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terça-feira, 26 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27152: (De) Caras (238): o senhor Michel Ajouz, o comerciante libanês de Bissorã, cristão maronita, amante do bom uísque (Manuel Joaquim / Rogério Freire)



Guiné > 1956 >  Anúnico da casa comercial de Michel Ajouz, um sírio-libanês ou descendente . Fonte: Turismo - Revista de Arte, Paisagem e Costumes Portugueses, jan/fev 1956, ano XVIII, 2ª série, nº 2.




Ferreira do Alentejo > Figueira de Cavaleiros > 25 de Setembro de 2010 > Jantar em casa do Jacinto Cristina > Rótulo, já muito deteriorado, de uma garrafa de uísque trazida da Guiné... Buchanan's, from Scotland, for the Portuguese Armed Forces... with love...

 Esta foi comprada em Bissau, em junho de 1974, e aberta no nosso primeiro encontro, na festa de anos da filha do Jacinto Cristina, em março de 2010


Foto (e legenda): © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Garça & Camaradas da Guiné]

1. Na Guiné, aprendemos a distinguir o bom "scotch whisky" do "uísque marado de Sacavém" que se bebia nas noites de Lisboa e arredores (Reboleira, etc.) nos anos 60/70, nos primeiros bares de alterne que apareceram... 

Os comerciantes libaneses (ou de origem sírio-libanesa) também gostavam do bom uísque... E cultivavam a arte de bem receber. Como era o caso de Michel Ajouz, comerciante com loja em Bissorã, cristão maronita. (Haveria também libaneses, muçulmanos xiitas: será que também bebiam uísque com água de Perrier ou Vichy ?)

O Michel Ajouz, sobre o qual se publica dois testemunhos, devia ser cristão maronita: celebrava o natal cristão, recebia em sua casa os militares estacionados em Bissorã e tinha uísque do bom para oferecer às visitas. Infelizmente não temos nenhuma foto dele,.

Diz o Manuel Joaquim, que o conheceu em 1965, no Natal desse ano, e que era o mais idoso, o decano, dos comerciantes libaneses de Bissorã. Em comentário ao poste P13403 (*). acrescenta: 

(...) No P10966 deste blogue, o Pepito dá-o como um dos pequenos comerciantes libaneses localizados no chamado "Bissau Velho" em 1952, aquando do regresso de Amílcar Cabral à Guiné.

Pelo que me lembro de lhe ter ouvido, os seus negócios devem ter crescido muito nos anos seguintes. As referências que fazia à sua facilidade nos contactos com certas personagens "graúdas", do regime, e de certos meios económicos, e a ambientes luxuosos que teria frequentado em Portugal,  seriam só "garganta"? Acho que não.

Em 1966, a sua actividade comercial em Bissorã era reduzida mas percebia-se que o não teria sido antes. 

(...) Do meu tempo em Bissorã, como ligação económica da tropa com a comunidade libanesa, só me lembro do fornecimento do pão. Não convivi com a comunidade libanesa de Bissorã, a não ser neste caso que referi no meu poste (*). Melhor dizendo, não tive qualquer tipo de relação com a comunidade comerciante local, libanesa ou outra. Mas sei que outros meus camaradas mantinham contactos, alguns destes de carácter muito chegado.

(...) Quanto ao juizo de "em todas as guerras os comerciantes são peritos em tirar partido da situação, procurando estar bem com os dois lados", não está longe do que eu penso mas creio não se aplicar ao Michel  Ajouz. 

Curiosamente, fui eu quem, em 1966, prendeu um dos comerciantes locais, por sinal um dos que eu via todos os dias por seu meu vizinho e passar à sua porta quando me dirigia ao quartel. Ainda hoje estou para saber a razão de ter sido encarregado de tal acto. Experimentarem-me politicamente? (...) (Manuel Joaquim, quarta-feira, 16 de julho de 2014 às 06:20:04 WEST).

Anos mais tarde, em 1969/70, o Armando Pires (ex-fur mil enf, CCS/BCAÇ 2861 (Bula e Bissorã, 1969/70), também conheceu o  Michel Ajouz: 

(...) "As recordações com que ficámos um do outro não são famosas. Mas é conversa que não é para aqui chamada." (O Armando não quis partilhar connosco este segredo, alegando que havia protagonistas ainda vivos)... Não seria o caso do Michel Ajouz, que já em 1965/66 era o decano dos comerciantes de Bissorã. 

O Rogério Cardoso (ex-fur mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66 também conviveu com o Michel Azjouz, "um velhote libanês de óptimo trato, grande sabedor de Bridge".


2. E a propósito dos  cristãos maronitas, recorde-se que  são uma das comunidades mais antigas e influentes do cristianismo oriental, com forte presença histórica no martirizado Líbano, dilacerado pelos conflitos político-militares e étnico-religiosos.

Qual é a sua origem ? O maronitismo deriva de um movimento monástico do séc. IV/V em torno de São Maron, eremita da região da Síria (c. 350–410). A comunidade consolidou-se nos montes do Líbano, preservando autonomia e identidade próprias,  mesmo durante os domínios bizantino, árabe, mameluco e otomano. Ou seja, até à I Grande Guerra (1914/18), em que colapsou o império otomano, e depois o Líbano tornou-se um protetorado francês.

A Igreja Maronita é uma igreja autónoma (sui iuris) dentro da Igreja Católica, mas em plena comunhão com Roma. Segue, todavia, a liturgia antioquena-siríaca. 

Os maronitas são a maior comunidade cristã do Líbano. Estima-se que constituem cerca de 20% a 30%  da população libanesa (o último recenseamento oficial é de 1932, por isso os números são sempre aproximados). O Líbano tera  hoje cerca de 6 milhões de habitantes (com c. 10,5 mil km2 de superfície).  A Igreja Maronita desempenhou um papel central na história e identidade do Líbano. 

Numericamente ainda mais significativos são os maronistas da diáspora (sobretudo Brasil, América do Norte e Austrália). Não há estatísticas exatas, mas estima-se que os maronistas no Mundo inteiro sejam  3 a 4 milhões. E no Líbano entre 1 e 1,5 milhões. Na Guiné-Bissau, o seu número é residual.
  

(i) Manuel Joaquim (ex-dur mil arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (*)

Na noite de Natal de 65, o decano dos comerciantes libaneses, o sr. Michel,  acho que era este o seu nome, preparou uma recepção na sua casa, para a qual convidou os comandantes das companhias alocadas em Bissorã, CART  643 e CCAÇ  1419, seus oficiais e 1.ºs sargentos e sendo o restante pessoal militar representado por um furriel e por um praça de cada uma das companhias. 

Posso estar enganado,  mas é a ideia que tenho.

Da CCAÇ 1419 fui eu o furriel escolhido. Não sei se “de motu proprio” ou cumprindo decisão superior, o 1º sargento  da companhia fez-me o convite que eu aceitei, algo contrariado, após alguma insistência.





Imagem:  Cartaz publicitário da extinta Casa Africana, uma loja emblemática da Rua Augusta, em Lisboa. S/ indicação da origem. Cortesia de Manuel Joaquim.


Para a ocasião vesti o meu fato “de ir à missa” comprado na  então famosa casa de moda da Baixa lisboeta, a Casa Africana, uns dias antes de embarcar. “Ótimo para usar em África”, disse-me o vendedor em resposta à minha inicial informação de que estava prestes a embarcar para a Guiné e precisava de um fato para levar.

E lá fui de fatinho azul-ténue, muito leve, com risquinhas verticais pretas e muito finas. A confraternização correu bem. Houve “comes e bebes” e muita conversa, geral e particular, entre os convidados e o dono da casa.

Recordo bem a qualidade do uísque, uma maravilha, do resto tenho noção vaga duma conversa do anfitrião discorrendo sobre as suas relações com personagens conhecidas na política e na sociedade empresarial, tanto na Guiné como em Portugal (no Continente, como então se dizia).

Não sei que idade teria o sr. Michel mas para mim era um homem já idoso, um senhor culto, bem viajado, bom conversador e de óptimo trato. Penso que teria sido, antes da guerra, um grande comerciante. Em 1965 a sua actividade comercial já estava muito reduzida.

Havia música mas não havia “garotas”! A animação não foi muita mas deve ter havido alguma já que o evento durou umas boas horas. O certo é que não me lembro dela. Talvez por causa do meu estado de espírito naquela altura como se pode adivinhar pela breve referência que fiz ao assunto num aerograma enviado à namorada:

(…) “Há por aqui umas famílias de emigrantes libaneses que nos proporcionaram umas festazinhas agradáveis na quadra que passou há pouco. Mas o sofrimento cá anda roendo a alma. E para muitos de nós a bebedeira foi a fuga. O whisky aqui é barato. Assim a bebedeira fica barata também.” (…)

Uma nota final: interessante o lembrar-me ainda hoje da qualidade do uísque do sr. Michel e não me lembrar de muitas outras coisas mais importantes. Pensando bem, compreendo. Pois para quem andava afogando mágoas, eu por exemplo, curtindo alegrias e lavando o estômago com VAT69, J. Walker red label e outros deste género, encontrar e saborear o uísque do velho libanês foi um momento inolvidável. Aquilo não era uísque, aquilo é que era whisky! (...)


