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segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27130: Notas de leitura (1830): "África Contemporânea", por Castro Carvalho, editado em S. Paulo - Brasil, 1962 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Julho de 2024:

Queridos amigos,
Suscitou-me a curiosidade este livro brasileiro intitulado "África Contemporânea", editado em S. Paulo em 1962, por um investigador amador, que não esconde o seu deslumbramento pelo despertar de África para a autodeterminação, resolve fazer uma obra que enumera os Estados africanos enquanto Repúblicas, Enclaves, Protetorados, Monarquias (Líbia e Etiópia), Federações, um sultanato (Zanzibar) e três províncias ultramarinas portuguesas (Guiné, Angola e Moçambique, não há qualquer referência a Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe). É uma obra puramente de divulgação, o autor terá ingenuamente tirado nalguma documentação de propaganda que se permitiu falar em mais de 3000 km de estradas que substituíam vantajosamente os caminhos de mato, numa exuberância de fauna e flora onde não faltavam chimpanzés e ruínas de Cacheu e o Forte de S. José de Bissau a atestar os tempos heróicos das Descobertas. Castro Carvalho não previra que no segundo semestre da publicação do seu livro de divulgação iria começar a sublevação do Sul da Guiné, a tal autodeterminação que tanto o entusiasmava, dava os seus primeiros passos.

Um abraço do
Mário



A Guiné Portuguesa num livro brasileiro de 1962

Mário Beja Santos

Numa loja solidária, numa aldeia perto de Óbidos, encontrei uma obra em estado lastimável, mas que me acicatou a curiosidade por ter sido editada no Brasil em 1962 e falar da Guiné Portuguesa. O seu autor, Castro Carvalho, foi médico e farmacêutico, ex-deputado estadual e capitão médico do Exército Brasileiro, apresenta bibliografia como a sua tese de doutoramento sobre moléstias infeciosas, escreveu mesmo em francês um romance realista de sexologia. Explica o que o atraiu a escrever esta obra sobre uma África em que a ignorância sobre ela é quase total. “O Brasil acompanha com simpatia a evolução rápida que os países recém-criados possuem no conceito geral das nações”, lembra a independência do Gana e como em menos de dez anos 22 novas nações alcançaram a sua autodeterminação. Escreveu este livro para se avaliar o grande desenvolvimento no rumo certo da real independência socioeconómica e política destes nossos Estados. E daí esta síntese que envolve geografia, história, mosaico étnico, distinções culturais, pan-africanismo. Lembra-se ao leitor que em 1960 o Brasil despertara para uma nova realidade política. Um quase obscuro Jânio Quadros ganhara as eleições presidenciais com farta maioria e João Goulart, também com farta maioria, fora eleito vice-presidente dos Estados Unidos do Brasil.

O Brasil virara à esquerda, houvera mesmo a condecoração de Che Guevara, deu escândalo. O país recebia oposicionistas de diferentes cartilhas, por ali andou Humberto Delgado, ali vai regressar Henrique Galvão depois de sequestro do paquete Santa Maria.

O médico e farmacêutico Castro Carvalho procura dar um resumo histórico do continente, como está a organizar a nova África, não deixa de mencionar as expedições dos exploradores do século XIX e dirige-se para aquilo que ele denomina como o drama da libertação: um continente cheio de recursos, com mais de 90% da população analfabeta, uma libertação conquistada por vezes com sangue, enumera alguns dos líderes africanos com proeminência na altura, as tentativas de neocolonialismo, os esforços de alguns novos Estados para fazerem federações, tudo com maus resultados, as potencialidades turísticas, o quadro da presença islâmica no continente. Postos estes resumos, pretende dar-nos uma imagem de quem é quem em África: o Sudoeste Africano, Alto Volta, Angola, Argélia, Camarões, República Centro Africana, Chade, Congo Brazzaville, ex-Congo Belga, Costa do Marfim, Daomé, Egito, Etiópia, Enclaves Britânicos (Suazilândia e outros), Enclaves Espanhóis, Gabão, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné Portuguesa, Libéria, Líbua, Republica Malgaxe, Mali, Mauritânia, Moçambique, Níger, Nigéria, Quénia, Rodésia, Rolanda, Senegal, Serra Leoa, Somália, Sudão, Tanganica, Togo, Tunísia, Uganda, África do Sul (então União Sul Africana) e Zanzibar. Não há qualquer menção a Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe. Vejamos como ele nos apresenta a Guiné Portuguesa.

Menção da chegada de Nuno Tristão em 1446 à Costa da Guiné, início das expedições de penetração no interior, “A Guiné Portuguesa desempenhou desde o século XV ao século XIX um papel predominante do povoamento e na economia do Arquipélago de Cabo Verde, a que esteve estritamente ligada até 1869, data em que adquiriu autonomia administrativa. No começo do século XX, esse pequeno território português estava empobrecido, desorganizado e rebelde. Criou-se, então, um conselho em Bolama e comandos militares nas povoações de Buba, Geba, Cacheu e Bissau (não foi exatamente assim, mas adiante); a centralização dos serviços públicos principais, em Bolama, atraíra à vila o grosso da população portuguesa.”

E continua:
“A completa pacificação da Guiné foi realizada pelo Chefe do Estado-Maior, João Teixeira Pinto, sem o concurso do exército metropolitano, utilizando-se, apenas, dos recursos militares locais (também não foi assim, Abdul Indjai não era recurso local, era o chefe de mercenários, oriundo dos povos Jalofos). Foi só depois de 1886, época em que ficaram marcadas as fronteiras da Guiné Portuguesa, que esse território começou a progredir sendo isso hoje uma realidade incontestável.
Para atingir essa finalidade, muito esforço foi despendido, pois essa terra era olhada como inferno de vida e de morte. No decorrer dos anos, porém, pacificou-se o indígena, fizeram-se obras de saneamento e criou-se uma estrutura sanitária eficaz e completa
(longe de ser verdade, mas faz de conta).
Nasceram aglomerados urbanos, cimentou-se uma cultura, rasgaram-se mais de 3000 quilómetros de estradas que substituindo vantajosamente os tortuosos e inumeráveis caminhos do mato, permitiram a ocupação efetiva da Província. Em consequência, abriram-se grandes perspetivas na valorização das terras. E assim é que hoje a Guiné Portuguesa segue pela estrada reta do soalheiro.”

