quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16644: Estórias mal contadas que fazem História: a mina anticarro soviética que eu (e não o capitão...) despoletei, na secretaria, em Cufar, em 11/7/1973 (Luís Mourato Oliveira, ex-alf mil inf CCAÇ 4740, Cufar, 1972/73, e Pel Caç Nat 52, Bambadinca e Mato Cão, 1973/74; novo membro da nossa Tabanca Grande, com o nº 730)



Guiné  > Região de Tombali > Cufar >  CCAÇ 4740 (1972/74) > 1973 > Mina anticarro soviética, em caixa de madeira



Guiné  > Região de Tombali > Cufar >  CCAÇ 4740 (1972/74) > 1973 > Mina anticarro soviética, em caixa de madeira:  espoleta MUV 2


Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Mato Cão > Pel Caç Nat 52 (1973/74) > O alf mil inf Luís Mourato Oliveira, à direita, com o João Santos: "Neste dia que a ementa era leitão,  o João Santos, grande companheiro que figura na imagem, pode saborear o pitéu com apetite, ao contrário do que aconteceu quando o jantar foi macaco cão e o estômago dele não resistiu".



Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Mato Cão > Pel Caç Nat 52 (1973/74)  > "Véspera de Natal de 1973,  o PAIGC estava na mata e tomamos a iniciativa de os enfrentar para que a consoada fosse 'em paz'. Aqui está parte do Pel Caç Nat 52 que emboscou com sucesso o PAIGC nesse dia, sofrendo um ferido ligeiro".


Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Mato Cão > Pel Caç Nat 52 (1973/74)  > "Do planalto de Mato de Cão a vista magnífíca do rio Geba e da bolanha de Nhabijões"


Fotos (e legendas): © Luís Mourato Oliveira  (2016). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


​1. Mensagem de Luís Mourato Oliveira, com data de 24 do corrente;

 [foto à esquerda, Luís Mourato Oliveira, ex-alf mil inf CCAÇ 4740, Cufar, 1972/73, e Pel Caç Nat 52, Bambadinca e Mato Cão, 1973/74; novo membro da nossa Tabanca Grande, com o nº 730]


Caro Luis

Apesar de visitar o Blog com alguma regularidade, a minha colaboração tem sido muito limitada, diria até nula.

Aproveito para te informar que,  com muita pena minha,  já não vivo na Marteleir,. Lourinhã,  desde setembro de 2015 e talvez por isso nunca nos encontrámos este ano,  apesar de todas as sextas-feiras lá estar presente para o jantar habitual da nossa tertúlia "raiz de cana".

Como verás,  o motivo do "escrito" foi o encontro com um ex-camarada de Cufar [, da CCAÇ 4740]. Talvez mais encontros me levem a dar mais alguma colaboração.

Verifiquei que,  apesar de num texto sobre o sequestro em Bambadinca​ pela CAÇ 22 [ou 21 ?] (**), de que fui testemunha e prestei informação estar identificado como tabanqueiro nº 625, não consto na lista [alfabética] dos tabanqueiros, o que gostaria, pois permitia ter talvez contacto com outros camaradas visitantes do Blog e que me conhecessem.

Por hoje não te incomodo mais, apenas te envio o texto em anexo para tua análise e aprovação e também as melhores saudações com votos de saúde e alegria.

Luís Mourato ​Oliveira

​PS - Seguem em anexo imagens de mina anticarro soviética bem como espoleta MUV 2 que não enviei no primeiro correio​


2. Comentário do editor LG:

Luís:

Tens toda a  razão, foi uma notória falha minha, tinha-te prometido apresentar a tua pessoa,  ao pessoal da Tabanca Grande,  como o novo membro, com o lugar nº 625, de modo a poderes  passar a desfrutar melhor, face a face, da companhia dos amigos e camaradas da Guiné que se sentam á sombra do nosso mágico e protetor poilão... 

Isto passou-se em 23/7/2013, imagina (!), há mais de três anos atrás!... Eu tinha acabado de regressar de Luanda e vinha cansado (*). A verdade é que  o  que te prometi, não cumpri nesse fim de semana,,, Faço-o hoje, tardiamente, mas com todo o gosto,  por ter na nossa companhia não só um lourinhanense (ou descendente de lourinhanses) mas também um camarada que comandou (e foi o último comandante de) os bravos do Pel Caç Nat 52, e que andou por terras que eu também calcorreei, com o mítico Mato Cuor, no regulado do Cuor...

Já não te posso dar o lugar nº 625, entretanto ocupado, mas passas a ter um outro lugar, cativo, sob o nº 730. Depois do Henrique Matos, do  Joaquim Mexia Alves,  e do Mário Beja Santos (por ordem alfabética, não necessariamente histórica), passas a ser o quarto comandante do Pel Caç Nat 52 a integrar a nossa Tabanca Grande.

Um alfabravo, espero poder encontrar-te um dia destes, por terras da Lourinhã, entre a Praia da Areia Branca e a Marteleira. LG


3. Estórias mal contadas que fazem História
Capa do livro

por Luís Mourato Oliveira


Na passada semana tive a surpresa do camarada “cufariano” da CCAÇ 4740, Mário Oliveira,  ex-furriel mec auto daquela companhia e um dos administradores do site daquela unidade que ele próprio criou conjuntamente, com o ex-alferes Zêzere e com o ex-furriel Faria, me contactar através do Facebook.

Dizia-me ele que,  semanalmente e com rigor, todos os sábados se desloca à Ameixoeira, onde actualmente resido, para visitar a sogra e almoçarem em convívio familiar com esta,  bem como com os seus cunhados,  e que seria agradável encontrarmo-nos para um café e uma boa cavaqueira. 

Respondi imediatamente que teria todo o gosto neste encontro após quarenta e três anos em que apenas tivemos oportunidade de trocar recordações e notícias através do site por ele criado. Combinámos o encontro e à hora combinada lá estávamos nós sentados no café do Sr. Manuel,  nas galerias de Santa Clara. 

Para minha surpresa reconhecemo-nos imediatamente,  não graças à boa memória dos nossos rostos dos vinte anos nem porque não mudámos nada desde essa data, mas sim pelas fotografias e postes que vamos trocando no Facebook. As tecnologias têm algumas vantagens!

Foi uma manhã de convívio muito agradável, sobretudo porque rebuscámos as boas lembranças daquele tempo. Celebrámos o facto de termos tido uma vida sã e com alegrias durante a nossa vida na tropa bem como no tempo que se seguiu e não abordámos nem agruras nem tragédias antigas para que o encontro celebrasse apenas as coisas boas da vida.

Uma das boas lembranças que trocámos foi um dos milagres de Cufar, de certeza que aconteceram muitos mais, que ocorreu em julho de 1973 e que é relatado no livro “Diário da Guiné“,  da autoria do nosso camarada António Graça Abreu [,  pág,  que connosco conviveu esse período que a todos marcou e de quem tenho estima e consideração,  apesar de aqui vir corrigir a estória que,  segundo ele,  ocorreu no dia 11 daquele mês. 

Estou certo de que o que Graça Abreu escreveu e a que só não correspondem os actores do acontecido naquele dia, não se deve a uma voluntária alteração dos factos, mas sim à narrativa que lhe foi dada dos acontecimentos e que aceitou como boa e posteriormente a transcreveu,  ficando assim para a construção da História.

Nesse dia um popular de Matofarroba dirigiu-se ao aquartelamento e denunciou que uma mina anticarro tinha sido colocada à entrada do aldeamento, na altura uma aldeia restruturada através da acção de reordenamentos lavada a cabo na Guiné.

Um grupo dirigiu-se ao local, localizou e levantou a mina. Tratava-se de uma mina anticarro russa, uma arma de uma simplicidade letal que se resumia a um caixote de madeira com cerca de sete quilos de trotil e uma espoleta que cedia com a pressão da uma viatura provocando assim os estragos que todos nós conhecemos. O caixote foi assim simplesmente levantado, transportado para a unidade e “arrumado” na secretaria da companhia sobre a secretária do já falecido primeiro-sargento Xavier…e lá ficou.

O alferes do terceiro pelotão, Luís Oliveira, eu próprio [. e não o capitão, segundo a versão do António Graça de Abreu,  vd. ponto 4, a seguir],  entrou por acaso na secretaria, talvez para ver a mina “apreendida”,  porque não era local que frequentasse com regularidade, e movido por uma curiosidade perigosa sobre a arma do inimigo e para verificar se esta tinha sido desarmada antes de estar assim exposta, rodou a tampa de baquelite que ocultava e dava acesso à espoleta MUV que deveria fazer a mina explodir.