 
(ii) Rogério Freire (ex-alf mil art, minas e armadilhas, CART 1525, Bissorã, 1966/67) (**)

(...) Vi a referência ao Michel Ajouz e ao meu nome e não posso deixar de contar uma história do "arco da velha".

Depois de regressar da Guiné, Bissorã, em finais de 1967, iniciei a minha atividade profissional como Delegado de Informação Médica (Propaganda Médica,  à moda antiga).

Uma das minhas zonas de trabalho era a região de Leiria. Num belo dia, creio que de 1971 ou 72, ao sair de Monte Real através do pinhal de Leiria a caminho da Marinha Grande, viajando a 80/90 km à hora, passo por um homem só,  que caminhava em direção a Monte Real e veio-me à memória o Sr. Michel Ajouz.

Fiquei de tal maneira incomodado com a visão que, passados uns bons 5 a 6 Km,  decidi voltar atrás e,  surpresa das surpresas, era mesmo... o Michel Ajouz!... Em pleno Pinhal de Leiria,  a fazer o seu passeio matinal.

Foi uma grande alegria, ele lembrava-se perfeitamente de mim e da CART 1525 bem como dos outros alferes, o Rui, o Oliveira e o Silva bem como do Capitão Mourão [ Jorge Manuel Piçarra Mourão]  que era ocasionalmente seu parceiro de bridge.

Fiquei a saber na altura que vinha às Termas de Monte Real à procura de alívio para as suas maleitas. E depois de um grande abraço nos separámos.

Foi um daqueles acasos ... em pleno Pinhal de Leiria quem me diria vir-me a encontrar com o Michel Ajouz, de Bissorã,  5 a 6 anos depois?  (***)

(Revisão / fixação de texto, itálicos e negritos, título: LG)

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Notas do editor LG:




(***) Último poste da série > 2 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27079: (De)Caras (237): Ercília Ribeiro Pedro, ex-enfermeira paraquedista, do 2º curso (1962), reconhecida pela Maria Arminda em foto de grupo, tirada no Brasil, em 2012, e pertença do álbum do cor art ref Morais da Silva

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27151: Notas de leitura (1832): "A Corja de Batoteiros", por Rui Sérgio; 5livros.pt, 2019 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Agosto de 2024:

Queridos amigos,
À cautela, li e voltei a ler, à procura da mensagem destes caminhos ínvios em que anda Jordão Ribeiro desde que trabalhou no armazém de ferragens e se tornou chulo, segue-se a sua passagem pela Guiné onde monta um espetacular negócio de quebras e faltas forjadas, empresa com cumplicidades, torna-se herói, é promovido, instala-se no Batalhão de Intendência em Bissau, torna-se numa das figuras mais indispensáveis pelos serviços que presta, habituara-se na recruta a prestar serviços, nem a Cruz de Guerra de 1.ª Classe o impediu de montar um negócio de escrever aerogramas a 25 tostões cada, grão a grão enche a galinha o papo, quando regressar ao armazém de ferragens compra o negócio e veremos como irá prosperar depois da chegada da democracia. A mensagem do autor parece-me muito enevoada, há um elogio ao 25 de novembro, a política está entregue aos medíocres, são uma fauna que irá criar a desgraça do país. Que o leitor espere pelo que se vai passar em novas vicissitudes depois da chegada de Jordão à Invicta, e teça então o seu juízo quanto à apologia desta "Corja de Batoteiros".

Um abraço do
Mário



A arte da batota, antes, durante e depois da guerra da Guiné (1)

Mário Beja Santos

A "Corja de Batoteiros", 5livros.pt, 2019, é um dos livros mais ambíguos e desanimadores que saiu do punho de Rui Sérgio. Gente crápula, badalhoca, espertalhona, que atravessa a história de Portugal, com um herói de guerra permanentemente no palco. Na verdade, o herói do romance (se é esta a designação apropriada) Jordão Ribeiro, é um eterno ganhador por manhosice e adequado uso dos expedientes, dificilmente se entende como este único filho de Maria Rameira, mãe solteira, de Ponta Barca, que na terra fazia uns favores, de estatura baixa, com cabeça redonda, orelhas grandes e um nariz helénico, com peito e costas largas e membros curtos que lhe dava um ar amacacado, nascido no Estado Novo, por uma imprevisibilidade altamente condecorado, continuará a fazer batota no regime nascido em 25 de Abril, e tudo é descrito como se a batota fosse a ordem natural das coisas. Argumento acabrunhante, mesmo que o autor entenda que somos geneticamente batoteiros. E vamos à história.

Órfão de pai e mãe, vai crescer numa casa de passe, na Rua dos Caldeireiros, no Porto, educado no meio de insultos, afagos e carícias maternais que as meninas do ofício lhe devotam. Pouco dado aos estudos, foi parar a um armazém na Rua do Almada, de ferragens, passava o dia a contar e a numerar centenas de sacos de porcas e parafusos. A menina Zulmira, a Madrinha, fazia-lhe pitéus, o Jordão era muito trabalhador no armazém, foi iniciado no bordel, graças ao patrão Pires do armazém foi tirar um curso comercial pós-laboral, arranjou uma amante quarentona, começa a desviar material, operação bem-sucedida, ninguém dá pela batota; apurado para todo o serviço vai para as Caldas da Rainha, continua a angariar dinheiro a quem presta favores sexuais.

Habitua-se na recruta a prestar serviços, vende graxa para as botas, giletes, para quem não gosta de comer no rancho vende conservas, vai fazendo um dinheirinho jeitoso; nos fins de semana vem até à Invicta, passa a noite com a menina Rosa, de sexta para sábado, no sábado vai à Dra. Mélita, a quarentona que lhe dá uma notinha de 50 escudos, almoça com os padrinhos enquanto a madrinha trata da roupa suja.

Cabe-lhe agora a Guiné. A Rosa falou-lhe de uma prima direita que trabalha na edição no Chez Toi, em Bissau. Faz o treino operacional em Bolama, já está em boa amizade com o Raul Rochinha e o 1.º cabo Narciso. Em Bissau, a prima da Rosa, Ana Carolina, oferece-lhe ostras e outras coisas. Fica em Bambadinca no Pelotão da Intendência, é um vagomestre e tanto, o Jordão começou a tirar proveito da situação, a inventar quebras, negoceia com caçadores autóctones para fornecer carnes às unidades militares, vai calculando habilmente as faltas, toda a gente gosta do Jordão, sorridente a bajulador. E nisto, tona-se num herói, como o autor explica:
“As deslocações entre o Pelotão de Intendência e das unidades militares por vezes davam sobressaltos, quer por deteção de minas nas picadas, quer por emboscadas, como uma vez de Contuboel para Sonaco, que após o impacto inicial do grupo de combate que lhe prestava segurança, o ataque dos guerrilheiros causou uma série de feridos na nossa tropa. Apesar da situação critica, o Jordão que levava sempre duas granadas defensivas penduradas no seu camuflado, atirou-as para o sítio certo, pegando numa G3 com dilagrama, disparando esta no mesmo sentido, tendo feito três mortos confirmados e uma série de feridos. Conseguiu reorganizar o grupo de combate, tratar dos feridos e impedir o roubo de mantimentos. Foi uma situação de heroicidade, minimizada pelo próprio, sempre com o espírito de humildade, mas que não passou despercebida aos seus superiores, que após os inquéritos militares de averiguação, comprovaram a bravura e o desapego da sua vida debaixo de fogo e a reação combativa perante o fogo inimigo e ainda pela captura de armamento, fardamentos, mapas de objetivos a atacar e mais uma série de detalhes tudo entregue no batalhão de Bambadinca, inclusive os três cadáveres.”

É condecorado com uma cruz de guerra de 1.ª classe em 10 de junho de 1970, subiu dois postos para 1.º sargento. Como prémio, ficou adstrito ao Batalhão de Intendência em Bissau. Mantém a negociata em Bambadinca, graças ao 1.º cabo Narciso, o Jordão Ribeiro mantém o correio em dia para a madrinha, para a Rosa, para a Dra. Mélita, para o patrão e para o padrinho Eleutério. Jordão ganha igualmente a vida a escrever aerogramas para familiares de camaradas que tinham grande dificuldade na escrita, a troco de 25 tostões. Monta escritório na 5.ª Rep, um dos cafés mais conhecidos de Bissau, aí ganha 25 pesos todas as noites no negócio da escrita; alicia altas patentes para as miúdas do Chez Toi; é pontual no serviço, passa a ser encarregado para chefiar o depósito das bebidas alcoólicas mais caras e da cosmética, reforça a sua primeira ligação com o cabo Narciso, tudo com base nas faltas e quebras; torna-se figura incontornável das unidades militares, é estimado pelos favores que presta; a juntar a tudo isto, foi-lhe proposto ser o agente de ligação nas marcações de viagens TAP para os militares do Leste que se deslocavam à metrópole, mais uma receita.

