sábado, 14 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23263: Os nossos seres, saberes e lazeres (504): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (50): Uma amostra dos tesouros colecionados pelo Dr. Anastácio Gonçalves (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Fevereiro de 2022:

Queridos amigos,
Edifício, portão Arte Nova, jardins, uma nova entrada gerando novos espaços atrativos para desafiar a museologia e a museografia, mobiliário, porcelanas e pintura sobretudo naturalista de indiscutível valor. Percorrem-se as divisões da casa e pasma-se como se reorganizou o espaço e se aproveitam cantos e recantos para exibir maravilhas da coleção, buscando um equilíbrio dos três eixos principais do acervo com um mostruário de outras coleções, como a arte oriental ou os relógios. Quem puder previamente documentar-se, tem tudo a ganhar em obter mais informação sobre as porcelanas chinesas, os artigos religiosos, os vitrais, assim se aproveita a contemplação da sala de jantar, do atelier ou do escritório e quarto. Há peças para ver e rever, caso do Pote dos 100 meninos, uma obra-prima de Columbano, o Contador Holandês, o deslumbramento da marcenaria portuguesa que é o Preguiceiro. É para admirar e voltar depois.

Um abraço do
Mário.



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (50):
Uma amostra dos tesouros colecionados pelo Dr. Anastácio Gonçalves


Mário Beja Santos

Aqui se dá continuidade à visita Casa-Museu de Anastácio Gonçalves, instalada num edifício com projeto do arquiteto Norte Júnior, Prémio Valmor 1905. Deu-se conta que há três eixos principais deste acervo: a pintura (sobretudo a naturalista), o mobiliário português e europeu (com preferência por exemplares dos meados e terceiro quartel do século XVIII), e a porcelana chinesa que é a coleção de renome internacional, com centenas de peças adquiridas entre 1941 e 1965. Não se pode deixar de gabar a configuração do museu um novo cuidado por estabelecer um programa museológico que salvaguardasse a ambiência e o gosto do colecionador, o visitante vai seguramente usufruir desse ambiente preservado no antigo atelier do pintor José Malhoa; obviamente, tratando-se de uma coleção riquíssima e versátil, houve igualmente o cuidado de aproveitar todos os espaços, exibindo as peças segundo um critério de apresentação cronológico ou didático.
Veja-se o mobiliário, com peças datáveis entre os séculos XVII e XIX, mas onde é patente o gosto do colecionador pelas obras da época de D. José I e D. Maria I, no caso português, a atração por mesas de encostar, secretárias, papeleiras, cómodas ou canapés. Quanto ao mobiliário importado, ele também é variado, com peças de origem francesa, inglesa, holandesa, espanhola e mesmo chinesa.