Para grande surpresa minha e ainda maior susto, verifiquei que,  após a tampa de baquelite estar completamente desenroscada, alguma coisa a prendia e a impedia de se soltar do caixote mortal. Com o máximo cuidado detectei que a na base da rosca da tampa tinha sido feito um pequeno orifício e que neste estava preso um cordel que impedia a tampa de se soltar. Também rapidamente concluí que o mesmo cordel estava lasso e que, se havia perigo, o pior já tinha passado. 

Informei imediatamente os presentes na secretaria para que saíssem porque a mina estava armadilhada, cortei o cordel que accionava a armadilha, retirei a espoleta MUV que armava originalmente o engenho e com ajuda de alguém foi retirada a tampa de madeira do “caixote” ainda mina.

Havia uma segunda espoleta MUV soldada no trotil e armada no dispositivo de tracção onde estava atada a outra ponta do cordel. Na tampa da mina estavam pregados grosseiramente alguns pregos que deveriam servir de guia ao cordel para que,  ao desenroscar a tampa de baquelite, a tração do mesmo fosse orientada para que a espoleta fosse accionada e o engenho explodisse. Felizmente isso não aconteceu e,  se assim fosse, como calculam, não poderia hoje estar a contar esta estória.

Posto isto, e para que as estórias contribuam para a História com o máximo de rigor, mais que a corrigir a narrativa do Graça Abreu em que só os autores não correspondem aos acontecimentos ocorridos, ficam-me na memória a série de condutas incorrectas na acção de levantamento da mina que são reveladores da impreparação dos nossos militares e da falta de liderança para algumas acções que, pela sua delicadeza e perigosidade.  exigiam profissionalismo e regras de procedimento rigorosas e aplicadas exclusivamente por especialistas.

Concluindo, após a identificação e  localização da uma mina, esta deveria ter sido detonada no local por especialista de minas e armadilhas,  evitando assim o risco desta estar armadilhada e infringir baixas desnecessárias quer às NT quer à população civil e evitaria também os erros subsequentes que se sucederam.

A mina deveria ter sido desarmada por um especialista que melhor do que eu teria gerido o desarme da armadilha lá colocada.

O mais caricato desta estória foi a mina ter sido depositada na secretaria sobre a secretária do primeiro Xavier que certamente não carecia daquele equipamento para as suas tarefas administrativas.

Por último, o meu próprio erro de manusear uma arma que não me dizia respeito, visto ser atirador de infantaria e não especialista de minas e armadilhas,  e ainda ter ignorado negligentemente que o desarme de uma mina não deveria ser efectuado numa secretaria e onde estavam mais militares que seriam vitimas da minha incúria,  caso a armadilha tivesse funcionado.

Por último as informações militares deveriam ter aprisionado, interrogado e posteriormente controlado quem prestou a informação sobre a localização da mina,  dado o objectivo primeiro da denúncia era para que a mina fosse accionada através da armadilha pois o efeito psicológico dessa acção teria muito maior impacto devido a não ser usual pelo IN.

Felizmente estão cá todos para contar e constatar que às vezes é possível aprender com o erro, noutras nem por isso!

Lisboa, 2016.10.24
Luís Mourato Oliveira



Sítio da CCAÇ 4740 (Cufar, 1972/74), criado por Mário, e donde consta entre outros elementos informativos a história da unidade. Um dos camaradas desta companhia que faz parte da nossa Tabanca Grande é o Armando Faria, ex-fur mil at inf, minas e armadilhas. o António Manuel Salvador, ex-1.º cabo aux enf. Pernso que há mais, cito de cor.



4. Excerto do Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura, do nosso camarada António Graça de Abreu  (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp), com a devida vénia:


Cufar, 11 de Julho de 1973 [pp. 131/132]



Tudo calmo na zona, apenas uma mina anti-carro colocada aqui nas nossas barbas e um pontão que foi pelos ares.



Primeiro. Entre Cufar e o nosso porto grande, no rio Cumbijã, os guerrilheiros não costumavam cair na tentação de pôr minas nos cerca de dois quilómetros de estrada alcatroada. No caminho para o porto existe um desvio, mais um quilómetro em piso de terra que conduz a uma pequena povoação chamada Mato Farroba habitada por umas centenas de africanos e alguns elementos da milícia local, que estão do nosso lado. Pois na terra da estrada, a cinquenta metros da povoação, encontrava-se ontem uma mina anti-carro capaz de fazer voar um camião. Terá sido colocada durante a noite quando a população e os tipos da milícia estavam a dormir, ou talvez mesmo com a conivência da gente de Mato Farroba. Eles não têm viaturas, só ali passam as tropas portuguesas de Cufar que vão lá todos os dias levar materiais e ajudar na construção de novas tabancas. Mas foi a população de Mato Farroba quem descobriu a mina e avisou as NT. 

O capitão da companhia [, a CCAÇ 4740,] foi lá buscá-la, desactivou-a e depois trouxe-a para o seu gabinete. Aqui, ao desenroscar lentamente a tampa para tirar a espoleta, sentiu uma pequena pressão esquisita. Se tivesse continuado a desenroscar, hoje já não tínhamos capitão. A mina estava equipada com um sistema, um fio que conforme se desenroscava a tampa apertava esse mesmo fio que levava a um outro detonador. O capitão desconfiou, levantou cuidadosamente a tampa de madeira e cortou o fio. Salvou a vida. Estive a ver a mina, de fabrico russo, uma caixa de madeira com sete quilos de trotil, um feio instrumento de morte. (...)  
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Notas do editor:



(...) Meu caro acamarada e conterrâneo Luís Oliveira:



Acabo de regressar de Luanda, depois de um dia cansativo: levantei-me às 5h30, cheguei ao ao aeroporto às 7h00 e... embarquei no Airbus 340, do TP 288, às 13h00 (...)

Faço questão de, mais uma vez, te pedir que aceites o meu convite para te juntares à grande fanília da Tabanca Grande, passando a seres o membro nº 625 do blogue. 


 Permito-me discordar da tua opinião segundo a qual as tuas memórias pessoais da Guiné seriam irrelevantes para a historiografia da guerra colonial... Não são, pelo menos não são para mim e para todos aqueles que passaram por Bambadinca e tiveram o privilégio de conhecer os bravos do Pel Caç Nat 52... Ora, tu foste muito simplesmente o último comandante desta subunidade, composta por camaradas guineenses... E do Pel Caç Nat 52 estão cá, na nossa Tabanca Grande, não só o seu primeiro comandante, o Henrique Matos, como também outros que se lhe seguiram, o Beja Santos e o Joaquim Mexia Alves...

Estou demasiado cansado para a esta hora fazer o teu poste de apresentadação. Mas estou seguro que nos vai honrar com a tua presença. De resto, já cumpriste as nossas regras básicas, que é o envio de 2 fotos + 1 texto ou história,

Um abraço. Espero poder encontar-te em agosto na Praia da Areia Branca, na Marteleira ou na Lourinhã. LG

PS1 - Vejo que também estás no Facebook. (...)




(...) Meu caro Fernando, muito obrigado pela coragem de vires, a público, revelar esse segredo, que possivelmente guardavas há muito na tua memória... De qualquer modo, o que nos contas - ao fim destes anos todos - e que deve ter isso um pesadelo para ti e para os demais camaradas que foram feitos reféns, já não era segredo para mim... Já aqui transcrevi, ao de leve, uma conversa que tive, em Monte Real, por ocasião do nosso VII Encontro Nacional, com o último comandante do Pel Caç Nat 52, o alf mil Luis Mourato Oliveira, filho de mãe lourinhanse (...).



Ele também estava em Bambadinca, sentado tranquilamente no bar de oficiais, quando ocorreram os graves incidentes a que te referes... Foi igualmente sequestrado como tu, e mantido como refém até à chegada do brigadeiro Carlos Fabião, que, vindo de Bissau, resolveu o problema com patacão... 


Isto ter-se-á passado não com o Batalhão de Comandos Africanos, como tu sugeres, mas com o pessoal da CCAÇ 21, que era comandada pelo tenente comando graduado Jamanca, e onde havia antigos militares da formação inicial da CCAÇ 12 do meu tempo (1969/71) (...)