Jordão desloca-se sempre de Jipe, o seu condutor é Bacar Baldé, um antigo pisteiro da zona de Nova Lamego, torna-se no seu homem de mão; o 1.º cabo Narciso vem para Bissau, há um jantar de arromba no Solar do Dez; com o 1.º cabo Narciso em Bissau alastra a teia de favores, o Jordão só pensa em multiplicar os seus negócios quando regressar à metrópole. Nas suas meditações, Jordão Ribeiro orgulha-se de ter servido a sua Pátria comandado por um grande militar, Spínola, a Guiné vivia um progresso a todos os tipos notável, Spínola tinha impresso uma maneira diversa de fazer a guerra, aspirava a que a Guiné ficasse federada a Portugal, integrada numa comunidade lusófona.

Em finais de abril de 1971, chegou a hora do regresso, Jordão quer levar consigo colaboradores leais Ana Carolina, Bacar e a sua Mariama, o 1.º cabo Narciso. Vai recomeçar a vida civil, a Jordão cumpre o dever de satisfazer as amantes da Invicta, depois apresenta-se nos armazéns de ferragens na Rua do Almada, o patrão Pires confessa-lhe que quer sopas e descanso, propõe-lhe a venda de um negócio. O Jordão vai ao Banco Borges & Irmão para apurar o dinheiro que armazenara em toda a batota e chulice, ficou espantado com os seus 3825 contos. Ajustou-se o preço, Jordão tem agora um negócio instalado no Porto. Veremos seguidamente que a batota é imparável, não há 25 de Abril que a demova.


Coluna de reabastecimento. Travessia da ponte destruída pelo IN num rio próximo de Bissorã.
Fotografia de António da Silva Pinheiro, CCAÇ 1419, com a devida vénia
Contuboel. Imagem retirada do nosso blogue

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 22 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27142: Notas de leitura (1831): Para melhor entender o início da presença portuguesa na Senegâmbia (século XV) – 7 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P27150: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (43): Oficial e cavalheiro


Contos com mural ao fundo (43) > Oficial e cavalheiro


por Luís Graça


Nada como não pensar em nada. Em fim de tarde. No pico do verão. O céu de chumbo. O ar carregado de eletricidade.

Vai trovejar, pensaste tu. Vem aí uma carga de água... Ou antes viesse. Um dilúvio. Daqueles que costumam desabar sobre o incauto turista em meados de setembro.   Limpavas a merda toda. A alma. A culpa. A dúvida. O nojo. O carro que acabava de atravessar meio Alentejo. O trigo já ceifado. A terra ressequida, crestada como a tua pele. Os chaparros sob stress térmico. Torturados.

Limpavas a tua cabeça cheia de ideias negras. O teu corpo ainda dorido das picadas dos mosquitos. A merda toda da Guiné. Que a água ferrosa, pegajosa, salobra, não lavava.  

Ainda mal sabias verdadeiramente o que era a chuva. Tropical. No tempo dela. A noite inteira. Tu,  todo ensopado até aos ossos. Um fantasma enterrado no poncho camuflado. Em bicha de pirilau. Mal descortinando o homem da frente. O trilho iluminado pelos relâmpagos.

Não pensar em nada... Confiar no homem da frente. Que maquinalmente abria o caminho. Na noite de breu. A catana numa mão. A pica noutra. A G3 a tiracolo. Não, não era milícia nem militar. Apenas um civil, antigo caçador, contratado pela tropa. Para a difícil função de guia e picador. Tinha faro de cão para as minas, o sacana. Franzino,  seco de carnes, de baixa estatura. Como convinha a um "rafeiro", como ele. 

As imagens do mato perseguiam-te. Mesmo de férias. A milhares de quilómetros de distância... "Há quanto tempo, Malan ?".. Nem ele sabia. Desde que havia guerra. Sempre houvera guerra no seu "chão".  A Guiné não existia. Era um mosaico de "chãos". Fula, balanta, mandinga, biafada, manjaco, papel...

Ouviu, ainda, aos homens grandes da sua tabanca, falar do "capitão-diabo". O lendário Teixeira Pinto, que incendiou o Oio em 1913/15. Já o pai do pai do pai do Malan trabalhara para os "tugas".

Desde 1895, pelas tuas contas. Quatro gerações. Mercenários ? "Manga de patacão, Malan ?!"... "Não, alfero, cá misti patacon"... Era apenas uma questão de estar no lugar certo. Ao lado dos mais fortes.  Dos "tugas".

"Certo ou errado, Malan" ? 

Para o Malan, o lado certo era sempre o dos mais fortes. Como tu, afinal. Desde que Alá criara o mundo. E o bicho homem. Mas não dava para falar no mato. À noite, em bicha de pirilau. "Chiu, silêncio" !...A chuva a cântaros. Sim, no regresso ao quartel, na tabanca, sob o velho poilão. "Sim, alfero, Malan já pode falar". 

Ou mais discretamente na messe e bar de oficiais. Gostavas de conversar com ele e manter a sua amizade. Ou, antes, cumplicidade. Muçulmano, crente, guinéu, biafada. Bebia a sua laranjina C com evidente volúpia e prazer. Gostava da garrafa bojuda do refrigerante. "Granada de mão, alfero. Suma mama firme de bajuda". E ria-se.

O capitão não gostava muito destas intimidades. "Promiscuidades", rosnava ele.  Mas a verdade é que  eras tu quem andava com o Malan no mato. Ele conhecia como a palma das suas mãos todo o difícil território do subsetor que fora atribuído à companhia.

Mas sabias que no passado  eram os mandingas, e só depois os fulas e a seguir os "tugas", os donos do chão. E amanhã seriam  outros,  que a história é o soma-e-segue -come-e-cala-te. Ele era um obscuro biafada. Um "cão rafeiro". Sabia lá o que era a história.  E estava longe de suspeitar sequer que em 1974 os novos senhores da guerra iriam pôr a sua cabeça a prémio. No novo faroeste que em que se transformaria depois aquela terra. Com caça aos "cães  dos colonialistas" e julgamentos populares...

Recuas no tempo. Julho de 1970. Fazes um esforço danado para reconstituir, de memória, essas já tão longínquas quanto dececionantes  férias de verão. Há um apagão na tua memória que persiste. As primeiras férias a que tiveste direito pagas pelo Estado- patrão.  Passadas a 4 mil quilómetros de distância do teu local de trabalho. Esses dias (trinta e cinco) evaporaram-se. E deixaram-te um gosto amargo na memória. Ainda hoje. Não foram as férias que tanto idealizaste.

Dizes bem, local de trabalho. O teatro de operações. Lá onde era a guerra. Na província portuguesa da Guiné. Em guerra, há sete ou mais anos. Nem sabias desde quando, ao certo. Muito menos porquê. Até te pagavam para defender a Pátria. Nunca contestaste. Ensinaram-te a cumprir ordens. "Para já safas o pêlo. O teu e o dos teus homens".

Tinhas chegado há menos de nove meses. O tempo que levaste a ser parido. Acabavas de fazer 23 anos. Aprendeste a fazer contas. A trabalhar com números. A fazer cálculos.  Querias ser contabilista. O teu pai, preocupado com o teu futuro, achava que podias  vir a trabalhar nos estaleiros. Como apontador de obra,  para começar. Nos estaleiros de construção e reparação naval.  E depois nos escritórios. Envidraçados. Com ar condicionado. O teu pai não passava de um simples estivador. Com 50 anos estava "velho, arrumado, acabado".  Não querias a vida dele. Nem ele queria a vida dele para ti.

Não, não te ensinaram a pensar. Na Escola Industrial e Comercial de Setúbal. De preferência não penses em nada. Só em coisas boas. Frívolas. Banais. "O que é o tacho na messe quando regressares ao quartel ?"... Ou: "quantas semanas faltavam para as férias ?"... Gajas não havia. "Sim, meu capitão.  Compreendido, meu capitão. O meu capitão é que sabe"... Ou ainda: "Vamos a eles, rapazes!"