Castro Carvalho pontua pela localização, os limites e fronteiras, a superfície, a população, os dados religiosos, os recursos económicos, as potencialidades turísticas e os meios de comunicação. Uma palavra sobre este último tópico. É referida a TAGP (Transportes Aéreos da Guiné Portuguesa) que estabelecia ligações entre as principais localidades da província e entre Bissau e Varela. Um elevado número de veículos e barcos a motor faziam a ligação regular dos portos marítimos (Bissau, Bubaque, Catió e Cacheu) com o interior, através de uma vasta rede fluvial a cerca de 1800 km; como referido atrás, a rede rodoviária atingia mais de 3000 km. Com o exterior, e principalmente com a Europa, as comunicações eram feitas através de Dacar, a TAGP mantinha contacto duas vezes por semana com a capital do Senegal. A Sociedade Geral de Transportes mantinha duas carreiras marítimas por mês, entre Lisboa e Bissau. A rede rodoviária da Guiné ligava-se através de Cacine e de Pitche com a República da Guiné; de Pirada com a Gâmbia; de Colina do Norte (Cuntima) com Sedhio e Kolda, com o Senegal.

Segundo Castro Carvalho, Bissau contava então com 20 mil habitantes, era um porto de mar bastante movimentado, e os principais aglomerados eram Bafatá, Bolama, Cacheu e Farim. É o que cumpre dizer de um livrinho redigido por um investigador amador sobre o tal continente ignorado, estávamos no início da década de 1960 e o Brasil abria-se declaradamente aos ideais da autodeterminação. Tudo vai mudar com a chegada da ditadura militar, em 1964.


Uma das mais belas fotografias tiradas ao icónico monumento de Bolama. Imagem de Francisco Nogueira, com a devida vénia, este monumento é considerado o mais impressionante monumento Arte Deco da África Ocidental
Bissau, José Luís de Braun, 1780. Propriedade do Arquivo Histórico Ultramarino
Fotografia tirada numa picada da Guiné, por Andrea Wurzenberger, com a devida vénia
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Nota do editor

Último post da série de 15 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27122: Notas de leitura (1829): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 6 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P27129: Parabéns a você (2406): Maria Alice Carneiro, Amiga Grã-Tabanqueira, esposa do nosso Editor Luís Graça

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Nota do editor

Último post da série de 17 de Agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27125: Parabéns a você (2405): José Manuel Cancela, ex-Soldado Apontador de Metralhadora da CCAÇ 2382 (Aldeia Formosa, Contabane, Mampatá e Buba, 1968/70)

domingo, 17 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27128: A nossa guerra em números (34): Colonos - Parte I: os sírio-libaneses


Guné > Região de Gabu > Nova Lamego > Pel Mort 4574 (1972/74) >  Eram tapetes, de estilo oriental, com motivos exóticos (como a fauna e a flora africanas), que os militares compravam aos comerciantes libaneses. Eles também aproveitaram a "economia de guerra"... Foto do álbum de Joaquim Cardoso [, ex-sold trms, Pel Mort 4574, Nova Lamego, 1972/74].

Foto (e legenda): © Joaquim Cardoso  (2014).  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Caamaradas da Guiné]



Guiné > 1951 > Anúncio comercial da casa Fouad Faur > Tinha sede em Bafatá e "feitorias" em Piche, Paunca, Bajocunda e Bambadinca.

Fonte:  edição do "Diário Popular", de 20 de outubro de 1951 (e não 1961, como vem escrito por lapso na página da Hemeroteca Digital de Lisboa / Câmara Municipal de Lisboa, a quem agradecemos a cortesia).  É uma raridade bibliográfica: o suplemento dedicado ao Ultramar tem 218 páginas (22 dedicadas à Guiné, pp. 45-66).  Disponível  aqui em formato digital. 









Guiné > 1956 >  Amostra de anúncios de casas comerciais, pertencentes a sírio-libaneses ou seus descendentes.
 Foram publicados em Turismo - Revista de Arte, Paisagem e Costumes Portugueses, jan/fev 1956, ano XVIII, 2ª série, nº 2.

 
Havia, pelo menos, 6 comerciantes libaneses em Bafatá, em 1956, de acordo estes anúncios: 

(i) Jamil Heneni, com grandes plantações de arroz em Jabadá [e não Janbanda], na região de Quínara [mais um imperdoável  gralha!]; 

(ii) Toufic Mohamed [ou não seria Taufic ? Muitos dos anúncios vêm gralhados: por ex, Bambadinga, em vez de Bambadinca, Bajicunda em vez de Bajocunda; o que quer dizer a toponímica da Guiné era "estranha demais" aos nossos jornalistas e tipógrafos...];

(iii) Rachid Said

(iv) Salim Hassan ElAwar e irmão (com sede em Bafatá e filial em Cacine, e não Canine, como aparece no anúncio: mais uma gralha tipográfica a juntar-se a muitas outras desta edição especial da revista de Turismo...); há um membro da família, presume-se, Mamud ElAwar, que era um conceituado comerciante de Bissau;

(v) Fouad Faur, com lojas também em  Piche (grafado "Pitche"),  Paunca, Bajocunda  (grafado "Bajicunda") e Bambadinca.


Tinham peso económico e social... Por exemplo, Mamud ElAwar, tal como Aly. Souleiman e  Michel Ajouz,  era então um dos mais conhecidos comerciantes da Guiné, de origem libanesa.

 O  Salim Hassan ElAwar devia ser seu irmão  (ou membro da família):tinha lojas em Bafatá e Cacine.  E quem não conhecia o Tauffik  Saad, uma das melhores lojas de Bissau (onde havia de tudo de relógios a máquinas fotográficas) ?!.

Não sabemos se o Mamud ElAwar era muçulmano (provavelmente era, pelo nome e apelido). Já o Michel Ajouz devia ser cristão maronita, por celebrar o natal cristão e ter uísque em casa para oferecer aos militares de Bissorã, como foi o caso do nosso camarada Manuel Joaquim, que passou com ele o natal de 1965.  

Recorde-se que os  cristãos maronitas  são cerca de de 3,2 milhões em todo o mundo,  obedecem ao Papa da Igreja Católica, mas têm uma liturgia própria; no Líbano, serão um pouco mais de 1 milhão, constituindo cerca de 20% do total da população).



Guiné > Região de Bafatá > Bafatá : A zona da "Mãe de Água" ou "Sintra de Bafatá" > c. 1969/70 > Um piquenique

 Guia e especialista de Bafatá dos anos 1968/70, o arquiteto Fernando Gouveia ( que lá viveu como alferes miliciano, com a sua esposa,  a saudosa Regina Gouveia ), descreve esta zona num dos seus postes do roteiro de Bafatá como  sendo a "Mãe d'Água" ou a "Sintra de Bafatá", local aprazível e romântico onde havia umas mesas para piqueniques e que, de vez em quando, a esposa do comandante do Esquadrão organizava uns almoços dançantes em que eram convidados, além dos alferes, e alguns furriéis, "todas as meninas casadoiras de Bafatá, libanesas e não só"... 