Guiné 63/74 - P16643: Estórias avulsas (86): O velho problema da falta de meios nas Transmissões (José Luís Gonçalves, ex-Soldado Radiotelegrafista, 2ª CCAV/BCAV 8320/73, Olossato, 1974)

Chegada de correio ao Olossato
Foto: © José Luís Gonçalves


1. Mensagem do nosso camarada José Luís Gonçalves (ex-Soldado Radiotelegrafista da 2.ª CCAV/BCAV 8320/73, Olossato, 1974), com data de 23 de Outubro de 2016:

Boa tarde meu caro Carlos Vinhal.

Só agora estou a responder, ao teu convite, porque muito embora acompanhe o blogue no Facebook, não tenho muito tempo livre. Posso aos poucos contar alguns episódios que se passaram durante o tempo que estivemos no Olossato e quando depois ficamos aquartelados na Amura.

Como deve ser do conhecimento de todos que na altura estavam ligados às transmissões, principalmente os radiotelegrafistas e os operadores de cripto, foram meses em que todos os dias recebíamos mensagens extensas a comunicar deserções de elementos de milícias, com armas e fardamento, para não falar das outras mensagens com ordens e outros assuntos.

No Olossato só tínhamos a trabalhar o rádio "STORNO" e os "Bananas" que utilizávamos para comunicar com os helis e as avionetas que nos levavam o correio da Metrópole.

Os outros radiotelefones Racal, e um da marca Marconi, que tinha uma série de relés, e que nunca conseguimos saber como funcionava, estavam avariados. Por isso não tínhamos hipóteses de utilizar telegrafia, porque só me lembro de ter visto um "AN-GRC9" em Bissorã, quando numa deslocação em serviço à CCS do Batalhão, para receber ordens de como devíamos preparar a entrega do nosso material de transmissões antes de fazermos a transferência do aquartelamento para o PAIGC.

Bom, isto tudo serve para contar um pequeno incidente que aconteceu no nosso posto de rádio.

O nosso furriel de transmissões, sportinguista dos quatro costados, quando saiu do avião deve ter tido um choque de calor que lhe deve ter "toldado" um pouco o juízo, e, apesar de ter conhecimento de que os Racal estavam avariados, vinha invariavelmente altas horas da noite, quando não tínhamos operador de serviço, (por não termos rádio), e começava a chamar por Bissorã em altos berros.
Até que um dia, aliás uma noite, fomos acordar o nosso Capitão para pôr fim àquele abuso.
O furriel acabou por ser enviado para Bissorã e nós ficamos sem chefe de transmissões na companhia.

Junto vou enviar uma foto, da chegada de uma avioneta, à nossa pista, onde estou eu e dois radiotelefonistas com os famosos "Bananas (AVP1)" a tiracolo.

Um grande abraço. e prometo não demorar a contar outra história.
José Luís da Silva Gonçalves
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16183: Estórias avulsas (85): "Naja nigricollis" emboscada no Xime na cama de um furriel… teve um fim triste e dramático (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp /Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74)

Guiné 63/74 - P16642: Agenda cultural (509): No dia14 de Outubro às 15 horas, acompanhado de muitos amigos, procedemos ao lançamento de "Sussurros Meus" (Fernando de Jesus Sousa)



1. Mensagens do nosso camarada Fernando de Jesus Sousa (ex-1.º Cabo da CCAÇ 6, Bedanda, 1970/71, DAF), com data de 17 de Outubro de 2016, a propósito do lançamento do seu último livro "Sussurros Meus":

No dia14 de Outubro às 15 horas, acompanhado de muitos amigos, procedemos ao lançamento de "Sussurros Meus".[1]

Obrigado por terem participado nesta festa bonita. Foi para mim uma honra ter contado com a vossa presença.

Com respeito estima e consideração
Bem-hajam.
Fernando Sousa



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Nota do editor

[1] - Vd. poste de 11 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16589: Agenda cultural (500): Lançamento do livro de poemas "Sussuros Meus", da autoria de Fernando Jesus Sousa, dia 14 de Outubro de 2016, pelas 15 horas, no Salão Nobre da ADFA, Av. Padre Cruz, Lisboa

Último poste da série de 21 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16626: Agenda cultural (502): No passado dia 14 de Outubro de 2016, no Salão Nobre do Quartel da Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, realizou-se a sessão de apresentação do livro "Memórias Boas da Minha Guerra" da autoria do nosso camarada José Ferreira da Silva

Guiné 63/74 - P16641: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (36): O guerreiro da minha rua

Com os meus vizinhos básicos, especializados no apoio à messe de Catió
Foto: © José Ferreira da Silva


1. Em mensagem do dia 17 de Outubro de 2016, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), autor do Livro "Memórias Boas da Minha Guerra", enviou-nos mais esta história para a sua série com o mesmo nome:

Caros amigos
Junto nova história, para possível publicação no nosso Blogue Luís Graça.
Espero que sirva para integrar a série "Memórias boas da minha guerra".

Sempre grato pelo apoio.
Abraço
José Ferreira Silva


Memórias boas da minha guerra

36 - O guerreiro da minha rua

Tive a sorte de conviver desde criança com o Zéquita Casal. Era mais velho cerca de dois anos e meio, mas, por ser baixote, nunca se notou a diferença de idade nem o atraso na escola.

Efectivamente, ele diferenciava-se do irmão mais velho, quer no bom aproveitamento escolar, quer no seu crescimento e, ainda, na aparência física. À medida que ia crescendo, mais se parecia com um tal Martinho, indivíduo muito conhecido por mulherengo, pela sua esperteza viva e pela sua habitual disponibilidade para alinhar em zaragatas. Lembro-me de, um dia, o ver com uma carrinha fechada, subir toda a calçada da estrada romana para vir buscar amigos e levá-los a ver um Porto-Benfica.

Todos sabiam que ele era analfabeto, não tinha carta de condução e que o carro não podia estar em seu nome. Só o Martinho era capaz disso tudo. Ora, constava-se que o Zequita era mesmo seu filho. E que esse fruto inesperado se deveu a um deslize amoroso de sua mãe, quando o marido partiu para a Venezuela (… ou procurar saber se o o rapaz nasceu com cerca de 10 meses de gestação).

O pai, Neca Casal, não aguentou muito tempo na Venezuela e regressou rapidamente. Era uma excelente pessoa. Toda a gente gostava dele. E é curioso que também gostavam muito da sua mulher, a Sora Micas. Ninguém via aquele casal em discussões ou a tomar atitudes menos correctas. Não fora aquele aparente deslize “bem disfarçado/tolerado/esquecido” e diríamos que era um casal exemplar. Por mim, não conhecia melhor.

Para quem conheceu o Neca Casal, é fácil compreender o seu rápido regresso. Era uma pessoa introvertida, humilde, simpática e muito presa à família, ao trabalho e aos amigos. Para além disso, ele era um exímio tocador de guitarra portuguesa e integrava o Grupo dos Fados. Assim, para alegria dele, da família, dos amigos e de muita gente, tudo regressou ao melhor dos ambientes.

Parecia não haver justificação para o Zequita gostar tanto de porrada. Tal como o irmão Jorge, foi criado em ambiente alegre e pacato. No entanto, sempre que podia, lá mostrava a sua supremacia guerreira. Nos tempos de Escola Primária, era ele quem mais nos defendia daqueles mariolas que nos apareciam. Não era pelo seu tamanho mas, sim, mais pela sua destreza e valentia. Por outro lado, parecia sentir a tal necessidade de ajustar contas com toda a gente. E ai daquele que ele apanhasse a chamar-lhe Martinho! Como resultado, trazia sempre as “medalhas” na cara e beneficiava da nossa gratidão.

Recordo desse tempo, em que andámos juntos na 3.ª Classe, os castigos que levava da Professora D. Isaura, a tal Salazarista que era o pavor dos seus alunos. Destaco um, cujo desfecho foi muito penoso.

Constava-se, entre os alunos, que se pusesse um cabeleiro sobre a mão aberta e lhe juntasse um pouco de azeite, a régua partiria no momento da reguada. Ora o Zequita, como levava reguadas quase todos os dias, ao saber disso, não perdeu a oportunidade. Foi logo no próximo castigo das “10 reguadas”. Porém, como não tinha o azeite, lembrou-se de escarrar na palma da mão. Quando a Professora lhe bateu com a régua, recebeu o espirro do escarro na cara. O que se seguiu foi aterrador. O Zequita até chorava com dores das reguadas que lhe batiam furiosamente em todo o corpo. Foi humilhante vê-lo molhado, por ter mijado nas calças. Então, deixou a escola e só veio a fazer a 4.ª classe através daquele programa especial de educação para adultos. Já ele namorava.