Com um jeitinho do 1º sargento (um homem velhaco e temido) e do capitão, talvez conseguisses ainda, em 1971,  obter uma segunda licença de férias. A comissão de serviço terminava em fim de agosto. Se tudo corresse bem. Se lá chegasses. Bem rezava a tua avó. Que fora operária da indústria conserveira. E a tua mãe, que era doméstica. Rezavam a Nossa Senhora de Fátima para regressares são e salvo. O teu mano, esse, já não rezava. Já cumprira a parte dele em Angola. Em 1964. E safara-se, como tu haverias de safar-te. 

Tu nunca foras lá muito de rezar. Mas  imaginavas que a Santa também estivesse muito ocupada. Sobretudo aos dias 13. De maio a outubro. Com tantas peregrinações, súplicas, preces, cunhas... Sobretudo naquela altura em que o país estava em guerra. Com tantas promessas. Os santos só eram precisos nas dores e aflições. No parto e na morte.

País em guerra ? Quando chegaste  ao aeroporto de Lisboa, no início de julho de 1970, pareceu-te que estava tudo tranquilo. Mais tranquilo do que quando partiras do Cais da Rocha Conde d'Óbidos, em outubro do ano anterior. Nunca tinhas visto tanto "patacão". Nunca se construira tanta casa (e também tanta barraca à volta e dentro de Lisboa e Setúbal).

O teu mano tinha ido,  pela primeira vez, passar férias ao Algarve. À Quarteira.   A mulher, professora primária e a filhota. Um privilegiado. Já com o seu Fiat 127. Pago em notas de conto. Novo, no stand. Sessenta e tal  notas, escreveu-te ele num dos primeiros aerogramas.

E os teus soldados, esses, também já não rezavam. Já não iam a missa. O capelão visitava esporadicamente o aquartelamento. Quando havia coluna. Muito do pessoal era do sul. Alguns nem batizados seriam. Mas rezavam debaixo dos lençóis. À noite ouvia-os a cochichar. Outros a tocar à punheta. Quando fazias ronda aos abrigos, e em especial ao do teu pelotão. E tinham fios de ouro ou prata, com crucifixos e medalhinhas de Nossa Senhora de Fátima. Os africanos das milícias também usavam amuletos. Não vias diferenças. "Quem tem cu, tem medo", resmungava o teu pai. Sem grande jeito para te animar. 

À despedida para Lisboa onde foste embarcar, ele não compareceu. Tinha de ganhar a vida. Só o teu irmão. Que trabalhava num transitário, ali perto no Cais do Sodré. Foi um abraço rápido. A partida de tropas para África tornara-se uma coisa banal. Ele já tinha passado por isso. Como de resto o teu pai, que tinha estado na Ilha do Sal, na II Guerra Mundial. 

Tu também não rezavas. Mas "tinhas fé". À tua maneira. Nunca andaste na catequese. Foste menino de rua. Mas a tua mãe ensinou-te o "Pai Nosso" e a "Avé Maria". Dizias aos teus homens: "A fé move montanhas". Não eras lá muito bom a fazer discursos. A levantar o moral. Bastava-te o exemplo, seguias à frente dos teus homens. Eras de poucas falas. Não tinhas a lábia do teu mano. Um gajo com sorte com as miúdas. Tu, não. Nem sorte ao jogo nem  aos amores.  Ias tendo sorte na guerra, vá lá . Repetias as frases feitas, "a sorte protege os audazes", "a Pátria vos contempla", "mais vale perder um minuto na vida do que a vida num minuto"...Ah, e "um homem não chora". Frases estafadas.  Nisso, eras um tosco. 

No curso de "ranger", em Lamego, não te quiseram nos "comandos". Ficaste  sempre a remoer essa sacanice. Porquê? Só porque tinhas vindo do CSM  ?  Foste para o COM por mérito.  E a comandar homens no mato eras melhor do que o "caixa d'óculos", ou o "padreco".  O único, dos alferes da companhia, que te podia pedir meças, era o do 3º pelotão. Era bancário. Um gajo teso. E disciplinador. Infelizmente acabava de ir para uma companhia africana. Tal como dois furriéis e vários praças.

Acabaste, miseravelmente, por ir parar a uma companhia de "tropa- fandanga". Tu que sempre te bateste ao crachá de "comando". Era a melhor alegria que podias dar ao teu velho. Nunca soubeste quem te tramou.

Segundo azar o teu: nem sequer todos os gajos da companhia eram de cavalaria. Havia ali filhos de muitas mães.   E depois não entendias a política de gestão de pessoal. Como é que o nosso general Spínola queria ganhar a guerra? A manta era curta. Para se pôr num lado (equipas de reordenamentos, graduados para as companhias africanas, etc.), tinha-se de tirar ao outro lado.

Nunca ousaste comentar estas contradições da política "Por a Guiné Melhor", com o teu capitão. Que era assumidamente spinolista. Aliás, um incondicional do general. E ambos da arma de cavalaria. Não, não era um homem de trato fácil. Cultivava a distância e a frontalidade. Tratava toda a gente por tu. E pouco se sabia dele. Tinha o seu arranjinho com a lavadeira. "Um homem não era de pau". Toda a gente sabia mas ninguém comentava. 

Férias, disseste tu ?!...    

Na Guiné sentias-te encurralado. Tinhas claustrofobia. Não suportavas viver dentro do arame farpado. Preferias andar no mato, apesar dos riscos acrescidos. Eras o alferes com mais saídas para o mato.

Dizes bem... A tropa e a guerra. Durante três anos e tal. Eras pago para fazer a guerra. Tinhas direito a um mês de férias na metrópole. Nada mau... Se te portasses bem. Leia-se, se não apanhasses uma porrada. Estava tudo previsto no Regulamento de Disciplina Militar. O famoso RDM. Por exemplo, ao fim de oito dias de ausência não autorizada eras dado como desertor. Nada mais desonroso para um militar do que ser dado como desertor. E pior ainda, ser preso e punido num tribunal de guerra.  Com o Spínola a esbofetear-te em público, na parada, e arrancar-te os galões. Estás a imaginar a  cena.

Tinhas um mês para decidir se voltavas. Será que querias voltar ? Admites hoje (mas nunca falaste disso a ninguém) que nessa época chegaste a ponderar essa hipótese, a de desertar. Ou melhor, não voltar. O que ia dar ao mesmo.   Vagamente. Sem grande convicção. Eras demasiado "atado" para te meteres numa embrulhada dessas, censurava-te o teu pai. Ele bem poderia, se quisesse,  ter-te escondido  no porão de um navio que zarpasse para a Europa. Com alguma cumplicidade da tripulação, e do pessoal da estiva do porto de Setúbal. Mas sempre recusaste essa ideia. Afinal, eras um "ranger". Afinal, eras um oficial do Exército português. Sempre tiveste orgulho na tua farda.

 Contavam-se pelos dedos, os desertores e os prisioneiros. Se a guerra fosse impopular, teria havido muito mais refratários e desertores. E as cadeias estariam cheias. Mas, não, a malta da tua geração aguentou a canga em cima do pescoço. Tal como os bois do teu avô materno, que era um pequeno seareiro do Montijo.

Claro que a guerra era impopular. Não havia guerras populares. Argélia, Vietname... ?  Sabias pouco, mas tinha havido ou havia mais contestação. Em França. Na América. Um pouco por todo o lado. 

Quem vai à guerra, está sujeito a lá ficar. Pelo menos sem um braço ou uma perna. Mas não era assim tão odiada a guerra da Guiné. Como queriam fazer crer alguns. Que eram do contra. E que eram poucos no teu tempo.

"Vais para o Ultramar ?!"... Era uma fatalidade. A malta encolhia os ombros. Toda gente vai, lá terá que ser. E, afinal, por que razão é que terias de desertar ? Com sorte haverias de escapar. Em cem morria um. E se desses o "salto", irias fazer o quê ? Lavar pratos, limpar o cu a meninos, alombar com baldes de cimento e tijolos ? 

"Agora deixa-te estar quieto, já que chegaste até aqui. As velhas rezam por ti", segredava-te o teu velho ao ouvido, quando lhe foste dar um abraço à chegada, de férias. 

Foras incumbido de levar parte do espólio de um dos teus soldados, morto por acidente com arma de fogo. Pouca coisa. Um gajo morto cabia numa caixa de sapatos: objetos pessoais como o fio de ouro, o relógio, uma medalha com a foto da mulher e do filho, documentos  de identidade, fotografias, cartas e aerogramas, um porta-moedas, algum dinheiro...

O resto (a mala com a roupa, etc.) já tinha seguido, pelas vias normais, para o Depósito Geral de Adidos, na Ajuda.

O capitão não era um militar de usar "paninhos quentes" nem "falinhas mansas". Era tropa, e bastava.  E para mais de cavalaria.  Falava feio e grosso. Foi direito ao assunto. Tratava-te por tu e por "ranger".  

− Ó "ranger", vais de férias, vais ter que levar uma carta a Garcia...