O esquadrão acima referido deveria ser o  Esq Rec Fox 2640, Bafatá, 1969/71, cujo comandante era o cap cav Fernando da Costa Monteiro Vouga (reformou-se como coronel, e é autor de diversos livros sob o nome de Costa Monteiro).

Foto (e legenda): © Fernando Gouveia (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Pormenor de "A rapariga com brinco de pérola" (c. 1665)... Uma das obras primas da pintura ocidental, da autoria do pintor holandês (ou neerlandês) Johannes Vermeer (1632-1675). Óleo sobre tela (44,5 cm x 39 cm). Localização atual: Galeria Mauritshuis, Haia. Imagem do domínio público. Cortesia de Wikipedia.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025) (Vd. poste P27127)


1. Os colonos na África Portuguesa não eram só cidadãos portugueses da metrópole (*), mas também das ilhas atlânticas (Madeiras, Açores e Cabo Verde) e igualmente  estrangeiros como os libaneses, ou sírio-libaneses, sem esquecer os luso-indianos de Goa, Damão e Diu, e até os macaenses. Pode-se falar de um mosaico de
 povos para classificar a  diversidade humana da colonização da África Portuguesa, de Cabo Verde a Timor.

É uma afirmação historicamente correta e de grande pertinência: a população de "colonos"  na África sob domínio português não era composta exclusivamente por cidadãos da metrópole. Pelo contrário, estes territórios acolheram uma diversidade de gentes oriundas de várias partes do Império Português e de outras regiões, formando uma sociedade colonial complexa e multifacetada. 

Entre estes grupos, destacam-se os libaneses (ou sírio-libaneses), os cabo-verdianos, os luso-indianos de Goa, Damão e Diu, e os chineses de Macau, cada um com as suas próprias idiossincrasias e só sobretudo razões para migrar,  e com papéis distintos na estrutura social e económica das colónias.

Hoje damos, mais uma vez, no nosso blogue, o devido destaque aos libaneses (ou sírio-libaneses, oriundos do império otomano a que a I Grande Guerra pôs fim),  comerciantes e empreendedores. 

A presença de comunidades sírio-libanesas, cristãos mas também muçulmanos, tornou-se notável em Angola e Moçambique a partir do final do século XIX e início do século XX. E sobretudo na Guiné (no tempo da I República). 

Estes imigrantes dedicaram-se principalmente ao comércio, estabelecendo redes de distribuição que iam dos centros urbanos às zonas mais recônditas do interior. 

Eram conhecidos pela sua capacidade de iniciativa e pelo seu papel no comércio de retalho, vendendo tecidos, utensílios e outros bens de consumo. A sua posição era frequentemente a de intermediários económicos entre as grandes companhias europeias (portuguesas e francesas)  e a população africana.


A Presença Libanesa na Guiné: Um Século de Comércio

 A presença de comerciantes libaneses, e mais amplamente sírio-libaneses, na Guiné é um facto histórico bem documentado, que remonta à transição do século XIX para o século XX. Estes imigrantes desempenharam um papel fundamental e duradouro na estrutura comercial do território, hoje Guiné-Bissau.

A chegada destes levantinos enquadra-se num movimento migratório mais vasto, que os levou a estabelecerem-se na Amércia do Suil (com destaque para o Brasil) e em vários pontos da África Ocidental (com destauqe para a Costa do Marfim: maior comunidade libanesa na África Ocidental; muito presentes em Abidjan e no setor comercial).

Na então Guiné Portuguesa, encontraram um nicho económico, posicionando-se como intermediários cruciais no circuito comercial. A sua principal atividade consistia em fazer a ponte entre as grandes casas comerciais europeias e a população local.

O termo “sírio-libaneses” refere-se sobretudo à emigração anterior a 1920, quando a Síria e e o Líbano ainda eram parte do Império Otomano e depois do Mandato francês-

O Papel dos Comerciantes Sírio-Libaneses:

  • Comércio de Proximidade: ao contrário das grandes companhias portuguesas (como a Casa Giouveia ou a Ultramarin), que se focavam na exportação de produtos como a mancarra (amendoim) e o coconote, os sírio-libaneses especializaram-se no comércio a retalho; montaram lojas e estabelecimentos nos principais centros urbanos e vilas do interior, como Bissau, Bolama, Bafatá, Teixeira Pinto, Bissorã, Farim, Geba, Bambadinca, Xitole, Jabadá, Catió, Cacine, Gadamael, etc.
  • Rede de Distribuição: forneciam às populações locais bens de consumo importados da Europa, como tecidos, utensílios domésticos, e outros produtos manufaturados, a sua mobilidade e capacidade de se fixarem no interior permitiu-lhes criar uma rede capilar que penetrava profundamente no território;
  • Impacto Económico: o seu sucesso foi notável; de acordo com registos da época, em meados do século XX, as firmas pertencentes a sírio-libaneses representavam uma fatia muito significativa, por vezes perto de metade, dos estabelecimentos comerciais em importantes centros de trocas do interior da colónia.

Esta comunidade, embora não numerosa em termos absolutos (umas escassas centenas., concentrados hoje em Bissau), teve um impacto desproporcional na vida económica e social da Guiné. 

Tornaram-se uma figura familiar e indispensável no quotidiano de muitas regiões, consolidando a sua presença ao longo de todo o século XX e mantendo a sua relevância até à atualidade. A sua história é um testemunho da complexa teia de relações comerciais e migratórias que moldaram a África Ocidental na era colonial.

No nosso blogue temos cerca de meia centena de referências aos libaneses.

Os sírio-libaneses, que se começaram a radicar no território a partir de 1910, alguns acabaram por ligar-se, pelo casamento, a famílias portuguesas... Inicialmente não eram, porém, bem vistos pela concorrência nem até pelas autoridades locais.

Por outro lado, em 1974, todos já teriam a nacionalidade portuguesa...Mas parte desta comunidade optou por ficar no novo país lusófono, a Guiné-Bissau. Mas não se deram bem com o regime de Luís Cabral...


Fontes...