Como ele trabalhava na oficina do pai Neca, dedicada ao fabrico e recuperação de componentes para motos, bicicletas e motorizadas, tive acesso a um projecto especial de bicicleta de… pau.

Todos os jovens do meu tempo se lembram bem destas maravilhosas “Motas de Pau” e das corridas que fazíamos com elas. Quantas “medalhas” exibíamos nos cotovelos, nos joelhos, no nariz e na testa?! Pois eu, bastante viciado nesse popular desporto, enfrentava, ainda, a forte oposição de meus pais. Todavia, como já trabalhava, consegui juntar os 5$00 necessários e comprar a “máquina” do Zequita, que ele havia encostado, pois já tinha uma bicicleta a sério. Este modelo único tinha a adaptação dos eixos com rolamentos das próprias bicicletas. Foi uma ideia debatida entre nós, uns 2 ou 3 anos antes.

Na estrada romana, eu explorava as novas possibilidades daquela “máquina”. Quase não havia inclinação suficiente para rolar. No entanto, eu levantava o cu e baloiçava o meu peso para a frente sempre que surgia essa dificuldade. Dava-me um gozo incrível manter a máquina em movimento em situações difíceis.

Entusiasmado pelo domínio na minha rua (Estrada Real), logo me quis evidenciar numa corrida organizada em Souto, num Sábado seguinte.

A rua tinha uma inclinação muito próxima dos 10%. Saber descer com aquela inclinação, seria o caminho para a vitória. Porém, eu não podia desperdiçar as capacidades da minha “máquina” e logo fiz questão de me adiantar fortemente. Quando vi que a vitória já não me escaparia, meti pé no arame do travão e tentei controlar. Comecei a derrapar até que o arame partiu. Acelerei sem querer. A rua terminava na estrada das Termas, precisamente defronte para o muro da Quinta do Fontes. Atravessei-a, a tentar seguir para a esquerda, fugindo do muro da quinta. Sem hipóteses de seguir na estrada, bati num pequeno muro sobranceiro ao lavadouro, dei uma cambalhota e fui cair/mergulhar de costas, lá em baixo, na presa de água, coberta de silvas e outros arbustos selvagens.

Devido ao choque, nem me lembro bem o que se terá passado depois. Só sei que quando me levantei da cama, fui logo ao quinteiro ver como estava a bicicleta. Lá estava ela num monte de lenha, devidamente cortada em pedaços. A minha mãe já o tinha feito antes, com outra bicicleta, quando descobriu que era eu quem gastava o azeite todo para untar os eixos das rodas.

Em Monção ainda se fazem corridas de Bicicletas de Pau 

Sempre preocupado em disfarçar o seu feitio agressivo, o Zequita brindava amiúde os amigos com minudências de seu agrado.

Um dia comprometeu-se em arranjar para o Sábado seguinte, uma galinha para fazermos uma comezaina na tasca da Cadima. Ora, o galinheiro ficava ao fundo da varanda e era preciso ir lá buscá-la. Passámos um tempão a “treinar”, como dueto musical; ele tocava a guitarra e eu cantava. Quanto mais actuávamos, mais a mãe e uma tia se divertiam, a assistir. Elas achavam muita graça às nossas inesperadas pretensões artísticas e não havia meio de irem para a cozinha. Quando consegui apertar o pescoço ao galináceo, perante o barulho que provoquei, o Zequita aumentou assustadoramente o som da guitarra, partindo 2 ou 3 cordas.

Nós gostávamos muito de cinema. Mas o Zequita era um fanático pelas aventuras dos “Cobóis” e dos Piratas. Era lá que se inspirava nos golpes que aplicava nas assíduas lutas “justiceiras”. Agora, que era mais velho, queria complementar a sua faceta de “artista”, lançando-se à conquista da sua “gaja”. Porém, quase nunca teve a sorte dos seus ídolos (Kirk Douglas, Clark Gable, Cary Grant, Henry Fonda, Burt Lancaster, James Stewart, Clint Eastwood, etc., etc).

A vitoriosa equipa dos Solteiros que, com a dos Casados, tinha que disputar em cada dia 26 de Dezembro, o custo de uma arrozada de frango.

O Zequita já andava na recruta, em Viseu, quando se interessou por uma moça de Guisande. Conheceu-a numa matiné do Cinema de Arrifana. Chegou à fala com ela, num intervalo, quando estava acompanhada por algumas amigas.

Num dos Sábados seguintes, insistiu comigo para lhe fazer companhia, numa desfolhada. Hoje, acredito que ele já se teria excedido nalgum relacionamento local. Fomos na sua nova motorizada. Fiquei cá fora do portão de madeira de um alpendre que, todo aberto, deixava ver um monte de espigas de milho rodeado essencialmente por jovens raparigas. Entre elas, lá se instalou o Zequita, parecendo alheio a toda a “admiração” que lhe estavam a dispensar. Cá fora, um grupo de rapazes, acompanhava os trabalhos, ao mesmo tempo que galhofavam. A dada altura, já ouvia ameaças, do género:
- Vais levar poucas, vais!

Mal acabou a desfolhada, o pessoal ia saindo e ia-se desligando. O Zequita ainda estava com a rapariga quando se aproximaram dele. Chefiava o grupo, um grandalhão que deu início à “malhação”. O Zequita não se ficou e foi reagindo, distribuindo murros e pontapés, mas insuficientes para tamanha investida. Eu, teria que me solidarizar e aproximei-me em sua defesa, procurando, pacificamente, acabar com o ataque. Entre socos e pontapés, senti uma correada, cuja fivela me deixou um golpe na cabeça. Alguns já mostravam navalhas. Valeram-nos as pessoas mais adultas (quase só mulheres) que se manifestaram contra as agressões, acabando por fazer desistir os meliantes.

Ficámos no chão, abandonados, à espera de recuperarmos forças para o regresso. E assim que pudemos, subimos, cambaleando, para cima da motorizada, e lá viemos devagar e aos “ésses”. O Zequita caiu de cama, foi assistido pelo médico e lá ficou uns dias. Durante essa noite, constou-se o que havia acontecido e, perante o estado clínico do Zequita, desenvolveu-se a revolta!

Os jovens do Ferral, juntaram-se depois do almoço do Domingo. Para uma melhor coordenação bélica, foram todos a pé, calcorreando os 7 quilómetros em marcha lenta. Nada de entraves para o êxito da Operação. Até o Jorge, que via muito mal, deixou os óculos em casa. Chegados ao local do crime, logo vimos os valentões que se passeavam em grande grupo. Quando nos aproximámos, eles pararam indecisos e iniciaram mudança de direcção parecendo adivinhar a nossa intenção. Tivemos que acelerar um pouco para junto deles. E, tal como já havíamos combinado, teria que ser eu a começar as hostes. Precisamente com o valentão/grandalhão. Fui pela berma da rua, servindo-me do degrau existente no passeio para me aproximar um pouco da sua altura, e desafiei-o:
- Ouve lá, ó valentão, hoje não me queres bater?

Ele, murmurou qualquer coisa e desviou o olhar. Então, gritei-lhe mais alto:
- Não sejas cobarde, mostra agora a tua valentia, seu filho da puta.

Colocando a mão esquerda na frente, enfiei-lhe um soco em cheio, lá para cima, dando início ao combate colectivo.

A rua estava cheia de beligerantes em frenética luta. A quantidade de lutadores estava equilibrada, mas a nossa equipa estava moralizada pela razão da sua revolta perante a cobardia desses agressores. A dada altura, viam-se chicotes e marmeleiros no ar. Eles serviram-se das pedras dos muros para retaliarem. O Jorge, irmão do Zequita, via muito mal e como a tarde já começara a escurecer, ele agarrava a vítima com a mão esquerda e disparava o potente soco com a direita. Chegou a enganar-se e a ouvir gritar:
- Foda-se, olha que eu sou dos teus!

A rua ficou deserta e intransitável para veículos. Nós, cada um com as suas mazelas, iniciámos o regresso. Estava a escurecer quando, já na estrada da Corga, mandámos parar o autocarro da Feirense. Apesar de exibirmos alguns ferimentos, entrámos, eufóricos e orgulhosos pela missão cumprida. Quem exteriorizava mais a sua valentia era o Nequita Fareleiro que manobrava uma tesoura, ao mesmo tempo que se lamentava não ter conseguido cortar o cabelo a ninguém. O revisor nem se aproximou para cobrar os bilhetes.