Parece que adivinhaste, mesmo não conhecendo a expressão:

 − ... à família do A... ? Ser o mensageiro da morte ? Mas agora para dizer o quê ?

− Cala-te, o mais duro está feito: o nosso cabo está morto e enterrado. A família já fez o luto. Já se passaram três meses.

− Mas..., qual é então a minha missão ?

 − Levar a caixa com os seus objetos mais pessoais, pouca coisa. E relatar sucintamente as circunstâncias da morte. Claro,  apresentas as minhas condolências pessoais à viúva e aos pais, os votos de pesar de todos os seus camaradas.

O capitão sabia-a toda. Afinal tu eras o seu "homem de confiança".  Eras o comandante do A... Fizeras o auto de averiguações. E eras um "ranger"... Foras treinado segunda a divisa: "Ninguém fica para trás. Nenhum camarada. Vivo, ferido ou morto".

O A... viera num caixão de chumbo. Já a expensas do Estado. Mas não sabias  como irias encontrar a família, no Baixo Alentejo. E tinhas uma vaga ideia, pelos teus contactos em Setúbal, com malta alentejana, que o luto podia durar um ano. As pessoas vestiam-se de preto. E durante esse período abstinham-se de ir a festas e a bailes. Até mesmo de entrar na taberna.

Podias recusar-te ou pedir escusa da missão ? Afinal, a tropa tinha os seus próprios canais burocráticos para realizar este tipo de missão, cuja delicadeza não era suficientemente valorizada pelo capitão. E depois, na prática, eram dois dias perdidos das tuas preciosas férias.

Ainda hesitaste:

− Porque não o capelão do batalhão, meu capitão ? Vai de férias, a seguir a mim, segundo me confidenciou.  Como sabe, chegámos a dormir no mesmo quarto quando estivemos juntos com a CCS, na sede do batalhão... Ficámos amigos. E depois, ele que é padre, saberá encontrar as palavras certas para consolar a viúva e os pais do A...

− Nem penses nisso !... Sabes bem que eu não tenho confiança nele!... − disparou o capitão, visivelmente irritado contigo.

E prosseguiu:

 − Nem tenho a certeza se ele quer voltar de férias. Andamos de olho nele. Se não voltar, também não faz cá falta nenhuma. É menos uma boca a comer e menos uma esponja a beber. Mas estará metido num sarilho: terá o bispo, a tropa e a Pide à perna.

Não tiveste coragem de  discordar do teu superior hierárquico. Ele não estava irritado, estava "piurso"!... A alusão ao capelão tinha sido extremamente infeliz da tua parte. 

 Eles não morriam de amores um pelo outro. Tudo começara  com a viagem no "Uíge". E por causa de uma homilia, dita no convés , que não caira bem no comando do batalhão. O capitão deixou de lhe falar. 

Mas tu tinhas que ser coerente e cumprir o teu dever . Mesmo que a missão fosse desagradável. Afinal, eras um oficial. Mas não de relações públicas. Eras um operacional. O comandante do A..., mais do que isso,  o segundo comandante, o comandante de 150 homens na ausência do capitão. Não eras nenhum merdas. Eras um "ranger". O teu pai tinha orgulho em ti. Ele tinha servido na ilha do Sal como expedicionário durante a II Guerra Mundial". Fora mobilizado pelo RI 11, de Setúbal. Muita sede e fome lá passou, coitado do velho.

Pensando bem, até então não tinhas sido nada na "puta da vida" (a expressão era do teu pai de quem não dizias a ninguém que era estivador, e que falava mal como um carroceiro). Agora, sim, "eras gente". Mas ir de Setúbal até ao Baixo Alentejo, ao monte onde vivia a viúva do A..., com os sogros,  era um esticão de carro. E ninguém te pagava a gasolina. Nem ajudas de custo. As estradas em 1970 não eram as que são hoje. Tinhas um Mini Austin, comprado em segunda mão ao teu mano (que era mais velho), com o primeiro patacão que ganhaste na tropa e na guerra.  

Tinhas tirado a carta em Bissau. E a pouca prática de condução que tinhas, era com o jipe da companhia.  Em estradas de terra batida. Era também um desafio ir de Setúbal até lá baixo, já nas faldas da Serra do Caldeirão. Sítios aonde nunca tinhas ido antes.

Pior que tudo seria enfrentar a pobre viúva que acabara também por perder o filho com três meses.  Para não falar já dos pais do A... Não sabias se ele tinha irmãos. Aliás, era um rapaz de poucas falas. Metido consigo mesmo. Pouco sociável. Chamavam-lhe o "Chaparro". Soubeste da perda do filho por ele. Pensas que nunca superou o desgosto. Mal o conheceu, é certo. Mas tinha muito orgulho na mulher e no filho.

O que lhes irias dizer, à viúva e aos pais  ? A verdade nua e crua ?... Que o A ...tinha morrido num estúpido acidente com arma de fogo ?!... Isso eles já deveriam saber pelo telegrama que terão recebido na altura... Não sabiam eram os pormenores macabros.

Felizmente, tinhas conseguido, em resultado do auto que tu próprio elaboraras, que o acidente tivesse sido considerado em serviço. A viúva iria ter direito a uma pensão de preço de sangue. O que era uma ajuda para recomeçar a vida. E isto enquanto não se voltasse a casar. Ias-lhe dar a novidade. Não sabias de quanto seria a pensão. Talvez de uns 400 a 500 escudos, naquela época.  "Porca miséria!", pensas tu hoje. Septuagenário.

Só te deste conta dos espinhos da missão quando já vinhas a caminho, no avião da TAP. Era tarde de mais para te recusares.  O capitão estava incontactável. Na época não havia telemóveis.  Os dados estavam lançados.

Indiferente ao teu pequeno drama pessoal (ir ou não ir levar a "carta a Garcia"), um grupo de gajos (à civil, mas seguramente militares em gozo de licença de férias) não paravam de chamar as "boazonas" das hospedeiras... Para mais uma rodada de uísque!

Era uma ordem do teu capitão, mesmo que não fosse por escrito. E, mesmo de férias, tu continuavas a ser um militar. A comunicação na tropa era clara, concisa e precisa. Às vezes até demais. Telegráfica. Burocrática. Impessoal. E, no limite, desumana. 

Pediste também uma bebida. Um gin tónico. Tinhas uma secura danada na garganta. A verdade é que o A... não morrera em combate. Como um herói. Não morrera pela Pátria. Fora morto estupidamente numa zaragata de caserna. Numa altercação de bêbedos. (Não escreveste isso no auto:  com o A... a defender a honra da mulher que, pelos vistos, era um rapariga alegre e vistosa. Algarvia do Barrocal.)

As testemunhas-chave foram o B... e o C... Engalfinharam-se os dois, o A... e o B... Caíram a rebolar no chão, com o A... empunhando a G3 e o B..., por baixo dele, a tentar desarmá-lo.

O A... era um dos teus melhores operacionais. Com ele, a HK 21 nunca encravava... Tinha um bom municiador, é certo, mas era muito cuidadoso com a sua "algarvia", como ele chamava à metralhadora ligeira de fita que lhe estava distribuída.

O B..., que era do 4º pelotão, o do "padreco", não foi dado por culpado, embora tivesse sido ele a insinuar que a mulher do A... teria sido vista a dançar com outros, "feita galdéria" ( sic), numa festa da vila... O que era de todo inverosímil. Ela estava de luto, pela perda do filho. E tinha o homem no ultramar.

Brincadeira de mau gosto ? Piada de caserna ? Ciumeiras antigas ? Cio e luta de machos ?

O B... era de uma freguesia vizinha do A... Os dois eram conterrâneos. E já se conheciam quando foram formar companhia em Estremoz. O B... jurou-te a chorar, que nem uma Madalena, que era amigo do peito do A...:

 − Éramos como irmãos!... Como é que eu podia querer-lhe mal ?... Enrolámo-nos à porrada por causa da estúpida da guerra!... Andamos todos almareados... Ele andava completamente transtornado da cabeça, desde que o filhinho lhe morrera... Juro, meu alferes, que não tive culpa nenhuma!... Tentei apenas arrancar-lhe a G3 para ele não cometer nenhuma asneira.

A verdade é que acabou tudo em tragédia. Conhecendo o A..., ficaste na dúvida se ele não terá querido mesmo fazer justiça por suas próprias mãos. Mas os depoimentos de quem viu a cena, na caserna, a uma razoável distância da cama do A..., eram inconclusivos. Na dúvida, optaste por inocentar os dois contendores.

E acabaste, em 1970, na tua vinda à metrópole por assumir, "por piedade e, vá lá, por camaradagem", a ingrata missão de levar o espólio (ou a parte mais íntima do espólio)  do A... à família. Mais uma carta do capitão.