Naquela que foi a sala de jantar do colecionador houve o cuidado em selecionar peças adequadas, criando um espaço cenográfico de intensa decoração e luminosidade, esta é transmitida por um belo vitral fim do século XIX. Aqui, mais do que noutra divisão da casa pululam elementos decorativos requintados. A mesa da sala de jantar é do século XVIII, tem peças de um serviço de jantar “família rosa”, em que a decoração é composta por cenas de jardim com rochedos, borboletas, peónias floridas. No mobiliário temos peças chinesas, da Companhia das Índias, pode ver-se no armário louceiro português do século XVIII peças ao gosto ocidental.
Vitral da sala de jantar
Houve o cuidado em gerir os espaços de passagem com peças maravilhosas de mobiliário e porcelana, exibindo pintura a preceito, também aqui a encenação e a decoração saem triunfantes.
Diante de nós o quadro de Jan Brueghel “de Veludo” (atribuído), um dos membros de uma das famílias icónicas ao nível da pintura mundial, ele era filho de Brueghel, o Velho, uma das personalidades mais originais de toda a pintura flamenga. Apresenta ao centro da composição, no meio de uma paisagem de flora imaginária quatro figuras alegóricas que ostentam os símbolos dos Elementos: o vaso que derrama a água, a esfera armilar (ar), a tocha (fogo) e a cornucópia de qual caem os frutos da terra. Em primeiro plano, sobre o chão estão representados animais e muitos frutos, flores e legumes. À esquerda, observa-se um braço de água onde aparece um cortejo de Neptuno, muito comum a estes temas dos Quatro Elementos. Peixes, moluscos, crustáceos e aves marinhas estão pormenorizadamente representados enquanto no ar e nas copas da árvores podem observar-se aves e pássaros.
Num corredor atrás do antigo atelier de José Malhoa podemos observar uma doação da neta do pintor Silva Porto de objetos de trabalho do seu avô, numa bela museografia.
Um exemplo eloquente da paixão do colecionador por obras do naturalismo português.
O belo vitral do antigo atelier de José Malhoa.
Chama-se Preguiceiro, feito em pau-santo e veludo, obra portuguesa do terceiro quartel do século XVIII. Inegavelmente mostra características de origem inglesa, mas com adaptações. É o caso do couro que forrava os coxins e a cartela central veio ser preterido por outros revestimentos. Vemos aqui um colchão forrado de veludo decorado com padrão floral. Neste preguiceiro os motivos rococó que rematam o montante do espaldar e as pernas já fazem parte daquele reportório que era conhecido por volta de 1770. Destaca-se o trabalho de marcenaria em transformar uma matéria tão densa e difícil como é o pau-santo nesta obra escultórica fenomenal.
Papeleira miniatura chinesa: raríssima, retorna a forma e as dimensões reduzidas dos exemplares setecentistas ingleses. A sua origem chinesa está bem patente que é uma técnica quer nos materiais utilizados, como madeira de canfora, teca e tola e as placas de cobre esmaltado.
Chama-se A Senhora de Preto, foi pintada em Paris em 1884, ano em que António Ramalho regressou a Portugal. É nítida a influência francesa. Ramalho apreciava a técnica de Manet, o que aqui se observa é o retrato de mulher tipicamente parisiense, pelo seu ar fascinante e ousado, pela sua força expressiva. As pinceladas são largas, espessas e muito livres. O negro luminoso do vestido e do chapéu é vivificado pelo matizado fundo vermelho. Ramalho regressou a Portugal passou a conviver com o Grupo do Leão, mas continuou a enviar obras para Paris.
Andar superior do antigo atelier de José Malhoa com o preguiceiro e o vitral ao fundo. É a maior divisão da casa e a grande pinacoteca, com realce para Silva Porto, mas ali também se encontram obras de José Malhoa, João Vaz, António Ramalho e dos irmãos Rafael e Columbano Bordalo Pinheiro. Está aqui um impressionante acervo de pintura naturalista em que prevalece o tema da paisagem.
O retrato impressionante de um velho.
Foi no passado a entrada principal da residência de Malhoa e do Dr. Anastácio Gonçalves.
Não há melhor maneira para concluir esta viagem à Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves fixando-nos no deslumbrante quadro de Columbano, Convite à Valsa. Trata-se de um pequeno formato, reserva a frescura do instantâneo, com as personagens centrais captadas num momento imediatamente anterior à dança, na ligeira vénia que ambos realizam, perante o olhar cúmplice da senhora, à direita, e a indiferente dormência do homem sentado. O genial Columbano conseguiu vencer os perigos da rígida fixação das personagens centrais, há ali muitíssimo mais do que um equilíbrio compositivo. Interessa ver como nesta obra o desenho começa a perder importância, num jogo de manchas de cor, detém-se no rosto da mulher, nos panejamentos do seu vestido; os fatos masculinos em tons negros são apenas demarcados nos contornos. E aquela rosa no primeiro plano não está ali por mero acaso. Os modelos são o próprio Columbano e a sua irmã Maria Augusta.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23239: Os nossos seres, saberes e lazeres (503): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (49): O médico oftalmologista que ofereceu aos portugueses sublimes obras de arte (Mário Beja Santos)

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