Uns anos mais tarde, já em Catió, quando a minha Companhia se havia, finalmente, juntado ao seu BART 1913, foi-me dada a oportunidade de conhecer alguns vizinhos, nomeadamente, o Laurentino, de Canedo; o Zé, de Fiães; o Engelha, de Sandim e o Fernandes, de Guisande. O primeiro fazia de cozinheiro na messe e os outros de ajudantes. Por sinal, uns “cromos” bastante conhecidos.

Quando o Guisande me disse de onde era, eu disse que conhecia muito bem aquela rua de entrada na freguesia e que, em tempos tinha andado lá em zaragata. Ele, que era gago, exclamou logo em forma de rajada:
- Fo…fo…foda-se, fo…fo… foram vo… vocês que que fo…fo… foderam aque…. aquela qua… quadrilha lá da da da terra? Ó… olhe, nun… nunca mais ti… ti…tivemos pró… problemas cu… cu…cu…esses ca… ca… caralhos.

Quando o Zequita chegou da Guiné, em 1965, Já eu andava na tropa. Por isso, poucas vezes nos encontrámos. Recordo que ele não dizia mal daquilo. Curioso, quando lhe perguntei se tinha dado muita porrada lá na guerra, ele respondeu:
- Não dei um tiro, sequer. Mas como ajudante na cozinha, cheguei a foder a tromba a vários filhos da puta.

Estava muito mais maduro e pouco falava de guerra. Falava-nos mais das ”bajudas de mama firme” e das “mulheres grandes” com as suas mamas descaídas.

Mais de 3 anos depois, logo após a minha chegada em 9 de Março de 1969, fui convidado para o seu casamento, que se realizava no Sábado seguinte. Não me lembro bem da história da “conquista” de sua mulher. Parece que ele se meteu em defesa dela e do pai, durante um desentendimento comercial (e físico!), quando estavam a vender os seus produtos serranos na feira de Lourosa. A rapariga deve ter ficado impressionada com a sua solidariedade e valentia. Sei que ela era lá das fraldas da Serra do Marão, onde fomos assistir à cerimónia e “comungar” de um magnífico banquete caseiro. Foi dos melhores que participei. Muito simples, muito abastado e muito alegre. Mas, o que mais me marcou foi a imagem do Zequita agarrado à guitarra, ao lado de seu pai que, orgulhosamente, exibia um largo sorriso de felicidade. Estava eu embevecido a contemplar esse lindo quadro, quando ouço a sua mãe: - Estás a ver Zeca? Tal pai tal filho.

Quando regressei, vim a “ver” o filme completo da vida deste guerreiro.

E, desta vez, recordei também uns comentários do ilustre sapateiro António da Ponte:
- Quando formos chamados para o Juízo Final, Deus vai-nos dar uma ordem em voz alta: O seu a seu dono e os filhos a seus pais!

E acrescentava: - Já viram tamanha confusão?

Silva da Cart 1689
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16511: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (35): A honra não tem preço

Guiné 63/74 - P16640: Os nossos seres, saberes e lazeres (181): Uma viagem em diagonal pelos países dos eslavos do Sul (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Junho de 2016:

Queridos amigos,
Após a surpreendente Split, a despeito das muitas imagens vistas sobre os lagos de Plitvice, faltam as palavras para adjetivar o esplendor natural de um conjunto de lagos que se visita com uma música de fundo permanente dos sons criados pelo turbilhão das águas, água que escorre de impressionante altura, que se derrama por bacias e que conflui para regatos ou lagos. Ver para crer. Ver de manhã o que assume outra forma de tarde, ver com a neblina o que dá uma moldura romântica que se altera radicalmente com um céu aberto que transforma a cenografia numa natureza radiosa, onde se ouvem as aves exultantes e nos lagos são bem visíveis as gordas trutas. Melhor intermezzo entre Split e Rijeka não podia haver.
Escuso de dizer que regressar à Croácia significa automaticamente voltar a Split e a Plitvice.

Um abraço do
Mário


Uma viagem em diagonal pelos países dos eslavos do Sul (6)

Beja Santos



Por estes dias não tem chovido, mal sabe o viajante que a partir de amanhã, no Parque Nacional dos Lagos de Plitvice vai haver permanentemente esguichos de água a brotar dos céus e das fendas de pedra. Aproveita-se o tempo ameno para ir visitar, antes da abalada para os lagos, um museu de Ivan Mestrovic. Confessa o viajante sem qualquer rebuço que nunca lhe ocorrera a existência deste grande mestre da escultura mundial. Tem as suas vantagens bater às portas nos postos de turismo, ali aparecem desdobráveis que acicatam a vontade de bater à porta do desconhecido. Rezam esses desdobráveis que o mestre nasceu na Croácia em 1883 e morreu em South Bend, Indiana, nos Estados Unidos. É considerado como o mais famoso artista da Croácia, e polivalente – escultor, pintor, arquiteto e escritor. Tornou-se célebre em dois movimentos artísticos coexistentes, a Secessão e a Arte Deco. Depois da II Guerra Mundial, emigrou para os Estados Unidos onde foi professor de escultura. Tornou-se cidadão americano em 1954, ali morreu em 1962. Foi membro da Academia Americana de Artes e Letras. Reza um dos desdobráveis que a sua arte tem sido comparada com Miguel Ângelo e Rodin.






A Galeria Mestrovic é uma doação do mestre à Croácia. Uma das suas doações, a outra é uma casa de Verão em Crikvine – Kastilac. Na galeria, o visitante tem esculturas em mármore, em bronze, em madeira e em gesso. Inicia-se a deambulação e o viajante é impressionado com o esmagador Polifemo, aquele gigante truculento que Eneias afrontou, mostra-se uma parte da fachada clássica da galeria, o viajante gostou imenso da fotografia do jovem artista, segue-se uma escultura baseada também num tema clássico e as duas últimas imagens reportam-se a uma obra gigantesca que Mestrovic foi construindo uma casa de Verão em Crikvine, ao longo de 35 anos foi construindo relevos em madeira com o tema central da vida de Jesus tudo dentro de uma galeria em que a figura preponderante é a crucificação.







Chovia que Deus a dava de Split até Plitvice, num autocarro com gente de dezenas de nacionalidades, grandes, médias e pequenas mochilas. Largados na proximidade, subimos para umas construções tipo albergues de montanha, arrumadas das trouxas, comprados os bilhetes para entrar no parque e observado o mapa, num ambiente bucólico, quiçá romântico pela muita neblina e chuviscos intermitentes, lá vão os grupos a gralhar, e percorridos uns caminhos de saibro, abre-se um espetáculo faustoso, inigualável, tal como escreveu Fernando Pessoa para o anúncio da coca-cola: primeiro estranha-se e depois entranha-se, demora tempo a perceber se há alguma harmonia possível naquelas trombas de água que brotam por todos os lados. O folheto que nos é oferecido à entrada reza que o parque tem uma extensão apreciável, quase 300 quilómetros quadrados, estão inscritos na lista do património mundial da UNESCO, é um fenómeno peculiar da hidrografia calcária. Trata-se de uma rocha porosa formada por sedimentação do carbonato de cálcio da água, o tufo, que dá a forma a barreiras, diques e cursos de água de diferente tamanho e sinuosidade. Com o tempo a água muda o seu curso, fenómeno que dá a sensação que estes lagos não são sempre os mesmos, acrescendo o facto de estarem cobertos por florestas abundantes, prados, sapais e lameiros, habitat espantoso para cerca de 1267 espécies de plantas, e diz mais a literatura que há 55 variedades de orquídeas, 320 espécies de borboletas, 160 espécies de pássaros e 21 espécies de morcegos.