Segue  uma lista de fontes académicas e publicações que corroboram e aprofundam a informação sobre a presença de comerciantes sírio-libaneses na Guiné desde o início do século XX. Estas fontes são essenciais para quem deseja estudar o tema com rigor académico.

Fontes Académicas Específicas:


Janequine, Olívia Gonçalves. Os sírio-libaneses na Guiné Portuguesa, 1910-1926. Dissertação de Mestrado em História, Universidade de Évora, 2011.(*)

Resumo: Este é talvez o trabalho académico em língua portuguesa mais focado e detalhado sobre o início da presença sírio-libanesa na Guiné. A autora analisa a sua chegada, o estabelecimento das suas redes comerciais e a sua relação com a administração colonial e com as populações locais no período crucial de 1910 a 1926. É uma fonte primária.


Forrest, Joshua B. Lineages of State Fragility: Rural Civil Society in Guinea-Bissau. Ohio University Press, 2003.

Resumo: Embora o foco seja a sociedade civil e a formação do Estado, este proeminente historiador da Guiné-Bissau dedica várias passagens à estrutura económica da colónia. Ele descreve o papel fundamental dos comerciantes sírio-libaneses como intermediários económicos, destacando como eles preencheram um vácuo deixado pelas grandes companhias portuguesas, especialmente no interior.

Galli, Rosemary E. & Jones, Jocelyn. Guinea-Bissau: Politics, Economics and Society. Frances Pinter Publishers, 1987.

Resumo: Um estudo clássico sobre a Guiné-Bissau que, ao analisar a economia colonial, faz referência explícita à importância das comunidades de comerciantes estrangeiros, nomeadamente os sírio-libaneses, na estrutura do comércio a retalho.

Fontes sobre a Diáspora e Contexto Regional:

Leite, Joana Pereira. "Comerciantes sírio-libaneses em Moçambique: perfis e percursos de uma minoria." Revista de História da Sociedade e da Cultura, vol. 18, 2018, pp. 245-266.

Resumo: Apesar de o foco ser Moçambique, este artigo é útil porque contextualiza o fenómeno da migração sírio-libanesa para as colónias portuguesas em geral. Explica os padrões de migração, as redes familiares e os modelos de negócio que eram comuns a estas comunidades em toda a África Lusófona, incluindo a Guiné.

Boumedouha, Said. "Change and continuity in the relationship between the Lebanese in Senegal and the Mouride brotherhood." In The Lebanese in the World: A Century of Emigration, editado por Albert Hourani e Nadim Shehadi, I.B. Tauris, 1992.

Resumo: Este livro é uma obra de referência sobre a diáspora libanesa a nível mundial. O capítulo sobre o Senegal é particularmente relevante porque a Guiné-Bissau partilha muitas dinâmicas históricas e comerciais com a sua vizinhança na África Ocidental. Descreve o modelo de negócio dos comerciantes libaneses na região, que é perfeitamente aplicável ao caso da Guiné.

Estas fontes demonstram que a presença e a importância dos comerciantes libaneses e sírio-libaneses na Guiné-Bissau não são apenas um facto conhecido, mas também um objeto de estudo académico consolidado. A dissertação de Olívia Janequine (**), em particular, é a referência mais direta e aprofundada sobre o tema.

Face à indepenmdência, os comerciantes sírio-libaneses dividiram-se: uns partiram para Portugal e outras paragens; outrros acrediataram nas promessas d0 PAIGC e ficaram. O regime de partido único e de economia planificada (1974/91) dei cabo deles, com a inesperadda ajuda dos suecos  (***).

(Pesquida: IA / Gemini / ChatGPT /  LG | Revisão / fixação de texto, negritos, itálicos: LG)
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Notas do editor LG:


(**) Vd. poste de 29 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18962: Antropologia (28): Os sírio-libaneses na Guiné Portuguesa, 1910-1926; Dissertação de Mestrado em Antropologia Social por Olívia Gonçalves Janequine (Mário Beja Santos)


(...) "A principal produção da Guiné-Bissau, além da agricutura de autossubsistência, era o arroz e o amendoim, os dois produtos de exportação.

O comércio entre os produtores e o porto de Bissau estava nas mãos dos libaneses. Estes usavam carrinhas de marca Peugeot, em estradas lamacentas e com pouca manutenção, para transportarem para o interior produtos importados (artigos de plástico, tecidos e outros), consumidos pelas populações, e no regresso a Bissau voltavam carregados com arroz e amendoim.

O governo não estava nada satisfeito com este sistema por considerar que os libaneses ganhavam demasiado com estes negócios de verdadeira exploração dos produtores locais. Considerava também que as pequenas quantidades transportadas não eram economicamente viáveis na perspetica da exportação em grande escala.

Ambos os problemas foram resolvidos com um plano que previa a nacionalização do comércio por grosso e a retalho e o transporte das mercadorias a realizar por camiões modernos.

Claro está que foi a Suécia quem, a meu pedido, veio a fornecer umas dúzias de moderníssimos camiões Volvo, desembarcados em Bissau em poucos meses.

Estes camiões último modelo,com ar condicionado, rádio estereofónico e confortável cabine para o condutor dormir, eram naves espaciais aos olhos da populção, e depressa se tornaram num instrumento de "engate" das belezas locais nas ruas de Bissau.

Durante uns tempos era mais importante esta "mercadoria" do que os tradicionais produtos de plástico e tecidos a serem transportados para o interior.

Se o problema tivesse sido só esse, as coisas näo teriam sido tão graves. Mas...quando os camionistas mais consciencios finalmente se puseram a caminho do interior (o que não deveriam ter feito!), concluiu-se que as estradas existentes ["picadas",] não foram feitas para estes mastodontes ma sim para as carrinhas Peugeot.

Todos os tipos imagináveis de problemas surgiram, acabando por liquidar este tipo de transporte. Em menos de seis meses todos os camiões Volvo estavam parados.

Sendo as marcas de camiões Volvo e Scania as mais vendidas mundialmente, e utilizadas nas condições mais extremas, foi enviada a Bissau uma equipa de mecâncios para estudar o problema surgido.

Chegou-se à conclusão de que, para além dos problemas quanto ao peso que as estradas não suportavam, ambém tinham surgido pequenos problemas de manutenção das viaturas, do tipo: esqueceram-se de mudar o óleo, houve componentes dos motores que desaparecera, etc.

Com a falta de intermediários tradicionais, como os comerciantes libaneses, os camponeses não conseguiam escoar a sua produção, pelo que se voltaram a concentrar-se na produção para consumo local.

O arroz passou a não chegar para alimentar a população de Bissau. Aí a coisa tornou-se grave! 