Desconhecias o conteúdo da carta do comandante da companhia. Ficaste "entalado", quando deste com o envelope fechado. E se as duas versões, a tua e a do capitão, não batessem certo ? O capitão certamente por lapso não te chegou a falar sobre o que devias dizer à família e, em especial, à viúva.

O que iriam pensar aquelas pobres criaturas ? Ficaria a dúvida, a suspeição, quiçá o ódio contra a tropa, ainda a latejar  no coração daquela pobre gente que há três meses acabara de receber um telegrama seco, desumano, a dar a notícia  da morte do seu ente querido, lá longe, na Guiné ?!... Que eles nem sabiam onde ficava.

Tiveste que abrir, com muitas cautelas, o envelope  e inteirar-te do conteúdo da carta. Afinal, o que o capitão escrevera, era lacónico, banal e sobretudo impessoal. Era apenas o elogio do "homem íntegro", do "militar brioso" e do "grande português", não respondendo a eventuais e legítimas dúvidas dos familiares sobre as trágicas circunstâncias do acidente. 

Por certo que a jovem viúva iria querer saber como tinha morrido o marido. E onde, e quando, e porquê. E mais: queria saber se tinha murmurado o seu nome e o do seu filho, antes de dar o último suspiro. E se tinha sofrido muito antes de morrer... Enfim, tinhas que estar preparado para todas as possíveis perguntas da viúva e dos pais. Iriam perguntar pela certidão de óbito, de que tu não trazias cópia nem estavas autorizado a dar pormenores. Iriam inundar-te de perguntas sobre o comportamento dele naqueles escassos seis meses de permanência na Guiné. Se estava magro ou gordo, se comia bem, se andava triste ou alegre...

Embora fosse gente pouco letrada (os pais do A... nem sequer sabiam ler nem escrever), a viúva pelo menos teria a 4ª classe e  achar-se-ia no direito de saber tudo sobre a morte do marido. 

Estavas com receio de não estar à altura de  desempenhar esta delicada tarefa... Reconhecias que o Exército era "parco" na comunicação com os familiares, em casos de morte ou ferimento grave de um militar. "Parco" ? Avarento nas palavras, frio nos gestos.

E depois tu não sabias se, eventualmente, por intermédio de amigos, conhecidos ou conterrâneos, eles não estariam  já de posse de mais pormenores sobre o acidente... As más notícias chegavam sempre depressa. Farias figura de parvo. Tinhas que estar preparado para todas as hipóteses, perguntas, cenários...

No final da carta, o capitão depois de reforçar os seus "sentidos pêsames pessoais", transmitia também os do exército, do comandante do batalhão e até do próprio general António Spínola, "governador e comandante-chefe do CTIG", isto é, da Guiné. 

No último parágrafo, manifestava a sua intenção de louvar o 1º cabo A..., a título póstumo, por feitos em combate na Operação X...

Não deixaste a "ingrata tarefa" para o fim das tuas férias. O "berbicacho", como disseste lá em casa aos teus pais, intrigados com a tua agitação.

Logo no primeiro fim de semana, a seguir à tua chegada, decidiste levar a "carta a Garcia".  A morada era a que constava no processo do A... Não era muito precisa, estaria incompleta. Tiveste que passar, sábado, ainda de manhã, pelos correios da vila. O carteiro fez-te um croqui do monte onde a família do A... vivia. Não era longe, mas a estrada era péssima e poeirenta. Era terra batida, como nas picadas da Guiné. Não foi bom para a suspensão do teu pobre Mini.

Bateste à porta. Mas já os cães haviam dado conta da presença do intruso. Sempre odiaste cães. Felizmente não andavam à solta. Alguém, de súbito, espreitou  pelas cortinas da portinhola. Dois olhos negros e grandes como tições, fotografaram-te. Uma jovem mulher, vestida de preto, entreabriu a porta. Tinha traços típicos das mulheres do povo da região. Olheiras fundas. Pareceu-te curiosa e assustada ao mesmo tempo. 

Vinhas... fardado!... O boné com pala. Os óculos escuros,  Ray-Ban, devem tê-la intimidada!... Claro, era a viúva. Só podia ser. E tu eras o "mensageiro da morte"... Ela percebeu logo que era alguém da tropa. Que vinha por causa do marido. Abriu a porta devagar, cautelosa...

Casa rural. Modesta. Limpa. Um centenário pinheiro manso dava-lhe sombra. E era uma das referências que te dera o carteiro...
 
Oficial e cavalheiro, estendeste-lhe a mão depois de, estupidamente, lhe teres batido a pala. Não correspondeu ao teu gesto. Mais por timidez do que por descortesia. Mandou-te sentar numa cadeira de verga. Só havia uma. E ela mesmo sentou-se numa banqueta, junto à  lareira, a dois metros de distância. Recatada. E ligeiramente ofegante.

Sem grande palavras, deste-lhe a pequena caixa de cartão com os objetos pessoais do defunto. Os de mais valor... Entre eles  um aerograma que o A... não chegara a ter tempo  de pôr no correio. (E que tu devias ter lido antes de lho entregar, mas achaste que não tinhas esse de direito; nem sequer constava do auto.)

Leste a carta, seca, do capitão... O rosto dela, impassível. Nem uma lágrima. O silêncio estava, porém, a tornar-se pesado e intolerável. Não havia mais ningém na casa. Os sogros estavam fora, voltavam na segunda feira seguinte. 

A desgraçada não conseguiu acabar de ler o rascunho do aerograma do marido. Deu um grito lancinante de dor. Começou a chorar, sufocada. Acabou num pranto, arranhando a cara e puxando os cabelos.

Ficaste sem pinga de sangue. Não sabias como agir. Pegaste no aerograma que ela deixara cair no chão.  Num ápice deste conta que o A... tinha sido  cruel e injusto, no que escrevera... O marido, numa crise de ciúme patológico, declarava, preto no branco, que ela lhe era infiel. E acusava-a da morte do filho. 

De repente pareceu-te que ela ia desfalecer Fizeste um gesto para a amparar. Foi então que ela se agarrou a ti como uma lapa à rocha, na iminência da tempestade.

 − Cabrão...ão...ão...!!!... Eu aqui que nem uma monja à espera dele!...  E ele a dar ouvidos àquela gente bera, que só nos queria mal!

Tiraste um lenço do bolso para lhe enxugar as lágrimas... Não sem algum esforço, conseguiste sentá-la na cadeira de verga. Desapertaste-lhe a blusa de flanela no colarinho. Correste à cozinha para lhe arranjar um copo de água.  Havia uma pequena bilha de barro com cocharro em cortiça. Amparaste-a sob as tuas pernas.  Deste-lhe de beber. 

 − Por favor, agarre-me, abrace-me, beije-me...que eu vou morrer!... 

Puxou-te com toda a força bruta de uma jovem mulher, viúva de vinte anos. As unhas cravadas nos teus braços. Procurava  desesperadamemte os teus lábios.  Era de pequena estatura, só te chegava ao peito. 

 ... O resto tens pudor em contar. Porque se calhar não terá sido  inteiramente digno de um oficial e cavalheiro. De alguém que estava ali a representar o Exército português. Numa missão humanitária. 

Esta história nunca mais te saiu da cabeça. Nem muito menos quando foste para Moçambique, já como capitão, em 1973, a comandar uma companhia. Para o Niassa. Embarcaste no avião. Tentando não pensar em nada. Numa noite de verão. Tinhas 26 anos. E terias tido a benção do teu pai, se ele ainda fosse vivo.

_________________

Nota do editor:

Guiné 61/74 - P27149: Felizmente ainda há verão em 2015 (23): quando éramos sexagenários e ainda íamos, em 2007, de "bike", a Santiago de Compostela, santo da nossa devoção (Paulo Santiago, amante de desportos radicais)






Catedral de Santiago de Compostela, 23 de agosto de 2006


Foto (e legenda): © Luís Graça  (20o6). Todos os direitos reservados [Edição:  Blogue Luís Garça & Camaradas da Guiné]



1. Voltamos a reproduzir aqui a mensagem do nosso 'radical' Paulo Santiago, de  sexta feira, 29 de junho de 2007 (há dezoito anos!), depois de ter chegado  de "bike",  a Santiago de Compostela, santo da sua devoção, seu patrono e protetor. Até 2013, já tinha 8 verzes o "caminho", a pé ou de bicicleta.

A mensagem de 2007 era dirigida ao nosso camarada Vitor Junqueira, médico, organizador do II Encontro Nacional da Tabanca Grande, em Pombal, em 28 de abril de 2007.

[ o Vitor Junqueira foi  alf mil inf,  CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá ,1970/72); 

Paulo Santiago
tem 73 referências no blogue; o Paulo Santiago, que vive em Águeda,  foi alf mil inf,  cmdt Pel Caç Nat 53 (Saltinho, 1971/73); tem cerca de 200 referências no nosso blogue; ambos são dois históricos da Tabanca Grande]:

Caro Vitor: 

Cheguei ontem, quinta feira, dia 28  junho de 2007,  às 13.00 horas (em Espanha) a Santiago de Compostela. Levei em conta os teus conselhos clínicos.