Que mais vos dizer? Ficaria aqui sem hesitar mais uma semana, mesmo com chuva e ventania, nunca me fora dado assistir a um espetáculo tão pródigo em cachoadas de água, água a saltar do tufo no emaranhado da vegetação. Por mim, voltava muito depressa, estas caminhadas entre estacaria, caminhos saibrosos, de barco, com saco de piquenique e tempo disponível para contemplar a grandiosidade de céu, tufo e miríades de água, deixam a alma lavada. Acabou-se o hino à natureza, o passeio vai prosseguir por uma outra surpresa, Rijeka, depois Trieste e Veneza. Por outras palavras, ainda há muita coisa a conversar.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16617: Os nossos seres, saberes e lazeres (180): Uma viagem em diagonal pelos países dos eslavos do Sul (5) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P16639: Notas de leitura (895): "Guiné: crónicas de guerra e amor", de Paulo Salgado: texto da apresentação do livro, pelo poeta e jornalista Rogério Rodrigues


Lisboa > Associação 25 de Abril > 20 de outubro de 2016 > Sessão de lançamento do livro "Guiné: crónicas de guerra e amor", da autoria do Paulo Cordeiro Salgado (Lema d'Origem Editora, Carviçais, Torre de Moncorvo, 2016, 230 pp; coleção Palavra). Apresentação foi feita pelo poeta e jornalista Rogério Rodrigues, aqui na foto.

 

Lisboa > Associação 25 de Abril > 20 de outubro de 2016 > Sessão de lançamento do livro "Guiné: crónicas de guerra e amor", da autoria do Paulo Cordeiro Salgado (Lema d'Origem Editora, Carviçais, Torre de Moncorvo, 2016, 230 pp; coleção Palavra) > O autor autografando um dos exemplares do seu livro: à esquerda, os nossos grã-tabanqueiros. Hélder Sousa, Luís Graça e Alice Carneiro.

Fotos: © Conceição Salgado  (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O Livro de Paulo Salgado
Capa do livro


por Rogério Rodrigues, 
poeta e jornalista


[Rogério Rodrigues nasceu em Peredo dos Castelhanos, concelho de Torre de Moncorvo; foi professor do Ensino Secundário;  trabalhou como jornalista no Diário de Lisboa, no Jornal, na revista Sábado, no Público, Visão: foi co fundador do Semanário O Ribatejo e fundou e dirigiu o semanário Grand'Amadora;  trabalhou em televisão; é  autor de diversos livros (poesia, ficção, reportagem), bem como séries televisivas).  [Fonte: Dicionário dos mais ilustres Transmontanos e Alto Durienses, coordenado por Barroso da Fonte, Vol. 3: 2003, 765 pp. Guimarães: Editora Cidade Berço, 2003]



Declaração de interesses: eu e o Paulo Salgado, autor destas Crónicas de Guerra e Amor somos amigos há mais de 50 anos. Pelo que, para mim, é um privilégio apresentar este livro. Ambos fomos marcados, embora de formas diferentes, pelo estigma da guerra.

O Paulo traz o corpo cheio de cicatrizes como milhares de jovens que passaram pelos caminhos duros das três colónias.

Alguns deles acharam que tinham de expor as suas cicatrizes, de explicar as suas feridas e sofrimento para memória futura. Como testemunho.

Talvez os primeiros textos em prosa que relatam o absurdo de gerações sacrificadas no altar de mito da existência de um Império, sejam A Lebre e Os Mastins de Álvaro Guerra, um dos poucos, senão o único, civil que teve contacto e conhecimento antecipado do 25 de Abril.

Proibido seria a o livro de poesia a cartas de José Bação Leal, morto em combate,  e o célebre Cancioneiro do Niassa, poemas e canções críticas dos soldados de comissão em Moçambique.

O Canto e as Armas de Manuel Alegre é o grande manifesto poético contra a guerra. O meu compadre Fernando Assis Pacheco escreve a novela Walt, a história dos dias que precedem o embarque para a guerra. Teve como primeiro título, não utilizado, “Uns gajos parados à beira do Rio”. Socorrer-se-ia com frequência de nomes e geografia da guerra do Vietnam, só mais tarde convertidos para uma realidade colonial, em português. O Cau Kien: um resumo, transforma-se depois do 25 de Abril em Katalabanza, Kilolo e Volta.

António Lobo Antunes começa a sua saga obsessiva de encontrar razões para o absurdo da guerra com Os Cus de Judas e a Memória de Elefante.

Tanto Lobo Antunes como Assis Pacheco, ainda que em comissões diferentes, fizeram parte de companhias do sartriano capitão Melo Antunes.

Livro fundamental, também porque escrito por um militar de carreira, o Nó Cego de Carlos Vale Ferraz, pseudónimo do coronel Matos Gomes, é o sinal de que algo, fosse uma febre militar, uma megalomania de velhos generais ou uma obstinação de políticos e ditadores em hora de despedida, se estava a passar no interior do Exército, sobretudo entre capitães.

Surgem e vão surgindo ainda testemunhos vibrantes sobre o que foi a guerra nas colónias, desde a Autópsia de um Mar em Ruinas de João de Melo até à Costa dos Murmúrio de Lídia Jorge.

Matos Gomes e Aniceto Afonso sistematizam as contradições, factos e conflitos da guerra com documentação vária, escrita e fotográfica, mais os trabalhos de Joaquim Vieira e a série televisiva fundamental da Joaquim Furtado, as crónicas, publicadas postumamente, de Salgueiro Maia, em comissões da Guiné e Moçambique e o livro de Vasco Lourenço, também respeitante à Guiné, No Regresso Vinham todos.

Dessacralizaram o que durante muito tempo foi tema tabu e algo que tivéssemos que esconder. Nesta libertação do passado, sem que tenhamos vergonha de participar em algo de que discordámos, levou Paulo Salgado a escrever estas crónicas em sua memória, em lembrança dos seus soldados, na esperança de sobreviver suportada pelas cartas de amor, mas também na sedução da Guiné a que regressaria já como cooperante 20 anos depois, a Olossato (a Maconde de Paulo Salgado) onde não foi feliz, mas que o seduziu. Foi redescobrir os cheiros e a paisagem que lhe tatuaram o corpo e o espírito; o Poilão, a árvore centenária onde se reuniram os homens bons da tribo, os militares em descanso, como se fossem druidas transpostos para Guiné, absortos e convertidos ao animismo, num panteísmo tropical, sendo a árvore a sua referência de Deus.

Da guerra, Paulo Salgado desafia-nos com a leitura da condição humana dos seus soldados que o ruído das armas não silencia.

Chegado a Olossato, 20 anos depois, reencontra o Seidi que estivera ao serviço do Exército português e que hoje tem de sofrer as consequências do novo poder.

Recorda Bakar, milícia na tropa portuguesa, usado na despistagem de minas. Tantas despistou que ficou sem uma perna num rebentamento, num tempo em que recebera a promessa de que nada lhe aconteceria se regressasse ao PAIGC. Tinha que optar entre as agruras da guerrilha ou a comida para a família que a tropa portuguesa lhe garantia. Que opção Bakar tomaria?

Os soldados do pelotão, os camaradas alferes da companhia, são o objecto da sua escrita, essencial e substantiva, não necessitando da adjectivação para classificar as pessoas e os acontecimentos. Licenciado em Direito é mais o gestor de emoções que mestre da retórica.

Não esquece os seus. Nem as emboscadas, provavelmente a primeira, em que relata, e passo a citar, “dentro da bolsa, caído ao lado da espingarda, um passarinho morto. Para dar sorte. Naquele carreiro de morte, em Bissancage”. Fim de citação.

As suas crónicas têm a tensão de contos curtos. Só que aqui é a realidade que vence a ficção. Controla a palavra, administra de forma sábia a emoção até ao remate final, quase sempre surpreendente.

As figuras dos soldados conhecemo-las sobretudo aqueles que, como eu e o Paulo Salgado, têm vivências rurais. É a história do alentejano de alcunha o Toucinho, guardador de porcos que se quer vingar do Bezerra, filho do patrão que abusou da sua mãe. É a balanta Rosa por quem o alferes Pereira está perdido de desejo, enquanto se interroga, porquê a guerra?

Mas Rosa prefere o soldado de sentinela, com o qual faz amor fora do arame farpado do quartel. O alferes vê o enlace. E, passo a citar: “A bajuda Rosa acabava de o convencer que ele era um sonhador impenitente”. Fim de citação.

No amor não há hierarquias.

Kadi, capturada, consegue fugir. É enfermeira do Partido, com o marido guerrilheiro na Guiné -Conacri.

Mas Olossato é também um espaço concentracionário em que o álcool e a tensão erótica intensos são usados e abusados para amenizar o medo e a solidão.

Como registo de quem não morre com balas, mas morre pelo esquecimento, a história, angústia de um alferes cuja mulher há muito que lhe não escreve. Suicidou-se.

