quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19242: Fauna & flora (15): As aves em algumas superstições indígenas da Guiné - “Portugal em África, Revista de Cultura Missionária” (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Maio de 2018:

Queridos amigos,

Quando confrades guineenses, como o nosso avisado Cherno Baldé, lerem este trabalhinho de alguém que foi professor da Escola Superior Colonial, é capaz de contestar os elementos apresentados como curiosos aspetos folclóricos ou casos etnológicos ultrapassados. Aqui se fala de superstições com galinhas, os íbis sagrados, a galinha-do-mato, o grã-duque cinzento, os jagudis, aves de mau presságio ou perniciosas, inevitavelmente há referências aos jagudis e, segundo o autor, os Beafadas consideram-nas almas dos seus antepassados. Mas será que ainda assim é, ou já deixou de ser?

A palavra é dada à confraria guineense.

Um abraço do
Mário


As aves em algumas superstições indígenas da Guiné

Beja Santos

“Portugal em África, Revista de Cultura Missionária”, que teve duas séries, a segunda percorreu um período da década de 1940, revela-se uma publicação de consulta obrigatória para quem pretenda estudar sobre os mais diversos ângulos a História da Colónia. Veja-se, a título de curiosidade, o trabalho publicado por António de Almeida, professor da Escola Superior Colonial e bolseiro do Instituto para a Alta Cultura, intitulado "As aves em algumas superstições indígenas da Guiné e de Cabo Verde", para se avaliar a importância de muita pesquisa que urge fazer e publicitar.

Convém não perder de vista que estes trabalhos datam de há cerca de 75 anos, muita água correu debaixo das pontes, muitos comportamentos se alteraram, pois claro.

Começando por nos descrever a importância do culto de animais nas primícias da civilização, logo vai centrar a sua análise na Guiné e Cabo Verde dizendo que a criação das aves domésticas desperta escassa atenção aos naturais destas duas colónias. Diz adiante que a carne de algumas delas faz parte dos seus repastos:  

“Se os incultos Bijagós e Balantas estimam comer galinhas mortas por doenças ou em estado de putrefação – por vezes, mal assadas e com intestinos e penas – já aos indígenas muçulmanos é interdito servir-se de despojos destes animais sem que, previamente, os hajam sangrado, de harmonia com a liturgia corânica. Porém, nenhuma mulher Mandinga, Fula ou Biafada ou de outra tribo, fiel sectária da religião de Maomé, se aventuraria a matar uma galinha ou sequer a repartir-lhe o corpo em pequenos pedaços, para não adoecer gravemente, abortar ou tornar-se estéril”, observa depois que “Entre os Manjacos e Brames, os pitéus de galinha reservam-se para mimos, a oferecer aos hóspedes de elevada condição social”. 

E logo suscita um comentário de índole religiosa: 

“Nenhum Manjaco se ausenta para fora do seu chão sem previamente haver consultado o Irã, ocasião em que lhe sacrificam um galo; analogamente, os Bijagós, quando constroem gamboas imolam uma galinha em honra de Nodô ou Uindô”.

Diz igualmente que não se observam nem na Guiné nem em Cabo Verde os combates de galos e entre o gentio da Guiné parece não verificar-se a crença nos poderes mágicos dos galos. Referindo-se ao piar das aves, acrescenta:

“Como na Metrópole, também em Cabo Verde e na Guiné, os cantos da coruja e do mocho suscitam temor supersticioso, por prognosticarem morte ou desgraça iminentes. Para os Mandingas, os feiticeiros gentílicos podem metamorfosear-se em mochos a fim de se apoderarem do corpo e alma das pessoas; evita-se este grave perigo prendendo ao pescoço ou cozendo às vestes das gentes talismãs ou amuletos protetores.

Outra ave bastante temida na Guiné é o grã-duque cinzento ou fraque, espécie de cegonha. Em Cabo Verde, na Guiné, como na Serra da Lousã, há abutres. Tinha-se por criminoso quem abatesse um abutre. Facilmente domesticáveis, continuam a ser agentes de limpeza, apanham os restos e dejectos humanos. Atribuem-se ao corpo desta espécie ornitológica miríficas propriedades terapêuticas; com fel destilado preparam-se mezinhas para as dores dos ouvidos, constituindo a bílis infalível antídoto do veneno das serpentes e escorpiões.

Quem se lavar na água em que, anteriormente, se tiver banhado a umbreta do Senegal, fica, fatalmente, afectado de erupção cutânea; quando se atira às abetardas aves, igualmente conhecidas entre os Fulas pelo nome de galinhas do Faraó, e não sendo atingidas, a espingarda utilizada rebentará irremediavelmente.

Mas nem só as aves de mau presságio vivem na Guiné e Cabo Verde; o martelo ou espécie de popa, o cuco indicador ou pássaro-do-mel, o pombo da Guiné e o pelicano são animais muito queridos dos naturais. A garça-bovina, o pica-bois e a alvéola-amarela também suscitam afecto devido aos bons serviços que prestam aos mamíferos domésticos, defendendo-os dos parasitas.

Na Guiné, os pombos, domesticados ou não, suscitam grande consideração aos prosélitos de Maomé. O profeta, perseguido pelos seus inimigos, refugiou-se numa gruta, aberta em rochedo escarpado, à entrada da qual uma pomba chocava num ninho e que não se assustou com a sua presença.