O Presidente [Luís Cabral,] justificou perante mim, que as coisas tinham-se agravado por razões climatéricas que teriam acarretado doenças para as plantas. Devido a isto, perguntou-me de imediato se seria possível um aumento da ajuda económica estipulada para estas situações de emegência.

Telegrafei de imediato para os escritórios centrais da SIDA (que são as iniciais ou o acrónimo da Agência Estatal Sueca para a ajuda aos países em vias de desenvolvimento) e, em muito curto espaço de tempo, tínhamos em Bissau um barco fretado, chinês, que transportava 3 mil toneladas de arroz para que a população não morresse de fome.

Estou a simplicar mas as coisas passaram-se basicamente assim.

História semelhante poderia ser aqui contada quanto ao enorme apoio económico sueco à indústria da pesca local"  (...)

Guiné 61/74 - P27127: Felizmente ainda há verão em 2025 (18): Libanesas de olhos verdes, nunca tínhamos visto... (Valdemar Queiroz, 1945-2025)


Pormenor de "A rapariga com brinco de pérola" (c. 1665)... Uma das obras-primas da pintura de todos os tempos, da autoria do pintor neerlandês Johannes Vermeer (1632-1675).  Óleo sobre tela (44,5 cm x 39 cm). Localização atual: Galeria Mauritshuis, Haia. Imagem do domínio público. Cortesia de Wikipedia

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)



Valdemar Queiroz (Afife, Viana do Castelo, 1945 - Agualva, Sintra, 2025).

ex-fur mil at art, CART 2479 /CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)


1. Morreu em 3 de março de 2025, sem ter completado os 80 anos (nascera em 30 de março de 1945, minhoto de Afife). Um grande perda para todos nós, da família aos camaradas da Guiné. Era uma das figuras mais queridas da Tabanca Grande. 

Cinco meses de saudade!... Como ele gostaria de estar aqui hoje, mesmo dando-se mal com a canícula do verão, por causa da sua DPOC de "estimação"... De vez em quando lá ia de charola para o Hospital Amadora-Sintra... Sempre "preso à "bomba", "agarrado ao blogue", sorrindo com meia-cara à doença,  ao infortúnio, à solidão, e desejando "saúde da boa" a amigos e inimigos (se é que os tinha!)...

Cinco meses de saudade, Valdemar!... Deixaste de aparecer,   ainda estamos todos tristes e inconsoláveis... Estás perto e longe, felizmente não fostes parar á "vala comum do esquecimento"... A gente não se esquece de ti. E tu também prometeste não te esqueceres de nós.  Mas,  sem ti, o nosso blogue já não é a mesma coisa. Nem o blogue nem a Rua de Colaride... 

Olha, fui repescar textos teus, comentários que só tu sabias fazer e que nos encantavam  pela espontaneidade, autenticidade, irreverência,  verve, humor desconcertante, elegância  e alegria de viver que sabias transmitir como ninguém. 

Grande "lacrau", vê se gostas de te rever nestes teus (re)escritos, a que eu dei a forma de prosa poética... Mostra lá ao São Pedro, que até nem é mau rapaz, coitado, mesmo velhote, lá vai cumprindo os pesados deveres do seu ofício, o de porteiro do céu... (É um dos nossos três santos populares, mas não tem a mesma afeição que a gente dedica ao Santo António e ao São João; claro, não lhe diga, seria deselegante e no céu ou no inferno temos que nos dar com toda a gente, santos e pecadores...)

Podes dizer-lhe, da minha parte,  que cá na Terra da Alegria estamos todos zangados  com ele por te ter acolhido tão cedo no Olimpo dos deuses e dos guerreiros!... 

P*rra, meu velho "lacrau", porque é que não fomos todos juntos, à molhada, como no tempo em que nos mandaram para a Guiné... nos T/T Niassa, Uíge, Ana Mafalda ?!...

 Valdemar, podias ter esperado pela gente que ainda cá anda, gemendo e chorando... Na Terra da Alegria, mas que está cada vez mais feia...  

Até sempre, camarada ! Reza por nós à tua maneira...  (LG)


Da rua de Colaride via-se o mundo

por Luís Graça


Uma rua, a rua de Colaride, Agualva-Cacém,
que se tornou famosa,
há uns tempos atrás:
estava no mapa e na blogosfera,
por nela viver (mesmo só podendo assomar à janela...)
um antigo combatente da guerra da Guiné, 
um "lacrau", o Valdemar Queiroz...

Vivia sozinho em casa,
era portador de um doença crónica incapacitante
(o raio de uma DPOC - Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica),
mas não perdia o gosto de viver e, tanto possível, conviver,
e muito menos deixava de cultivar o bom humor de caserna...
Que o crioulo, esse, falava com a empregada
que lá ia a casa fazer a cachupa, a bianda,
e em dias de festa o chabéu de frango...
"Bioxene ? Não, camarada, estou proibido dos médicos.
Agora só água da bolanha!"...

Da sua janela via o mundo... da sua rua.
Era um dos mais antigos moradores da rua Colaride,
que estava então mais bonita do que em 1972/73,
quando um andar do Jota Pimenta
custava 200 contos
(c. 56 mil / 49 mil euros, a preços de hoje...).

Quando o Valdemar Queiroz se casou
e se mudou para Agualva-Cacém, há 50 anos,
a Rua Colaride não era tão bonita
e sobretudo era muito menos "colarida"...
Agora floriam nespereiras e jacarandás nos canteiros.

No país não havia mais do 28 mil estrangeiros
com estatuto legal de residentes...
Há dois anos já eram  mais de 750 mil,
segundo o SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras)
que entretanto foi extinto,
mas continuou a haver estrangeiros e fronteiras,
e cada vez mais fronteiras.

Na Rua de Colaride, havia  gente oriunda de outras terras,
Cabo Verde, Guiné, Angola, por exemplo,
três antigas colónias portuguesas,
que se haviam tornado independentes em 1974 e 1975...
Muitos vizinhos já teriam a nacionalidade portuguesa,
outros bem a queriam ter,
para não terem um dia destes a desagradável surpresa
de virem a ser corridos da rua de Colaride...
Que era maneirinha, pacata, "multicolarida"...

As fotos que o Valdemar ia tirando à varanda,
com um telemóvel fatela,
não nos diziam tudo, mas diziam algumas coisas,
dele, dos vizinhos, dos fregueses, dos transeuntes...
Bem, não se via o mundo todo,
via-se só uma nesga, o que era melhor que nada.