Quatro dias antes da partida comecei a tomar meio comprimido de meteformina (500 mg).

No sábado, 23, dia da partida para Astorga, não tomei nada. 

Domingo, 24, tinha em jejum 118. Como me aconselhaste, bebi muita água, ía comendo bolachas, macarrones e outros hidratos de carbono. Só um dia, segunda eira, 25, nestava em jejum com um valor, 132, que se aproximava dos valores indicados por ti, possivelmente devido a umas cervejolas bebidas domingo à noite em Ponferrada.

Nos restantes dias, apesar de ao jantar comer umas entradas seguidas de bife ou "chuleta", acordava com valores próximos (para cima ou para baixo) de 110. Bebia sempre um copo de Rioja ao jantar.

Mudando de assunto. Foi uma experiência rica, esta minha expedição, num terreno muito acidentado ( na 2ª feira, 25, a determinada altura o GPS indicava uma altitude de 670 metros, faltando 9 km para chegar ao destino marcado, para aquele dia, o Pico do Cebreiro a 1300 metros) .

Imagina a inclinação que era preciso vencer numa distância tão curta. Levava uns alforges na bike que pesavam à volta de 10 kg (câmaras de ar, elos de corrente, vestuário de ciclismo, vestuário para vestir no fim da etapa, artigos de toilette, etc).

No cimo estava um vento com um frio agreste, e, para vestir, estamos no verão, levava uns calções, t-shirt, camisola de algodão e uns sapatos vela. Consegui comprar umas meias numa "tienda", calças não havia, passei imenso frio naquela noite, o que não me impediu de ir à Net passar os olhos pelo nosso Blogue (é a rotina diária).

No dia seguinte, terça feira, dia 26,  continuava o frio e estava uma nevoeirada lixada, começando com uma imensa descida. Foi de enregelar, a minha colega de aventura ficou com feridas nas orelhas. Tive de comprar em Sarria, numa loja de bicicletas, um casaco térmico, semelhante a um que uso no Inverno.

Mais uma vez, confirmei que uma das coisas que a guerra me deu foi uma grande rusticidade e grande capacidade de sofrimento físico. Mesmo com frio bebia sempre mais de 3 litros de água.

Para terminar, digo que fiquei satisfeito com esta aventura, emocionei-me quando cheguei ao fim dos 255 km, em Santiago, e espero entrar noutra, numa próxima oportunidade. 

Apesar de sexagenários, com calma, nós conseguimos. (**)

Um abração do
Paulo Santiago
 
(Revisão / fixação de texto, negritos, título: LG)

______________


(**) Vd. poste de 3 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27085: Felizmente ainda há verão em 2025 (8): Santiago de Compostela não é apenas uma questão de bike...terapia (Paulo Santiago, caminheiro e amante dos desportos radicais...)

domingo, 24 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27148: Felizmente ainda há verão em 2025 (22): Em Angola, nem todos os sobas eram regedores e nem todos os regedoreseram sobas


Foto de capa da página do Facebook do FAAT-Fórum Angolano das Autoridades Tradicionais (com a devida vénia...). A página foi criada em setembro de 2021 mas parece não estar ativa.  

"Quimbo", ou sanzala, no português de Angola, é o equivalente a tabanca (na Guiné): conjunto de casas que formam uma aglomeração rural (termo que vem do quimbundo, kimbo).



1. Angola, a joia da coroa do "império colonial português" (no tempo do Estado Novo), merece que o blogue da Tabanca Grande fale dela de vez em quando. Tem, de resto, mais de 600 referências... Afinal, fomos parar à Guiné...por causa de Angola!... 

O tema de hoje,  ainda em pleno verão (*), é sobre:


Sobas e Regedores: Autoridades Coloniais Locais, em Angola


António Rosinha, Patrício Ribeiro, Fernando Ribeiro, Jaime Silva, João Rodrigues Lobo e "outros angolanos" da Tabanca Grande não precisam de ser convidados: a vossa experiência vivida de Angola dá-vos autoridade para "meter a vossa colherada"  na discussão deste tema que também interessa aos "amigos e camaradas da Guiné"...

É um tema da área da antropologia e da história da administração colonial... Alguns de nós, como eu, gostariam de saber mais. (**) 

Havia uma diferença semântica e conceptual entre sobas e regedores, na Angola do tempo colonial. Embora muitas vezes fossem usados  indevidamente como se fossem sinónimos. Não são sinónimos. (O termo usado em Angola não era régulo, mas regedor, de acordo com a oportuna chamada de atenção do Fernando Ribeiro; como, de resto, vem consagrado na carta orgânica do Império Colonial Português, Decreto-lei 23228, de 15 de Novembro de 1933).

Na Angola do período colonial, os termos soba e regedor eram frequentemente utilizados para designar as autoridades tradicionais africanas (ou "gentílicas"), mas existia uma diferença fundamental entre eles, assente na origem da figura (e do vocábulo ) e na relação com a administração portuguesa. 

Soba vem do quimbundo "soba"... Essencialmente, soba era a designação endógena e ancestral,  enquanto regedor ou  régulo era a terminologia colonial que implicava uma integração no sistema colonial e na subordinação ao poder português (o termo "régulo"era usado na Guiné e e Moçambique)

O soba era a figura de autoridade tradicional, um chefe que já existia nas estruturas sociais e políticas dos diversos reinos e povos de Angola muito antes da chegada dos portugueses. 

O seu poder emanava de linhagens ancestrais, do controlo da terra e de uma legitimidade cultural e espiritual reconhecida pela sua comunidade. 

Os sobas desempenhavam um papel crucial na:
  • administração da justiça, 
  • distribuição de terras, 
  • condução de rituais;
  • defesa e segurança do seu povo. 

A sua autoridade era intrínseca à organização social local. Existia uma hierarquia entre eles, com a figura do "soba grande", que detinha poder sobre um conjunto de  outros sobas e sobados (territórios governados por um soba).

Por outro lado, sabe-se que em determinadas regiões de Angola há (ou havia no passado) um conselho de sobas que escolhe o soba: noutras a sucessão é (ou era)  realizada por linhagem em que o sobrinho, filho de uma irmã, toma(va) o lugar do seu tio por morte deste. Não sabemos como as coisas se passam hoje, cinquenta anos depois da independência de Angola.

 Por outro lado, o termo régulo, que deriva do latim  regulu(m)  (da palavra regulus, -i, rei jovem, rei de um pequeno estado), ou melhor, regedor,  era a designação que a administração colonial portuguesa atribuía aos chefes locais que eram incorporados na sua estrutura administrativa.

Ao se referir a um soba como regedor (ou "régulo", como , de resto, ainda vem nos dicionários portugueses para agravar a confusao!), o poder colonial não só traduzia a sua função para a sua própria compreensão hierárquica, mas também o diminuía simbolicamente, em termos de estatuto: de líder soberano tradicional, carismático,  passava a "pequeno rei" subalterno...

A transformação de um soba em regedor ocorria, na prática, quando este passava a atuar como um intermediário da administração colonial. As suas principais funções enquanto regedores incluíam;

  • a cobrança de impostos:
  • o recrutamento de mão de obra forçada (o "chibalo") (***):
  •  e a manutenção da ordem, de acordo com os interesses portugueses. 

Em troca, o regedor podia receber certos privilégios ou "honrarias",  como uma pequena remuneração, uniformes ou o reconhecimento e apoio militar da administração colonial contra rivais. 

Na Guiné, uma das formas de captação das simpatias dos régulos, ainda no tempo do governador,  gen Arnaldo Schulz,  era a organização de viagens a Meca, a expensas do Estado português: vd. aqui imagens de Lisboa > Aeroporto > 1968 > Partida de régulos da Guiné para a peregrinação a Meca, depois de visita oficial a Portugal. Vídeo da RTP Arquivos (Noticiário Nacional de 1968 > 3 de março de 1968 > Preto e branco, duração 56 segundos. Sem som.)

É importante notar que nem todos os sobas eram regedores ou se tornaram regedores. Muitos resistiram à dominação portuguesa e foram, por isso, combatidos e, por vezes, substituídos por indivíduos mais dóceis à administração colonial, que eram então empossados como regedores.