Entretanto, chegaram os perseguidores e a ave espantou-se; entenderam não entrar na gruta porquanto, concluíram, se o profeta se houvesse acolhido aí, certamente que a pomba tivera deixado o ninho… 

Os pelicanos frequentam as correntes de água da Guiné. Grandes bebedouros de água – absorvendo cerca de dez litros de uma vez – os pelicanos são figuras de relevo no folclore muçulmano.

Na Guiné, os Beafadas nunca comem nem molestam jagudis, aves parecidas com os perus, porque as consideram almas dos seus antepassados, nem permitem maus tratos a quaisquer aves que pousem nas árvores vizinhas das suas palhotas, tomando-as como seus hóspedes.

Ignoramos se a carne de grou é aqui tida como remédio de longevidade. Tucanos igualmente se mostram na Guiné Portuguesa.

Lindos colibris ou beija-flores, tão abundantes no Brasil e nas Guianas, também há muitos na Guiné Portuguesa.

Na Guiné Portuguesa é vulgaríssimo o papagaio-cinzento, ao qual os árabes denominam ave-homem.

E não poremos termo a este artigo sem citar outra ave interessantíssima: o avisador do crocodilo – designação que lhe impuseram os árabes; trata-se de uma pernalta a que os Fulas chamam ave-da-areia. Quando o réptil se expõe ao sol, o passarito sobrevoa-o e, célere, introduz-se sem medo nas fauces hiantes e hediondas do monstro; entra na boca escancarada do sáurio com o fito de retirar-lhe de entre os dentes as partículas de carne e apanhar os vermes que as infestam. O crocodilo nunca importuna o seu comensal; é que este, além de ser agente de limpeza bucal, ao pressentir qualquer animal perigoso para o réptil, salta rapidamente para cima das mandíbulas e não se cansa de as picar enquanto o lagarto não se precipitar nas águas fundas do rio. Também a tarambola armada do Senegal, ave odiada pelos caçadores, dá sinal da presença deles aos animais da selva.”



Jagudis, os melhores varredores de lixo da Guiné-Bissau…
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18426: Fauna & flora (14): quando os animais emigram para o vizinho Senegal... (Cherno Baldé)

1 comentário:

Anónimo disse...

Caro amigo Mario Beja Santos,
Este trabalho de Antonio de Almeida, publicado na década de 40 do sec. Passado e que foi baseado numa pesquisa feita junto da populaçao indigena da Guiné conseguiu, de facto, captar a parte narrativa e comportamental da cultura indigena dos povos da Guiné (dita Portuguesa), da sua relaçao com o meio envolvente e das crenças e superstiçoes que resultavam dessa interaçao e, no caso, relativamente as aves no imaginario colectivo, estando bem ancoradas nas suas diversas tradiçoes e culturas que ainda, em grande medida, subsistem.
Essas manifestaçoes socio-culturais fazem do homem africano em geral e guineense em particular, na sua essencia e sobretudo um homem supersticioso. A superstiçao engendra o medo do desconhecido e tudo que seja esquisito aos seus olhos o que, finalmente, leva o africano tradicional a ter um respeito profundo e quase sagrado do meio natural onde ele convive com a parte do mundo invisivel e que alimenta e povoa o seu espirito ainda “primitivo”.
Todavia, nao me parece que tenham conseguido tocar o fundo da questão que seria de procurar as respostas sobre os porquês :
A titulo de exemplo, porque é que nas sociedades islámicas e nao só, a mulher não é permitida proceder ao sacrificio dos animais ou matar e repartir uma galinha ? Porque é que o indigena que vai para uma viagem nao deve cruzar-se, no seu caminho, com uma cegonha gigante das savanas de cor preta ? Porque é que determinadas linhagens das familias tradicionais têm como parente totémico a galinha de (mato) angola ou a perdiz ? Qual a origem da superstiçao sobre a feitiçaria que empresta aos homens e mulheres (sobretudo os velhos /as da aldeia, eternos culpados) a extraordinaria capacidade de metamorfosear-se em aves nocturnas (moços e corujas) a fim de se apoderar das almas e corpos das vitimas ? Porquê ... ?
Mas, a dinámica social não sendo estanque, certamente, mesmo se o fundo desses fenomenos sociais ainda se mantem quase intacto nas comunidades tradicionais do meio rural, as suas formas sofreram evoluçoes ou deixaram de ser sentidas e manifestadas da mesma forma que antigamente em funçao das mudanças sociais e culturais que, entretanto, vao aparecendo com o fenomeno da urbanizaçao e a vida nas cidades, cosmopolitas e multiculturais, assim como a democratizaçao do ensino oficial e a contribuiçao das influencias externas derivadas da mundializaçao e da penetraçao/expansao das diferentes religioes dentro das comunidades «gentilicas ».
Na Guiné-Bissau, ainda é frequente o fenomeno de ataques e de mortes por feitiçaria nas comunidades etnicas das zonas rurais (aconteceu em Biombo no mês passado) e, nao raras vezes, ouvem-se tiros, durante a noite, para expulsar uma coruja mais atrevida que ousase importunar, com os seus agourentos gritos, nos Bairros de Bissau. Enfim, ainda tudo se mantem quase intacto, mas nada é como no antigamente.
Com um abraço amigo,
Cherno Baldé