E sobretudo deram origem a umas tantas blogarias.
O Valdemar gostava de blogar,
dizia ele que até fazia bem à saúde,
que até se esquecia que estava agarrado à "bomba".

Às vezes, demasiadas vezes, lá sobrevinha uma crise.
Lá vinha o tinonim do 112
e lá ia ele de charola para o hospital.
"Parece que me safei desta, camaradas!"

Da última vez, no dia 1, há 2 dias,
escreveu, no blogue, a partir do tal telemóvel fatela:

"Caro amigo Vinhal... 
Eu estou de cama
sem poder deslocar-me em casa 
por estar ligado a uma máscara de oxigénio.
É uma merda estar nestas condições da doença, 
e magro, como um cão, só pele e osso.
Neste mês vou ao hospital, consegui !!!, com os bombeiros,
para ser visto o pacemaker.
Obrigado pelo teu cuidado, ´
abraço e saúde da boa. 
Valdemar Queiroz".

Morreu o Valdemar, 
o último tuga da rua de Colaride.

"Desta vez não me safei, camaradas,
mas já tinha pedido ao meu filho, que está na Holanda,
para vos avisar, quando a pilha falhasse.
Não se esqueçam de mim,
eu não vos esquecerei".

Minhoto de nascimento, 
alfacinha por criação, 
avô de netos holandeses, aliás, neerlandeses...
Uma história de grande humanidade, 
um exemplo (tocante) para todos nós,
antigos combatentes,
seus camaradas de armas,
que somos representantes de uma "espécie" 
em vias de extinção...

Luís Graça

3 de março de 2025,22:00


  Libanesas de olhos verdes, nunca tínhamos visto

por Valdemar Queiroz (1945-2025)

Que pena tenho eu de não estar em Nova Lamego,
em 1972/74,para ver as libanesas,
porque em 1969/70
tinhamos que ir a Bafatá ver os seus olhos verdes.

Ó Marcelino Martins, tens toda a razão
e eu, em 1969/70, também não me lembro 
de estabelecimentos de libaneses, no Gabu.

Havia a casa do sr. Caeiro.
Vendia tudo, p
omada prós calos,
ventoinhas, frigoríficos a petróleo,
e até material militar (facas de mato) 
pra algum 'piriquito' despassarado.

Também havia, no Gabu, outro português,
que fazia uns frangos de churrasco, de cair pró lado.
Era na saída, para Bafatá e lembro-me 
que o empregado, um africano, tinha hora de saída.
E o patrão dizia:
“Vocês é que são os culpados, 
destes gajos terem horário de saída”…
O que nós fomos 'arranjar'!

Mas, José Marcelino Martins,
nunca vi nenhuma libanesa em Nova Lamego
e eu não era cego.
Lembro-me da filha do Sr. Caeiro, 
aparecia poucas vezes,
era de cair pró lado, boa como o milho,
rapariga prós vinte e poucos anos, 
sempre à espera dum capitão.

Mas, para ver as libanesas, de olhos verdes, raparigas bonitas,
tinhamos que ir a Bafatá.
Quem me dera, estar em Bafatá naquele tempo,
tinha vinte e poucos anos.

(...) Não me lembro das libanesas em Nova Lamego. 
Lembro-me do tal fim de ano (69/70) no cineclube, 
mas não me lembro das libanesas, 
também não me lembro de quantas garrafas de 'bioxene' 
foram deitadas a baixo, se calhar foi por isso.

A filha do sr. Caeiro, de que me recordo, 
era uma bem jeitosa que andava sempre 'doente' 
atrás do tenente médico, 
mas ela queria era um capitão, 
a outra, a “rebenta-minas”, 
era gordinha mas fazia torcer o pescoço à rapaziada.

Mas das libanesas de Nova Lamego não me lembro 
e naquela altura tinha boa memória.

(...) Quanto eu gostava de saber o que é o belo, 
agora que em toda a zona da Agualva/Mercês 
há um florescer de plumas, milhares de plumas
é uma beleza de ver
(ou são só as 'Meninas de Avignon', do Picasso,
ou 'As meninas' ,de Botticelli, que são uma beleza de ver?)

E por que razão as raparigas/mulheres libanesas 
de Nova Lamego ou Bafatá, não seriam uma beleza de ver? 
Que mal estaria a rapaziada a fazer, 
se só apreciassem os olhos verdes das libanesas? 
Cometiam um grave sacrilégio de apreciar a sua beleza,
ou, querendo lá saber disso,
teriam que apreciar o saber do passar a ferro, 
o mudar a água às azeitonas, 
o fazer uma sopa de beldroegas e esperar?

Acho que não, 
a rapaziada gostava de ver raparigas bonitas, 
libanesas, fulas, mandingas 
e até as filhas dos da metrópole que eram mais finas. 
Não havia nenhum mal nisso, era absolutamente normal.

Quem, em 1969/70, na Guiné, 
não gostava de ver uma mulher de olhos verdes, 
sem estar a pensar nas mulheres 
de olhos castanhos, azuis ou pretos 
para fazer comparações...
e também pensar que todas as mulheres têm olhos bonitos,
que elas haveriam de ser um dia as nossas companheiras
e as mães dos nossos filhos?

Pois é, caro Luís, naquele tempo, há 45 anos, sem querer, 
já nós apreciávamos a 'Mulher com brinco de pérola', de Vermeer , 
sem com isso desgostar da 'Mulher de Afife com arrecadas', 
da 'Mulher com o joelho à mostra na Pastelaria Suíça', 
ou 'A Vera de biquini amarelo na Caparica'.

Pois é, caro Luís, isto do belo dá pano para mangas 
e é só escolher, 
pra nós as libanesas chegavam: 
libanesas de olhos verdes, nunca tinhamos visto.

(Condensação de vários comentários do VQ, 
publicados no blogue | Revisão / fixação de texto: LG)
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Nota do editor LG:

Guiné 61/74 - P27126: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (7): A noite de consoada de 1968 em Fulacunda: houve batatas com bacalhau e couves, sessão de cinema (um grande filme de cobóis de 1959...), um ataque à canhoada pelos "vizinhos" que eram belicosos, e até "fake news", a de que o quartel tinha caído em poder deles...



