiva para estabelecer acordos de interesse, por motivos de segurança ou de resistência, a despeito da sua autonomia, conseguindo preservar identidade no colonialismo e já na Guiné independente.

Estamos agora na segunda parte do ensaio, no auge da ocupação, um período que se situa entre 1890 e 1909, ou seja o degrau anterior às campanhas do Capitão Teixeira Pinto. Forrest recorda o envolvimento da administração nos problemas de Fuladu, a região do Gabu, onde vão estabelecer alianças com os Fulas, pondo e depondo chefes. Encetam campanhas militares para dominar povos de etnia Balanta, Papel, Manjaca e Oinca (o povo que habita a região do Oio) e os animistas Beafadas. A resistência será enorme: em Farim, Geba, Ziguinchor e Cacheu, até mesmo às portas de Bissau. Isto só foi possível graças a um sistema de alianças entre etnias. A potência colonial procede a um tipo de “africanização da guerra”, recorre aos Fulas como auxiliares e na casa dos milhares. Essa africanização estender-se-á a Mandingas e Beafadas, bem como a grumetes.

Ocupar e pacificar é praticamente uma causa perdida, não há meios. Para pagar aos auxiliares, a administração autoriza que estes saqueiem e pilhem as povoações onde entram. Neste período, pasme-se, ainda existe um relativo equilíbrio quanto a armamento, falamos de rifles e munições, adquiridas no comércio informal. Para o autor, o momento de viragem ocorrerá nos anos 1907-1908, há manifesta intenção política de que se ocupe o interior da Guiné. É Governador Oliveira Muzanty, viverá o grande cerco de Bissau e será o vencedor da campanha do Geba, contra Infali Soncó. Forrest refere a identidade Oinca, ela é um bom exemplo da mistura étnica numa região em que recentemente tinham chegado os Balantas, os Mandingas islamizados, os Mandingas Soninké (animistas), vindos do Forreá e Gabu fugidos às guerras entre os Fulas e Beafadas. É um caso de relações interétnicas pacíficas e juntar-se-á a esta complexidade os Balantas-Banaga.

A administração portuguesa não sabia compreender a noção de cooperação entre as etnias, entendeu-se que o melhor era aproveitar a proposta de um acordo de paz e deixar o Oio por conta própria. Porque o historial da tentativa de ocupação era penoso para Portugal. Em 1897, o Tenente Graça Falcão comandou uma coluna militar contra os Mandingas Soninké, perante um assalto verdadeira devastador, os auxiliares Mandingas viraram-se contra Graça Falcão e foguearam-nos, Falcão retirou para Farim. Subsequentemente, Falcão recrutou mais auxiliares e soldados, pretendia combater os régulos Mamadu Paté Coiada e o Beafada Infali Soncó (este tinha sido reconhecido pelos portugueses em 1895 como chefe). Vive-se então um grande período de turbulência e o resultado foi um impasse. Breve, a presença portuguesa na região centro-norte da Guiné encontra-se comprometida. Em 1902, durante o governo de Júdice Biker ocorre o já referido acordo de paz com os Oincas, a parte portuguesa não ficou bem no retrato, os Oincas prometeram pagar tributação, nunca cumpriram.

É então que tudo muda em 1907, com a revolta de Infali Soncó, impedindo a navegação do Geba, estabelecendo uma aliança com um número apreciável de régulos. Infali ofende um oficial da armada, José Proença Fortes, Muzanty vem a Lisboa pedir meios, perder o Geba e o acesso ao Gabu era regressar à estaca zero. Vai então ocorrer uma expedição envolvendo canhoneiras munidas de metralhadoras, virão tropas de metrópole e de Moçambique. Em 1908, Infali será derrotado e foge os outros régulos propõem acordos de paz. No Norte da província, a situação não é muito feliz, os Djolas infligem pesadas baixas aos portugueses, foi necessário partir de Lisboa uma coluna militar, com artilharia e até médico. Forrest observa que estas vitórias coloniais eram todas elas efémeras, mal partir o efetivo militar iniciava-se a contestação.

O grande cerco de Bissau foi uma rebelião séria, havia antecedentes, de tal modo que os portugueses se viram na contingência de trazer para Bissau auxiliares Beafadas e Fulas e tropas de Cabo Verde e Angola. À volta de Bissau, os régulos de Antula, Bandim e Intim, de Safim e Nhacra, tinham efito uma aliança para contrariar a presença portuguesa. Em Maio de 1894, o Governador Sousa Lage atacou Bandim e Intim, a cerca de dois quilómetros de Bissau. Em Julho desse ano, foi a vez dos Papéis de Biombo, com apoio dos Balanta, atacarem Bissau, afundando três barcos. Garantir a segurança dos europeus dentro da fortaleza de Bissau era pouco crível. O dado curioso é que enquanto Oliveira Muzanty prepara uma severa reação no Geba, Bissau está em estado de sítio, as comunicações com Conacri tinham cessado. Os comerciantes estrangeiros, crucialmente interessados num estado de paz, estabeleceram conversações com os régulos, incitando-os a pagar multas pela rebelião, os Papéis recusaram. A reação portuguesa foi um bombardeamento das povoações Papéis à volta de Bissau. Forrest descreve com todo o detalhe estas danças e contradanças, pode avaliar-se como todo o governo de Oliveira Muzanty foi passado a combater e a resistir. Regressará a Portugal em Janeiro de 1909 deixando a Guiné em pura rebelião.

Joshua Forrest avalia a situação do seguinte modo. Trata-se de um período (1890 a 1909) de permanente contestação da autoridade colonial. Esta conta com a fidelidade dos Fulas e Beafadas. O Oio, com as suas enormes florestas, é uma região que vive uma quase independência. Só se pode entender o vigor desta resistência pelos acordos entre as diferentes etnias. Tudo se vai alterar com a chegada do Capitão Teixeira Pinto, para o autor vamos entrar num período de terror e de pilhagem dos mercenários, com Abdul Indjai à frente.

(Continua)
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Notas do editor

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Último poste da série de 23 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19225: Notas de leitura (1123): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (61) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Foi muito dificil a "pacificação" na Guiné, mas pior que na Guiné foi em Angola e Moçambique, que houve ainda, alem da "pacificação" a luta contra os alemães na I Grande Guerra, em que estes armaram indígenas e viraram-nos contra os portugueses, com um procedimento semelhante aos russos e cubanos na Guerra do Ultramar.

Podemos dizer que produzimos uns países contra tudo e contra todos, serão países contra-natura? tal como o Brasil, umas fronteiras inimagináveis?

Ou serão "países tropicais, abençoados por Deus"? como diz o Jorge Ben?

Sei não!