Em suma, a principal diferença residia na origem e na legitimação do poder:

(i) Soba:  

  • termo de origem africana, já existente antes da colonização;
  • designava um líder com autoridade tradicional e legitimidade interna na sua comunidade ou grupo étnico, anterior e, em muitos casos, independente do poder colonial;
  • o cargo era hereditário e estava ligado às tradições, linhagens e rituais locais;
  • tinha funções políticas, jurídicas (resolução de conflitos), espirituais e sociais, sendo uma figura central na organização das comunidades.
(ii) Regedor: 
  • termo de origem portuguesa (régulo só se usava na Guiné e em Moçambique);
  • régulo: derivado de regulu(m) e usado em contexto colonial para traduzir ou reinterpretar a figura dos chefes locais africanos;
  • regedor é o que dirige uma regedoria (unidade administrativa, que na metrópole era a freguesia, até 1974);
  • designava um líder local a quem a administração colonial reconhecia e delegava certas funções, inserindo-o na sua estrutura de poder e tornando-o, na prática, um funcionário subalterno do Estado colonial;
  •  não era necessariamente o mesmo que o soba, mas no terreno, muitas vezes, os colonizadores usavam o termo para designar esses chefes;
  • no fundo, era  uma categoria administrativa colonial.

  • o Estado colonial reconhecia oficialmente alguns chefes como regedores e subordinava-os à sua hierarquia, atribuindo-lhes funções de autoridade local no quadro da administração indireta ("indirect rule", dos ingleses).


Portanto, embora na prática um mesmo indivíduo pudesse ser um soba para o seu povo e um regedor para os portugueses, os termos carregam conotações e realidades políticas distintas que refletem a complexa e, muitas vezes, contraditória e tensa relação entre as autoridades tradicionais angolanas e o poder colonial português.

 Em resumo:
  • Soba = conceito autóctone, com legitimidade tradicional;

  • Regedor = conceito colonial, oficializado para fins administrativos, podendo coincidir ou não com a figura do soba.

Muitos sobas foram convertidos em regedores pela administração portuguesa, mas nem todos os régulos eram vistos como verdadeiros sobas pelas comunidades, o que gerava tensões e até conflitos.

Apresenta-se a seguir um quadro comparativo simples  para se perceber melhor a distinção entre soba e regedor na Angola colonial (que passou a ser "província ultramarina" com a reforma de 1951):


AspetoSoba (conceito autóctone)Regedor  (conceito colonial)


Origem do termo
Línguas banto (ex.: umbundo, quimbundo)Português (tal como régulo, derivado de regulu(m) (pequeno rei; o que rege)
Natureza
Cargo tradicional e espiritual, enraizado na cultura local
Categoria administrativa criada pelo poder colonial
Legitimidade
Hereditária, baseada em linhagem, tradição e rituais
Reconhecimento e nomeação pela administração colonial
Funções
Mediação de conflitos, chefia política, autoridade espiritual, guardião dos costumes
Autoridade local no quadro da “administração indireta”, recolha de impostos, apoio ao controlo colonial
Reconhecimento
Pela comunidade, segundo costumes próprios
Pelo Estado colonial, como “autoridade gentílica” oficial
Perceção localFigura respeitada, parte integrante da identidade culturalMuitas vezes visto como uma imposição externa (quando o regedor não coincidia com o verdadeiro soba)


Em suma: 

  • o soba representava a continuidade da tradição, a legitimidade pré-colonial; 
  • o regedor representava a adaptação (e em muitos casos apropriação) dessa autoridade ao sistema colonial.

Vejamos como a distinção entre sobas e regedores afetou as relações entre colonizadores e populações em Angola durante o período colonial:

(i) Administração indireta
  • o Estado colonial português não tinha capacidade para controlar diretamente todas as regiões  (por exemplo Angola, com 1,2 milhões de km2 era cerca de 14 vezes maior que a "metrópole", o "Puto", como lhe chamavam os colonos);

  • por isso, utilizava os sobas já existentes, reconhecendo-os (ou substituindo-os) como regedores;

  • isso permitia que a autoridade colonial chegasse ao nível local através de figuras tradicionais, mas com funções adaptadas aos interesses coloniais (o mesmo se passou com o império colonial britânico).

(ii) Tensões de legitimidade

  • quando o verdadeiro soba era reconhecido como regedor, a comunidade aceitava-o com relativa naturalidade;

  • mas, quando o governo colonial nomeava como regedor alguém que não tinha legitimidade tradicional, isso gerava conflitos internos:

    • uns seguiam o “soba legítimo” (mesmo sem reconhecimento colonial);

    • outros eram obrigados a obedecer ao “regedor oficial”, imposto pela administração.

  • Esse “duplo poder” minava tanto a coesão das comunidades como a própria confiança nas autoridades locais; as suas contradições foram exploradas pelos movimentos nacionalistas que lutavam pela independência.

(iii) Instrumentalização política
  • Muitos regedores passaram a ser usados como instrumentos do poder colonial:

    • recolha de impostos;

    • organização do trabalho forçado (contratos e recrutamento) (trabalho forçado que existiu até 1961);

    • fiscalização e denúncia de resistências (implicando, por vezes, a colaboração com as autoridades militares e policiais durante a guerra colonial).

  • Isto fez com que alguns regedores  fossem vistos como colaboracionistas, perdendo 
    prestígio junto da sua própria comunidade.


(iv) Resistência e negociação
  • houve sobas que se recusaram a aceitar o estatuto de regedor, mantendo apenas a sua autoridade tradicional, mesmo sob risco de represálias;

  • outros souberam negociar: aceitavam o papel de regedor para garantir alguma margem de manobra e proteger a comunidade, mas continuavam a agir como guardiões dos costumes;

  • assim, muitos sobas/regedores desempenhavam uma função ambígua, entre mediadores e representantes do poder colonial;

  • depois da independência, houve ajustes de contas (mais violentos na Guiné e em Moçambique do que em Angola, mas isso é outra história; no caso da Guiné, por exemplo, terá havido uma "militarização" da figura do régulo, que também podia ser um cabo de guerra, comandante de uma companhia de milícias).


Em suma:  a distinção entre soba e regedor, em Angola,  criou uma fratura entre legitimidade tradicional e legitimidade colonial. Isso foi explorado pelos colonizadores para controlar as populações, mas também abriu espaço para resistências subtis ou abertas, conforme cada comunidade e cada líder.

Leitura complementar > Trabalho de um grupo de alunos da Universidade Católica de Benguela , Departamento de Ciências da Educação, 2012 >  O Sobado. Blogue Pedagogia e Vida. 27 de junho de 2013. 

Índice da monografia (com cerca de 3 dezenas de páginas):

 Introdução |  Sanzala e Sobado | Sobado | Autoridade tradicional (Soba)  | Eleição dos sobados | Poderes | Privilégios  fundamentais dos sobas | Sobas em relação ao matrimónio | Lugares sagrados | Estrutura do poder mágico-religioso | Sobetas | Conselheiros | Conclusão | Sugestões | Referências bibliográficas.



Selo da Companhia do Niassa, 1901, no valor de dois réis e meio. Cortesia de Wikipedia.


(***) Chibalo é o conceito de servidão por dívida ou ou uma forma trabalho forçado, que esteve em vigor  nomeadamente em Moçambique (...)
 
Em 1869, a monarquia constitucional portuguesa aboliu oficialmente a escravidão, mas mantiveram-se resquícios (como o trabalho forçado para efeitos de obras públicas: pro exemplo, a construção do caminho de ferro de Benguela).

Em Moçambique, o trabalho forçado era conhecido como "chibalo". Este sistema estava intrinsecamente ligado à cobrança do "imposto de palhota", um imposto de capitação que obrigava os africanos a procurar trabalho assalariado e a entrar no circuito da economia monetarizada para poderem pagar. Quem não pagava,  era compelido a trabalhar para o Estado, muitas vezes em condições piores do que as oferecidas pelo setor privado,

Chibalo foi usado para construir infraestruturas (pontes, estradas, portos, aeródromos, etc.).  Apenas os colonos portugueses e assimilados recebiam educação e estavam isentos deste trabalho forçado. (...)

Sob o regime do Estado Novo, os o chibalo foi usado em Moçambique, por exemplo,  para cultivar algodão . A Companhia do Niassa  (uma "companhia majestática") é um exemplo do tipo de empresas que poderiam florescer desde que tivessem acesso a uma força de trabalho não remunerada. (...)
 
 Todos os homens de idade adequada tiveram que trabalhar nos campos de algodão, que se tornaram inúteis para a produção de alimentos, levando à fome e desnutrição. (Fonte: Adapt de Wikipedia)

chibalo
(chi·ba·lo)

nome masculino

1. [Moçambique] [História] Regime de trabalho forçado através do qual a administração colonial fornecia mão-de-obra barata aos colonos de grandes propriedades (ex.: a duração do chibalo era estipulada pelas autoridades locais). (...)

2. [Moçambique] [História] Trabalhador submetido a esse regime de trabalho.

Sinónimo geral: Xibalo

Origem: do tsonga.

"chibalo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2025, https://dicionario.priberam.org/chibalo.