sábado, 1 de dezembro de 2018

Guiné 61/74 - P19249: Fauna & flora (16): as aves e as superstições dos guineenses: ainda é frequente o fenómeno de ataques e de mortes por feitiçaria nas comunidades étnicas das zonas rurais (, aconteceu em Biombo no mês passado) (Cherno Baldé, Bissau)

1. Comentário de Cherno Baldé, nosso colaborador permanente, que vive em Bissau, ao poste P19242 (*):


Caro amigo Mario Beja Santos,

Este trabalho de Antonio de Almeida, publicado na década de 40 do século passado e que foi baseado numa pesquisa feita junto da população indígena da Guiné,  conseguiu, de facto, captar a parte narrativa e comportamental da cultura indígena dos povos da Guiné (dita Portuguesa), da sua relação com o meio envolvente e das crenças e superstições que resultavam dessa interação e, no caso, relativamente as aves no imaginário colectivo, estando bem ancoradas nas suas diversas tradições e culturas que ainda, em grande medida, subsistem. 

Essas manifestações sócio-culturais fazem do homem africano em geral e guineense em particular, na sua essência e sobretudo um homem supersticioso. A superstição engendra o medo do desconhecido e tudo que seja esquisito aos seus olhos o que, finalmente, leva o africano tradicional a ter um respeito profundo e quase sagrado do meio natural onde ele convive com a parte do mundo invisível e que alimenta e povoa o seu espírito ainda “primitivo”.

Todavia, não me parece que tenham conseguido tocar o fundo da questão que seria de procurar as respostas sobre os porquês.

A titulo de exemplo:

(i) porque é que, nas sociedades islâmicas e não só, à mulher não é permitida proceder ao sacrifício dos animais ou matar e repartir uma galinha ?

(ii) porque é que o indigena que vai para uma viagem não deve cruzar-se, no seu caminho, com uma cegonha gigante das savanas de cor preta ? 

(iii) porque é que determinadas linhagens das famílias tradicionais têm como parente totémico a galinha de (mato) angola ou a perdiz ? 

(iv) qual a origem da superstição sobre a feitiçaria que empresta aos homens e mulheres (sobretudo os velhos /as da aldeia, eternos culpados) a extraordinária capacidade de metamorfosear-se em aves nocturnas (moços e corujas) a fim de se apoderar das almas e corpos das vitimas ? Porquê ... ?

Mas, a dinámica social,  não sendo estanque, certamente, mesmo se o fundo desses fenómenos sociais ainda se mantêm quase intacto nas comunidades tradicionais do meio rural, as suas formas sofreram evoluções ou deixaram de ser sentidas e manifestadas da mesma forma que antigamente em função das mudanças sociais e culturais que, entretanto, vão aparecendo com o fenómeno da urbanização e a vida nas cidades, cosmopolitas e multiculturais, assim como a democratização do ensino oficial e a contribuição das influências externas derivadas da mundialização e da penetração/expansão das diferentes religiões dentro das comunidades «gentílicas ». 

Na Guiné-Bissau, ainda é frequente o fenómeno de ataques e de mortes por feitiçaria nas comunidades étnicas das zonas rurais (aconteceu em Biombo no mês passado) e, não raras vezes, ouvem-se tiros, durante a noite, para expulsar uma coruja mais atrevida que ousase importunar, com os seus agourentos gritos, nos Bairros de Bissau. 

Enfim, ainda tudo se mantem quase intacto, mas nada é como no antigamente.
Com um abraço amigo,
Cherno Baldé
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9 comentários:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Como europeu não entendo bem estas práticas que são "de sempre".
Como já se sabe a "acção civilizadora" dos portugueses nunca consegui anular os hábitos dos guineenses e, muito menos fazê-los aceitar os deles. Terá sido esta uma maneira de resistir, a par da recusa, quase geral, da aprendizagem e da língua portuguesa (o português já é hoje a 3.ª língua falada na Guiné) e não conversão massiva ao catolicismo.
Quer se queira quer não estas práticas indiciam uma maneira primitiva de encarar a vida que era bom que as pessoas já tivessem abandonado. Mas continuam a aceitá-las e a praticá-las, mesmo sem saber porquê.
Mas isto não são contas do meu rosário...