Cartaz do filme "O Homem das Pistolas de Ouro" (título original: "Warlock", EUA, 1959, 115 minutos)... Passou no "cine-ao-ar-livre" de Fulacunda, na noite de natal de 1968. Mal começou o filme, ouviram.se as primeiras canhoadas do PAIGC. (Os "turras" sempre foram uns desmancha-prazeres e, neste caso, queriam ver o filme à borla; não havia cinema nas "áreas libertadas")

Imagem e sinopse: Cortesia da RTP Programas (com a devida vénia)


Sinopse 

Um "western" clássico, com Henry Fonda, Richard Widmark e Anthony Quinn : Warlock (título original do filme, EUA, 1959; realização de Edward Dmytryk) é uma pequena cidade dominada por um bando de pistoleiros. Depois de numerosos assassinatos, os cidadãos elegem Clay Blaisdell (Henry Fonda), como xerife da cidade. Clay é um pistoleiro profissional, sempre acompanhado pelo seu fiel amigo Tom Morgan (Anthony Quinn), e Johnny Gannon (Richard Widmark), que tinha em tempos, pertencido a esse bando.

Jessie Marlow (Dolores Michaels), conhecida como "Angel de Warlock", apaixona-se por Clay, mas este tem, acima de tudo, a sua atenção centrada no confronto com o líder do bando de pistoleiros, Abe Mcquown (Tom Drake).




1. Mais um pequeno texto do Joaquim Caldeira, grão-tabanqueiro nº 905, ex-fur mil at inf,  CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834 (Tite e Fulacunda, 1968/69); vive em Coimbra; é autor do livro "Guiné - Memórias da Guerra Colonial", publicado pela Amazona espanhola (2021)



A Noite de Consoada de 1968

por Joaquim Caldeira (*)


O bom do capitão tudo fez para que a consoada fosse a mais parecida possível com a tradicional. Até conseguiu arranjar batatas, bacalhau, couves, nozes, castanhas e vinho.

Após a ceia, seria projetada num lençol preso a uma das paredes de uma caserna desativada, uma película cinematográfica, cujo tema estava mesmo a condizer: “O Homem das Pistolas de Ouro”. Protagonizado por, entre outros, os grandes actores Henry Fonda e Anthony Quinn.

Pobre cabo Lima. Era sempre a ele que se pediam sacrifícios na hora de comer. Teve por missão chefiar uma equipa que cozinhava para aquela tropa toda. E às vezes nem o furriel Estanqueiro sabia o que mandar cozinhar porque não havia o quê.

Mas naquela noite até havia batatas com bacalhau e couves, seguidas de nozes, castanhas e vinho. Tudo regado com azeite. E tudo a postos. Houve tempo para comer, beber com moderação, até porque a ração de bebida era muito curta, mas de boa vontade.

Depois, enquanto as sentinelas eram substituídas para a refeição, deu-se início à projeção do filme para o que havia dois homens do serviço de fotocine do exército, cuja missão era projetar o filme e não se borrarem de medo.

E começou o filme e começaram a ouvir-se tiros de canhão. Eram demasiado ruidosos para serem do filme. E fizeram tanto estrago que o filme prosseguiu sozinho e penso que só acabou quando faltou a corrente elétrica que era desligada sempre que ocorria um ataque.

Cada qual correu já de arma na mão, que também jantou ao nosso lado, em direção ao abrigo mais próximo e vai de defender a pele o melhor que podia e sabia.

Ao fim de cerca de meia hora, o rescaldo era do quartel quase destruído, vários feridos. Não havia mortos militares, mas na tabanca havia mortos provocados por uma canhonada que rebentou numa habitação.

O resto não conto. É trágico demais para ser lembrado. Apenas uma homenagem ao cabo Melo que passou a noite a chorar por ter que construir os caixões para os mortos e nem madeira tinha para tal. Serviu-se da madeira das caixas do bacalhau. Foste um herói, grande amigo.

De manhã, ainda cedo, tocou o meu telefone - depois conto o episódio do telefone - e quando atendi era a minha namorada que já sabia do que tinha acontecido. Queria saber notícias mais próximas do real daquelas que, prazenteiramente, foram transmitidas por Manuel Alegre, na sua Rádio Argel.

Mas naquela noite e naquele local, haviam 180 homens que tinham em Portugal os seus familiares e amigos e que alguns destes ouviriam a falsa notícia de que o quartel de Fulacunda tinha sido ocupado pelo PAIGC.
 
(Texto enviado em 9/8/2025, 17:28 | Revisão / fixação de texto: LG)

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 4 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27089: Memórias da tropa e da guerra (Joaquim Caldeira, ex-fur mil at inf, CCAÇ 2314 / BCAÇ 2834, Tite e Fulacunda, 1968/69) (6): A noite do Adriano, um herói desconhecido

Guiné 61/74 - P27125: Parabéns a você (2405): José Manuel Cancela, ex-Soldado Apontador de Metralhadora da CCAÇ 2382 (Aldeia Formosa, Contabane, Mampatá e Buba, 1968/70)

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Nota do editor

Último post da série de 10 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27105: Parabéns a você (2404): Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 84 (CTIG - Bissau, 1961/63)

sábado, 16 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27124: Os nossos seres, saberes e lazeres (696): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (217): Nenhum museu tem tanta História de Portugal como este – 2 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho 2025:

Queridos amigos,
Bem vistas as coisas, este museu organizado no que foi o Palácio Alvor tem um impressionante património que justificaria um conjunto de visitas e dezenas de textos e ilustrações em conformidade com a vastidão das coleções. Tudo começou com a extinção dos conventos, juntaram-se as peças provenientes do espólio da rainha Carlota Joaquina vendido em hasta pública, como consequência da derrota miguelista, há as peças adquiridas com as verbas oferecidas pelos reis D. Fernando II e D. Luís, também as peças adquiridas pela Academia de Belas-Artes, peças adquiridas em leilões, peças provenientes de vários legados; depois da implantação da República, uma nova leva de peças provenientes dos palácios reais, bem como das sés e palácio episcoais, peças depositadas (caso das 1500 esculturas da coleção Vilhena), doações relevantes como as feitas por Calouste Gulbenkian. É impressionante o acervo de arte religiosa, da pintura portuguesa, recorde-se Frei Carlos, os mestres flamengos, Hans Holbein, Lucas Cranach, Dürer, Bosch, Velásquez... E grande escultura, desde o Torso de Apolo, a peça mais antiga do museu, passando por Rodin, alfaias religiosas, a Custódia de Belém, a Baixela Germain, mobiliário ímpar, como o hindoportuguês, os trabalhos escultóricos de Benim, loiça Ming, os biombos Namban. Enfim, comprometo-me a voltar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (217):
Nenhum museu tem tanta História de Portugal como este – 2