O soldado Moita é casado. Os aerogramas deixaram de chegar. E passo a citar:” pegou na G3 e meteu-se no mato. Nunca mais foi visto”. Uma repetição suavizada de um episódio da História Trágico- Marítima.

Julião, soldado, antes de a Guiné o ter sufocado, vivia com a mãe viúva, que o pai morrera entre Espanha e a França no drama ou epopeia do salto de um povo à procura de melhor vida.

Julião era um homem simples e generoso mas que os camaradas não levavam a sério. Julião é apanhado por uma granada. Fragmentos penetram nas costas. Está a morrer e diz as últimas palavras ao seu camarada Costeira: “Escreve à minha mãe e diz-lhe que estarei junto dela muito em breve”.

Nestas crónicas não há heróis nem anti-heróis, muito menos convicções de que a guerra é o caminho certo para a paz. O caminho certo para a paz é, e será sempre, a liberdade.

Com as longas noites de espera que nem o álcool e o jogo amenizam, na sua incapacidade de saída, ouvindo Ray Charles e José Feliciano, ou lendo O Vermelho e o Negro de Stendhal, há tempo para reflectir, transmitir ou debater ideologia, seja num jornal de caserna, se assim podemos dizer, O Tabanca, seja num texto escrito a tinta vermelha que surgiu no quartel e que é uma espécie de magna carta da recusa do status quo da condição do militar na Guiné e da colonização. Relata o papel ao rubro:

“Aqui onde permanecemos por obrigação, onde nos defendemos para continuarmos vivos; aqui, na terra das febres, onde o chão está por lavrar, o mato por desbravar, as muitas tabancas por reconstruir; aqui onde a camaradagem é arrimo da sobrevivência; aqui, onde cada palavra e cada gesto são medidos e apreciados até ao ínfimo pormenor; aqui—meu alferes—os homens sentem-se ‘filhos da puta’ ".

O texto terá o dedo do cabo Meireles, altamente politizado, como muitos jovens do PCP, que era contra a deserção, mas que aconselhava os seus filiados que em teatro de guerra tentassem politizar os camaradas. Quando o cabo Meireles acabou a sua comissão em Olossato e se prepara para regressar a Lisboa, uma rapariga oferece-lhe um colar, porque tinha sido sempre muito digno para com ela.

Vinte nos depois, o autor das Crónicas regressa a Olossato, com a mulher, num Fiat Uno. É cooperante na área da saúde, ele que é gestor hospitalar e tem levado e sua solidariedade e conhecimento de ofício à Guiné e a Angola.

Vai encontrar um branco caçador que ficou na Guiné depois de cumprida a comissão. Quando ficou ainda havia guerra. Além de caçador é também parteiro. Fala as línguas indígenas.

Vai encontrar um guerrilheiro que se tornou médico e que verte lágrimas perante uma criança que não consegue curar. E, com frequência, por falta de meios.

No meio da guerra ainda há finais felizes, como o do jovem alentejano que se insurge contra a escravatura e é largado sozinho nas matas da Guiné. Feito prisioneiro, é a preta Kali que o alimenta. Casam. Enriquece. E nunca mais voltou ao Crato.

Este regresso de Paulo Salgado à Guiné, mais do que um gesto de solidariedade, é o reconhecimento de uma identidade, a guineense. Estudou com profundidade a história daquele país, da sua descoberta e povoamento, desde a escravatura até à cristianização, na procura de especiarias sob a capa da demanda do Prestes João.

Durante séculos as várias etnias da Guiné combateram o opressor, fosse ele português, espanhol ou francês.

Para terminar, que a conversa já vai longa, para exemplo extremo do amor à liberdade, Paulo Salgado recorda o facto histórico da pilhagem de Antão Gonçalves aos povos da Guiné e vizinhança. Embarca para Lisboa com escravos guineenses que, no alto mar, se suicidam-se lançando-se às águas. Escolhem a liberdade à escravatura, mesmo que ela passe pela morte.

Rogério Rodrigues

Lisboa (Associação 25 de Abril), 20 Outubro 2016.


2. Informação do editor António Lopes, 
com data de 24 do corrente:

Caro Luís,

Hoje telefonou-me o Paulo dizendo que necessitavas das condições de venda pelo correio. As condições são simples:

O custo é de 15 €. Os portes são por nossa conta. O pagamento por transferência bancária.
Contacto: editora@lemadorigem.pt

Abraço,


Lema d'Origem - Editora, Ldª
NIPC: 509 059 473
E/ editora@lemadorigem.pt
URL/ http://lemadorigem.pt
Facebook: https://www.facebook.com/LemadOrigem
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Nota do editor:

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16638: Os nossos capelães (6): Libório [Jacinto Cunha] Tavares, o meu Capelini, capelão dos "Gatos Negros", açoriano de São Miguel, vive hoje, reformado, em Brampton, AM Toronto, província de Ontario, Canadá (José Martins, ex-fur mil trms, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70)


Guiné > Região de Gabu (Nova Lamego) > Canjadude > CCAÇ 5, "Gatos Pretos" > 1969 > O alf mil capelão Libório Tavares, açoriano, dizendo missa, num altar improvisado. Ajudante,  o José Martins, fur mil trms, CCAÇ 5 (Canjadude, 1968/70) (*).

Libório Jacinto Cunha Tavares, açoriano,nascido em 1933,  foi capelão no CTIG,  de 17/1/1968 a 10/12/1969,, portanto já com 35/36 anos (**).

Foto (e legenda):  © José Martins (2006). Todos os direitos reservados [Ediçaõ e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário de José Marcelino Martins , de 19/9/2014, ao poste  P13616 (*)

Se os capelães caíam em emboscadas e sofriam ataques aos aquartelamentos, não sei.

Só conheci um capelão, apesar de haver de 2 batalhões durante a minha estadia.

Conheci o Padre Libório [Tavares], tipo bacano,  e que "safou" muito alferes que se não apresentava ao render da guarda. Também não era necessário. O Libório tomava o lugar do faltoso, e depois "passava a pasta".

Esta cena via-a e soube que era normal, em comentários com a malta do Batalhão [, sediado em Nova Lamego].

[Deve tratar-se do  BCAÇ 2835: mobilizado pelo RI 15, partiu para a Guiné em 17/1/1968 e regressou a 4/12/1969; esteve em Bissau e Nova Lamego; comandantes: ten cor inf Esteves Correia, maj inf Cristiano Henrique da Silveira e Lorena, e ten cor inf Manuel Maria Pimentel Bastos. Foi rendido pelo BCAÇ 2893 (1969/71) ]
Quando o vi ir numa coluna, ia desarmado. Disse-lhe que era bom levar a "canhota", porque ficava igual aos outros, apesar de já ter uma idade jeitosa [, 35/36 anos]. Respondeu-me que foi para a guerra para salvar homens, e não para usar armas.

Uns tempos depois, já o vi a usar pistola, baseado no facto de que Deus o protegia, mas que ele, Padre, devia colaborar.

Em 11 de julho de 1969, a CCAÇ 5 estava em operação a 4 grupos de combate. No aquartelamento [, em Canjadude,]  ficou a Formação, 1 Grupo de Combate da CCAV 2482 , "Os Boinas Negars" (recebido em reforço temporário) e p Pelotão de Milícias  nº 129.

O Padre Libório [Tavares] encontrava-se de visita ao aquartelamento, tendo chegado no dia anterior com o pelotão de cavalaria.

O Padre Libório não deu um tiro, mas organizou, com as mulheres dos soldados [guineenses da CCAÇ 5] que fugiram para dentro do quartel, um grupo para encher os carregadores que os soldados iam atirando para junto deles, para serem carregados.

Incentivou toda a malta ao combate, mas não me consta que tenha chamado, ao IN, "Santos" ou "Anjinhos". O que chamou foi de grau muito mais vernáculo [, ou não fosse ele de Rabo de Peixe].

Sei que, quando regressou aos Açores, já a sua mãe e uma irmã com quem vivia, tinham falecido. Foi para junto duma comunidade portuguesa na América (***).

Onde quer que esteja e se ler esta mensagem, vai um grande abraço para o meu amigo Capelini, como eu o tratava, do furriel das transmissões de Canjadude,  José Marcelino Martins. (****)


2. Comentário do editor:

Nascido em 1933, na ilha de São Miguel, em Rabo de Peixe, Libório Tavares frequentou o seminário diocesano da Terceira,  foi ordenado padre em 1958, esteve em várias paróquias da sua ilha natal, incluindo Rabo de Peixe, foi capelão  militar no TO da Guiné (de 17/1/1968 a 10/12/1969), vive em Brampton, cidade suburbana da área metropolitana de Toronto, província de Ontario, Canadá,

Com a bonita idade dos octogenários, está naturalmente reformado. Foi pároco da igreja católica de Santa Maria, em Brampton,  durante 26 anos,  lugar que é hoje ocupado pelo seu sobrinho e afilhado, o padre Libório Amaral.

