1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Agosto de 2019:
Queridos amigos,
Uns dias passados na Biblioteca Nacional deram-me oportunidade para reler e confirmar o valor deste trabalho de Eva Kipp, uma holandesa que andou enfronhada em vários projetos de divulgação da cultura tradicional da Guiné. Sente-se à vista desarmada o seu deslumbramento pela cultura bijagó, nomeadamente nas vertentes da antropologia, etnografia e etnologia. Trata-se de uma revisitação, em 2011 publicou-se aqui no blogue uma recensão que saudava o trabalho de Eva Kipp, ele era e é bem merecedor de ser reeditado.
Um abraço do
Mário
Revisitar um belo texto etnográfico e etnológico, com fotografia ímpar:
“Guiné-Bissau, aspetos da vida de um povo” por Eva Kipp
Beja Santos
Em 2011, aqui se fez uma primeira menção ao livro de uma perita holandesa que colaborou com o Governo da Guiné-Bissau em vários projetos de divulgação da cultura da Guiné com publicação da Editorial Inquérito, 1994. Reler pode significar nova iluminação, desapontamento, descoberta de uma apreciação excessiva ou injusta. Confesso-vos que valeu a pena voltar ao livro de Eva Kipp: pela organização, pelo deslumbramento, pelas pistas que abre sobre a arte dos Bijagós, a sua religião, as suas pinturas murais, as suas práticas funerárias, a vivência da mulher guineense no trabalho.[1]
Quanto à arte dos Bijagós, diz a autora que segundo uma lenda Bijagó, a vida começou assim: Deus, o Criador, existiu sempre e, no início da vida, foi criada a primeira mulher – Orango, que era o mundo. Uma lenda que dá uma interpretação para o influente papel da mulher na sociedade Bijagó. A arte Bijagó está estritamente ligada à religião. A representação dos Irãs encontra especial relevo na escultura em madeira, a qual se alarga à representação de outras cenas da vida quotidiana e mesmo à produção de objetos de uso comum, caso de colheres ou bancos.
Uma religião que assenta nos Irãs e nos seus santuários. Os Irãs Grandes, chamados Irãs do Chão, são os mais poderosos da tabanca. Além de forma humana, eles são multiformes. O Irã Grande da tabanca de Entiorp, em Canhabaque, por exemplo, tem uma forma abstrata. Faz lembrar uma panela com a tampa decorada e envolvida num pano vermelho.
Em princípio, os Irãs Grandes devem estar na chamada “baloba dos defuntos”, que é o santuário das mulheres. Ficam depositados em casa dos régulos por motivos de segurança. Com o Irã Grande da tabanca é possível realizar muitas cerimónias pessoais, como para pedir que alguém tenha saúde ou sucesso no trabalho.
Não se pode falar de arte Bijagó sem relevar as suas pinturas murais. É sobretudo nas ilhas de Canhabaque, Bubaque e Formosa que existem pinturas murais em santuários e em casas. Na atualidade estas pinturas podem ser encontradas sobretudo nas balobas (santuários) e nelas retratam-se cenas do dia-a-dia da sociedade local. Assim, encontramos imagens de Irãs, feiticeiros, defuntos e animais.
O pequeno fanado é um acontecimento iniciático que tem uma profunda envolvente religiosa. Em cada período de seis ou sete anos, realiza-se nas ilhas dos Bijagós o fanado das raparigas. São cerimónias de iniciação em que participam raparigas de idade compreendida entre os 17 e os 25 anos. Essas raparigas são chamadas aos “defuntos”, pois nessa cerimónia vão receber a reencarnação do espírito de uma pessoa já falecida.
Continuando nos aspetos religiosos, Eva Kipp refere os djambacós ou curandeiros. São mediadores procurados por pessoas que precisam de conselho, possuem artes de vidência e poderes de curandeiro. Realizam cerimónias com conchas, orientam sacrifícios de animais; casos há em que os djambacós praticam a cartomancia ou prescrevem tratamentos para pessoas doentes.
Os aspetos da reencarnação são crença inabalável das sociedades animistas da Guiné-Bissau, pois as pessoas continuam, para além da morte, a participar na vida diária dos que permanecem vivos. Eva Kipp estende estas considerações de índole religiosa que abarcam, por exemplo, o funeral de um Homem Grande, o fanado, o Kussundé, que é dança tradicional de algumas etnias animistas, e não esquece o papel dos “mouros”, que são os sacerdotes muçulmanos. No Islamismo, a religião está no centro da organização social, e ela refere a mesquita, a peregrinação a Meca para a obtenção do título de El Hadj e o jejum por altura do Ramadão, tudo está presente na vida diária do crente muçulmano. Aliás, os mais novos são induzidos à aprendizagem dos versículos do Corão em escolas. Nessas escolas corânicas inicia-se a criança. A criança deverá fazer os dois níveis que compõem a escola corânica, ela memoriza, através da repetição cantada, os versículos e aprende a escrever os mesmos em curiosas tábuas. Os mouros mais famosos reúnem em si o filósofo, o conselheiro familiar e político, o curandeiro e a autoridade religiosa.
Na recensão aqui publicada em 2011 concluiu-se dizendo que se tratava de um livro de grande valor fotográfico e que bem merecia ser reeditado. Mantém-se o apelo, é evidente que tem continuado a investigação da sociedade dos Bijagós mas há aspetos essenciais inquestionáveis: na religiosidade, na arte, no papel do djambacó ou curandeiro, nas práticas funerárias, até no fanado.
Durante muito tempo correu a lenda de que a sociedade Bijagó era patriarcal, hoje sabe-se que não é assim, a despeito da mulher Bijagó ter um desempenho relevante e incomparável face às outras etnias. No quadro geral da mulher guineense no trabalho, quando a família é poligâmica, é a mulher mais velha a dona da casa, é ela que atribui, no dia anterior, a distribuição das tarefas pelas outras. Mas na sociedade bijagó é bem claro que a mulher não goza da submissão das mulheres das outras etnias, tem plena liberdade, por exemplo, de manifestar o desejo de divórcio, que exterioriza pondo os tarecos do marido à porta, é deste modo que se torna evidente no local a sua decisão.
Não se pode estudar a sociedade Bijagó sem dar atenção ao belíssimo trabalho de Eva Kipp. E ponto final.
Barco Bijagó: estatueta de Bubaque.
O Irã Grande da tabanca de Angura, em Canhabaque, rodeado de objetos sagrados. À esquerda está o Irã de Mão do régulo.Em frente do Nan, o régulo da tabanca de Angura com o tridente numa mão e o Irã de Mão na outra.
____________Notas do editor
[1] - Vd. poste de 7 DE JANEIRO DE 2011 > Guiné 63/74 - P7567: Notas de leitura (185): Guiné-Bissau, Aspectos da Vida de um Povo, de Eva Kipp (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 9 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23248: Notas de leitura (1444): "Histórias da História da Guiné-Bissau", por Manuel Grilo, obra financiada pela Fundação do BCP para o Comissariado-Geral da Guiné-Bissau da Expo 98, 1998 (Mário Beja Santos)
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