Mário Beja Santos

Que o leitor me desculpe, finda uma pausa lancei-me ao trabalho, voltei à escadaria principal, gosto muito destas linhas dinâmicas que nos levam até à escultura religiosa, é a partir daqui que vou a deambular sem preocupações de roteiro quanto às escolas europeias, nada de catalogar cronologicamente o que vai do pré-românico ao oitocentismo, ainda tive o impulso de parar diante dos painéis de São Vicente que há quem garanta a pés juntos que foram pintados por Nuno Gonçalves, embora não haja nenhuma certeza documental.
O meu amigo José Luís Porfírio, que dirigiu esta casa e que dela foi conservador dedicadíssimo, escreveu com a chancela da Editorial Verbo, em 1977, no belo livro dedicado a este museu nacional:
“Se quiséssemos ser polémicos, poderíamos dizer que a pintura portuguesa começa e acaba aqui, nestas seis tábuas com cerca de 60 figuras, num tipo de expressão que, salvo duas ou três aproximações com tábuas da mesma época, desapareceu da pintura feita em Portugal sem deixar grandes vestígios, assim como pouco se conhece em Portugal ou no resto da Europa que possa servir de preparação ou de introdução a esta pintura. Não, evidentemente que se não se possa estabelecer analogias com o Sul da Espanha, ou com a composição das tapeçarias borgonhesas; não, também, que na pintura portuguesa do século seguinte se não possa detetar uma linha de atenção ao concreto, muito especialmente no retrato, que possa aqui ter origem. No entanto, esta pintura, se acaba alguma coisa, não sabemos o que acaba, e não foi, certamente, o princípio de coisa nenhuma; trata-se, antes de mais, de uma das numerosas sendas perdidas na arte europeia do século XV, experiência sem seguimento, ainda que cheia de possibilidades, tal como aconteceu noutros centros marginais ou marginalizados da cultura europeia da época. Descobertas em 1882, cerca de quatro séculos depois de pintadas e quase outro tanto de esquecidas, estas seis tábuas viriam a transformar-se no caso, ou na questão, da história da arte portuguesa. Têm estas seis tábuas praticamente mais literatura escrita sobre elas do que toda a restante pintura portuguesa junta”.
Vou passar adiante deste mistério dos painéis de São Vicente, vamos então ver outras obras de inquestionável valor.


A imponente escadaria da entrada principal que permite ao visitante ir direto à escultura medieval, tendo à esquerda uma pintura icónica, o Ecce Homo.
Fonte bicéfala, em calcário, 1510-1525, oficina ativa em Lisboa
Biombos Namban, produzido entre 1570 e 1616. Os biombos eram utilizados para dividir espaços, e normalmente eram realizados de dois em dois. O tema mais recorrente no século XVI eram as cenas do cotidiano. Nos biombos do museu vê-se a chegada festiva dos portugueses no barco negro, ao que os japoneses chamavam de a chegada dos namban jin, ou bárbaros do Sul, isto é, os Portugueses e, mais tarde, os Espanhóis. Os namban eram homens de grandes narizes, de olhos negros e estranhos, usando uma indumentária singular onde se evidenciavam as calças tufadas e os chapéus de copa redonda. É assim que os nossos capitães e marinheiros surgem retratados nos biombos, executados sempre aos pares e reportando-se a cenas de aportagem e desembarque da nau de comércio e há o desfile pelas povoações.
Pormenor da chegada dos portugueses ao Japão nos biombos Namban
Arte muçulmana vinda de Damasco, o esplendor do azulejo
Continuação do esplendor do azulejo muçulmano
Paisagem de inverno (Neve), por Gustave Courbet, 1868
Santo Agostinho, Piero della Francesca, c. 1465. Um santo, um bispo, impõe a sua figura contra uma balaustrada e o céu azul, segura um báculo com cabo de cristal e enverga uma capa que narra a história de Cristo. Aqui, nesta narração, em cada uma das suas cenas, está um dos grandes motivos de interesse desta pintura, não só porque são réplicas de pinturas, conhecida uma, outras perdidas, da oficina do pintor, mas também pela conceção espacial que propõem.
Danaide (A Fonte), por Auguste Rodin e Pierre, o seu ajudante, 1893. Esta deusa aquática, de uma tradição literária e figurativa que remonta à própria Grécia, ao mesmo tempo emerge e regressa ao seu reino do incerto e da mudança constante, reino que também é o da relatividade e não o da certeza sacral. Com Rodin está acabando um grande ciclo da escultura. Este regresso ao material anuncia de certo modo os monólitos do século XX.
Interior de taberna, autor não identificado, 1664 (?)
Homem cozinhando, Jan Steen, c. 1650 (?)
Obras de misericórdia, Bruegel, o Moço, depois de 1564/65-1637/38. A família Bruegel criou uma firma de reputação europeia. Bruegel, o Moço, imitador do seu pai, e também conhecido como especialista de infernos, numa tradição boschiana, produzidos em série para um público numeroso e não muito exigente. Este quadro Obras de Misericórdia é uma curiosa descrição da vida e da miséria da Flandres, aponta para um novo tipo de pintura que o século XVII vai desenvolver e cultivar: a pintura de género, ou seja, a representação de cenas da vida quotidiana, burguesa e popular, de grande divulgação e permanente consumo até ao nosso tempo.
Pormenor do tríptico das Tentações de Santo Antão, Jheronimus Bosch, c. 1500. É, porventura, o mais procurado quadro de autor não português (neste caso, um tríptico) tanto por visitantes nacionais como estrangeiros. Toda a pintura de Bosch foi produzida numa obscura cidadezinha da Flandres, acaba por se apresentar como o último grande inventário da Idade Média. Inventário de conhecimentos, de imagens, de espetáculos, de espetáculos e procissões de rua, inventário de medos passeando-se, reunindo-se, dispersando-se como as ideias confusas do espírito, no espaço poderosamente unificado das três tábuas. Mesmo que os contemplemos até à exaustão, fica-nos uma inquietante certeza: o sonho, a imaginação, o inconsciente, são também uma realidade.
Anjo da Anunciação (fragmento), autor flamengo desconhecido, c. 1500
Rei Mago Baltasar, século XVIII, oficina de Joaquim Machado de Castro
Presépio Kamenesky, século XVIII, c. 1783, por Faustino José Rodrigues
Milagre de Santo Eusébio de Cremona, por Rafael Sanzio, 1502-1503

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 9 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27103: Os nossos seres, saberes e lazeres (695): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (216): Nenhum museu tem tanta História de Portugal como este – 1 (Mário Beja Santos)