Um Ab.
António J. P. Costa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

To ç Zé, vê o sucesso relativo que têm m entre nós os professores Karamba & Cia...

Alberto Branquinho disse...

Em tempo...

É coisa menor, mas não esquecer que, entre nós e nas terras do interior norte, o piar da coruja durante a noite é, no mínimo, sinal de "mau agoiro" ou, no máximo, anúncio de morte próxima de morador da casa vizinha ou onde ela poise.

Alberto Branquinho

Cherno AB disse...

Caro Alberto Branquinho,

Em 1933, no lugar de Oliveira, freguesia de Soalhães, Marco de Canavezes, aconteceu uma coisa terrivel trazida ao publico com o nome de crime de Soalhães, em que uma mulher foi queimada viva por suspeitas de bruxaria.

Portanto, o fenomeno das superstições é global e tende a diminuir a medida que os governos apostam na formação para a erradicação do obscurantismo.

No continente africano o fenomeno persiste porque a par do obscurantismo secular, também não existe autoridade de estado em muitas regiões mais remotas.

Não tenho estudos sobre o assunto, mas parece que durante a época colonial as autoridades tinham conseguido estancar as suas manifestações mais nefastas como agressões fisicas ou mortes por feitiçaria, fenomenos que ressurgiram com força após a independencia e sobretudo no periodo a seguir ao 14 de Novembro de 1980.

Com um abraço amigo,

Cherno AB

José Botelho Colaço disse...

Para certas elites manter o obscurantismo de um povo, é o modo simples de eles se perpetuarem no poder. Um abraço.

Valdemar Silva disse...

Será que, no limite, todas as crenças religiosas, nas mais variadas formas de culto mundialmente praticadas, podem ser consideradas como fenómenos obscurantistas?

Valdemar Queiroz

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

O sucesso relativo que têm entre nós os professores Karamba & Cia não têm que ver com a
questão que o Cherno levanta.
O obscurantismo é daqui, dali e de sempre, mas a crendice é algo que se combate com a cultura e com o pensamento lógico.
A crendice na Guiné atingia valores elevados. E hoje parece ter-se expandido. Estou a lembrar-me dos irans que nem os crentes sabiam bem o que dizer deles.
A falta de estrutura e coerência das religiões erm patológicas. Os professores Karambas, Bambos & Ciª (curiosamente guineenses na sua maior parte) estão aí para lavar e durar, mas não creio que a crendice e a superstição dos portugueses seja agravante ou atenuante para o que se passa na Guiné.

Um Ab.
António J. P. Costa

Alberto Branquinho disse...

Pereira da Costa

Escrevo porque fazes uma referência aos "irans", que era assunto que na Guiné também me confundia, principalmente quando alguém da população (principalmente balanta), explicando, p.ex., certo comportamento que parecia anómalo, me dizia: - Tem iran. A afirmação de que os "irans" ("espíritos" dos antepassados) habitam os grandes poilões junto às aldeias, é perfeitamente compreensível que creiam nisso.
O entendimento a que cheguei sobre o culto/crença/respeito pelos "irans" (entre balantas e outros animistas - NUNCA os islamizados) foi que é um misto de culto da natureza/respeito pelos antepassados/crença na re-incarnação em qualquer outro ser vivo (não só nos humanos). Será assim como um panteísmo + crença na re-incarnação.
De uma coisa tenho a certeza: os "irans" não estão relacionados com um teísmo, seja ele respeitante a uma ou mais divindades.

Espero ter-me feito entender.
Abraço
Pereira da Costa

António J. P. Costa disse...

Olá Camarada

Claro que entendi.
Continuo a pensar que as religiões animistas da Guiné não têm nem sequer uma base filsófica coerente, como sucede com as tantas religiões difundidas por esse mundo fora. São uma forma paupérrima de crendice, quase ao nível do neolítica, mas também eu ajuramentei testemunhas animistas (nos autos da tropa) dizendo: "jurou pelos irans [...] e aos costumes disse nada".
Ou seja, respeitei a opção religiosa, mesmo sabendo que ela não tinha qualquer sentido e era insustentável por qualquer espírito minimamente evoluído.

Um Ab.
António J. P. Costa