O padre Libório Tavares é muito conhecido da comunidade portuguesa e açoriana de Toronto,  é foi considerado um dos principais animadores da tradição da multissecular festa do Senhor Santo Cristo (LG).

_________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 12 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - P746: Procissão em Canjadude ou devoção mariana em tempo de guerra (José Martins)

(**) 17 de setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13616: Os nossos capelães (4): O bispo de Madarsuma, capelão-mor das Forças Armadas, em Gandembel, no natal de 1968 (Idálio Reis, ex-alf mil, CCAÇ 2317, Gandembel / Balana, 1968/69)

 (***) Vd. Liborio Tavares | Alphaleo Solutions Inc | ZoomInfo.com  [Mississauga, Ontario, Canada]

Encontrámos duas referências ao reverendo Libório Tavares, reformado [, "retired",] que fez  parte da equipa sacerdotal ligada á igreja católica de St. Mary, Brampton, Ontario,   arquidiocese de Toronto, Canadá:

St Mary's Church
Roman Catholic Church Brampton

66A Main St. South, Brampton, ON L6W 2C6


Call us: 905-451-2300
Email us: info@stmarysbrampton.com
https://stmarysbr.archtoronto.org/

(...) Parish  Staff:  Frei Liborio Amaral > Pastor:

Fr [Father] Liborio was born in 1963 at San Miguel, Azores, Portugal (...). In the winter of 1969 he immigrated to Canada with his parents and two sisters. (...) He is very happy to be pastor of his home parish – his parents are now his parishioners and live near by. An added blessing is the presence of his Uncle and Godfather, Fr. Liborio Tavares, who lives at St. Mary’s senior's residence next door.​ (...)

 (...) Fr. Liborio Jacinto Cunha Tavares (Retired Priest):  Fr.  [Father] Liborio Tavares was born in 1933 at San Miguel, Azores, Portugal (i.e. San Miguel is the largest of 9 islands in the mid-Atlantic ocean).


On June 15th, 1958, Fr. Liborio Tavares was ordained to the Priesthood in the island of Terceira, Azores (the diocesan seminary was located in this island). He celebrated his first mass of thanksgiving in the midst of his family and friends on June 29th, 1958 in the parish of Senhor do Bom Jesus, Rabo de Peixe. He was assigned to a number of parishes on the island of San Miguel and also ministered as a military chaplaincy. (...)

Podemos também, vê-lo aqui, num vídeo do You Tube, publicado recentemente por TubaMan73  > Banda do Senhor Santo Cristo 2000

"Concert at Festa do Senhor Santo Cristo at St. Mary's Church in Toronto in 2000. Our guest maestro was Fr. Liborio Tavares".


[José Ferreira de Pinho, nº 8 da lista dos capelães militares: agosto de 1963 / outubro de 1965]

5 de setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13576: Os nossos capelães (2): Convivi com o ten mil Gama, de alcunha, "pardal espantado"... Muitas vezes era incompreendido, até indesejado por alguns, pois tinha coragem para denunciar os abusos, quando os presenciava (Domingos Gonçalves, ex-allf mil, CCAÇ 1546 / BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68)

[Serafim Monteiro Alves Gama, salesiano, nº  15 da lista: janeiro de 19064/março de 1969]
[Seria o José Ferreira de Pinho, nº 8 da lista dos capelães militares: agosto de 1963 / outubro de 1965]

Guiné 63/74 - P16637: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (8): Abibe Tal tinha um coração grande, o dos sentimentos e dos afectos



1. Mais uma memória, enviada em 17 de Outubro de 2016, pelo nosso camarada Adão Pinho da Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68).


MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA

8 - Abibe Tal


O Abibe era muito feio. Negro como um tição. A única coisa que no seu corpo branqueava eram os dentes, inseridos à distância da boca. Mas tinha um coração grande, muito maior que a feiura. Não o coração de carne que lhe batia no peito, mas o irmão gémeo, o coração dos sentimentos e dos afectos.

O Abibe pertencia à milícia e era nosso empregado, ajudando na cozinha e na limpeza. Fez-se por sua livre vontade meu impedido, afeiçoado e amigo. Limpava o quarto, fazia a cama, conseguia arranjar uns mangos e umas bananas e tratava de tudo o que eu lhe pedia.

A densidade de incidentes bélicos no pequeno território da Guiné era muito maior do que nas outras colónias. A terrível fama da sua guerra alastrou como fogo. Ser destacado para a Guiné constituía uma condenação ao apodrecimento e ao risco de regressar encaixotado. Os aquartelamentos eram rodeados de arame farpado e troncos de palmeira, com abrigos subterrâneos, frequentemente flagelados. Eu próprio ajudei a cavar trincheiras, ligando os nossos quartos às casernas e a uma enfermaria subterrânea, onde guardava soros e medicamentos de urgência, indispensáveis em situações de ataque. Em tais condições de vida, era grande o valor de um companheiro e amigo como o Abibe Tal.

Mas não era só a guerra o mal que se temia. As doenças constituíam outro flagelo que a ninguém poupava. Nem ao médico. Por isso adoeci com paludismo. Mais do que uma vez. Para quem não sabe, contrair o paludismo ou malária é uma coisa terrível. A doença mais espalhada no mundo, uma das mais frequentes nos trópicos, e terrivelmente penosa nos acessos agudos. Mais de 250 milhões de pessoas afectadas em todo o planeta. De características clínicas particularmente graves nas regiões tropicais. O surto febril é indescritível. Arrepio súbito e violento, grandes picos de febre, mal-estar do outro mundo, astenia intensa, machadadas na cabeça, palpitações, contracções, sufocação, sede de toda a água, fenómenos sensoriais indefiníveis, corpo derretido em suores por dentro e por fora. O tremor generalizado mais parece uma terramoto com epicentro no peito. O vómito não mede distâncias.

Neste estado o Abibe me encontrou.
- Ché dotô, tu tá memo lixado, mim ter que dar mezinha, mim ter que ser dotô de dotô!
- Meu caro Abibe, preciso que me descubras sem falta uma galinha, custe o que custar, não consigo comer nada, e uma canja sabia de mais.
- Mim fala no Seco, dotô manga de favor a Seco, dotô sempre trata filho de ele, mulher de ele, dotô sempre dá mezinha todo família, ele tem que arranja galinha.

Pouco tempo depois o Abibe entra no quarto com a cara do avesso. Os dentes pareciam mais salientes e uns laivos de espuma apontavam os cantos da boca. Os olhos faiscavam de raiva.
- Dotô, aquele fideputa diz ca tem galinha, manga de ingrato, mim sabe que ele tem galinha, ele escunde galinha mas eu mato ele.
- Deixa lá Abibe, tudo se há-de arranjar.

A noite caíra, mansa e quente, noite da Guiné. O meu corpo sossegara, trégua das sezões e da acção dos remédios. Novas réplicas do terramoto seriam de esperar, mas o que contava era o momento. Estava eu ruminando a fraqueza, quando entra o Abibe, sorridente, com todos os dentes de fora, segurando entre as mãos um prato de canja fumegante.
- Dotô aqui tem canja, toma ela.
- Onde encontraste a galinha?
- Munto fácil, dotô, mim espera noite, Seco vai na reza, mim faz emboscada e fana dois galinha, pa hoje, manhã e outro dia.

O Abibe era solteiro e mais tarde ou mais cedo haveria de casar. Por isso precisava de quinhentos pesos e duas vacas, o preço da noiva. Eu disse que lhe daria tantos quinhentos pesos quantas as mulheres que ele comprasse, mas vacas é que não tinha.
Quando me vim embora o Abibe continuava solteiro. Choramos os dois num abraço eterno de despedida onde cabia o mundo. Sei que ele faria feliz quem dele se achegasse.

Escreveu-me muitos anos depois, dizendo que tinha duas mulheres e oito filhos. Soube há pouco tempo que estava quase cego.

Se fosse mais perto levava-lhe um prato de canja.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16485: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (7): Guiné - Irkutsk