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quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24556: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (127): A "Rainha de Catió" foi a minha adorada mãe e tinha lugar na primeira fila nas cerimónias oficiais, tanto no tempo do gen Schulz como do gen Spínola (Souleimane Silá, Luxemburgo)


Rainha de Catió" (c. 1964/66) . 

Foto do álbum do João Gabriel Sacôto Martins Fernandes, de seu nome completo, ex-alf mil da CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66) e depois piloto da aviação civil onde chegou a comandante da TAP, reformado desde 1998. Conviveu com a população, fula e balanta, de Catió e arredores, incluindo Príame (a tabanca do cap 'comando' graduado João Bacar Jaló, 1929-1971). (*)

Foto (e legenda): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


"Rainha de Catió" (c. 1972)

Guiné > Região de Tombali > Catió > BCAÇ 2930 (Catió, 1970-72) >  O então maj inf Mário Arada Pinheiro, 2.º cmdt do BCAÇ 2930, com a "rainha de Catió", sua lavadeira,  e algumas das suas filhas (presume-se)... Em chão nalu, ela era fula.  (*)

Foto (e legenda): © Mário Arada Pinheiro (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso leitor Souleimane Silá, natural de Catió, com página no Facebo0k, comentário ao poste P24546 (**):


Data - domingo, 13/08/2023, 23:41
Assunto - Sobre vossa publicação de 9 de agosto de 023 - Álbum de major Pinheiro

Saudações, camaradas do Blogue dos Amigos e camaradas de Guiné. 

Sobre essa foto da madame identificada como rainha de Catió não é equívoco. Pelo contrário. Ela, residente no bairro de Catió-fula (para quem vai para a granja, Cumebú e Ganjola), devido ao seu desempenho de lavadeira de oficiais e de demais tropas do quartel, passou a ser convidada nas cerimónias oficiais da então Vila de Catió aonde sediavam os restantes postos administrativos da região.

Coincidentemente, marido dessa madame, de verdadeiro nome Abibatu Djopo, não foi nada mais nada menos que o motorista da administração do concelho (de Catió), Aliu Silá (Aliu Chauffeur), família da mulher do Administrador Amadeu Nogueira (...).

Cerimónias se repetiam com visitas e substituições oficiais, administrativos e militares ao alto nível da então Província da Guiné Portuguesa, a designada Rainha de Catió sempre esteve presente.

Nunca me esquecerei das delegações como as do Governador Arnaldo Schulz, General Spínola, Secretário Pinto Bull e tantas altas figuras que ela, a Rainha de Catió, foi convidada para tomar parte na primeira fila, com muitas vezes uso de palavra em nome da comunidade.

Digno-me de deixar esse registo porque sou vivo testemunho dessa soberba mulher que é minha adorada Mãe.

Para finalizar, dou um grande abraço ao Comandante Pinheiro que tive privilégio de conhecer de perto em Catió, voltamos a ver-nos no QG Bissau e finalmente em Carcavelos em 2004.

Abraços extensivos ao meu mano mais velho, Sr Benito Neves, que cumpriu vida militar naquela Vila de Catió e que conheceu meus queridos pais (pena que um outro colega dele e amigo já tenha falecido, o Vitor Condeço de quem guardo um riquissimo álbum da época)

Mantenhas a todos.
Agradecimentos de
Souleimane SILA




Guiné > Região de Tombali > Carta de Catió (1956) (Escala 1/50 mil) > > Pormenor: Vila de Catió e arredores. (Príame fica já na carta de Bedanda, na estrada para Cufar.)

Infografias: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


2. Mensagem de Hélder Sousa, nosso colaborador permanente, com data de ontem, às 15h41, comentando a mensagem do Souleimane Silá:

Olá Luís, "mantenhas e saudinha da boa".

Como vês aproveitei logo para juntar duas expressões muito usadas nas trocas de mensagens do Blogue e que acho ficam muito bem.

Olha, antes de ir propriamente referir-me ao miolo deste comentário recebido, quero dizer duas ou três coisas:

A primeira, é que espero muito sinceramente que estejas a recuperar bem e com confiança suficiente.

Depois, para justificar a quase ausência de comentários meus pois, finalmente, ao fim de 6 anos, acabei de ter duas semanas de férias (viva o luxo!) e em boa parte desse tempo estive sem internet.

Então, em relação a este comentário do Souleimane, só posso dizer que fico, cada vez mais, com a sensação que o Blogue é efectivamente seguido por muita e boa gente.

Alguns, às vezes, acabam por se manifestar e esses quando o fazem são, na generalidade, positivos. Outros há (e alguns são nossos conhecidos ou até mesmo "velhos conhecidos") que intervêm para criticar depreciativamente ou provocatoriamente mas como o saldo continua a ser positivo, pode-se e deve-se concluir que, quer se queira, não se queira, ou mesmo não se tenha consciência profunda disso, que este fenómeno chamado "Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné" é realmente, considerando a larga maioria de artigos, fotos, reportagens, etc., um caso sério de seriedade, de depositário de memórias, de afetos, de (re)encontros, incontornável e que servirá (como tem servido) para muitos estudos e observações (cada vez mais distanciadas) de situações e de episódios passados durante a "guerra na Guiné".

Abraços, Hélder Sousa


3. Comentário do cor inf ref Mário Arada Pinheiro, com data de ontem, às 16h22:

Muito obrigado aos meus amigos, prof. Graça e Souleimane Silá que já não vejo desde 2004, e que tinha, como já antes referi, uns pais muito queridos de quem me recordo com frequência e de cuja Mãe escrevi recentemente como uma excelente pessoa. Espero vê-lo em breve, Souleimane, um abraço.


4. Mensagem do Benito Neves, ex-fur mil cav, CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67), às 18h25 de ontem:

Meu caro Luís

O Souleimane Silá é meu amigo no Facebook desde há bastante tempo, em consequência de troca de mensagens sobre Catió. A forma como desde sempre se referiu a mim, como “o meu mano mais velho”, revela um tratamento carinhoso que lhe é peculiar.

Ao tempo – e já lá vão mais de 50 anos – o Souleimane era um daqueles miúdos que deambulava pelas ruas de Catió e convivia connosco. Entretanto veio para Lisboa, constituiu família e emigrou para o Luxemburgo onde os seus descendentes já têm o seu futuro garantido.

Mas… a história do Souleimane deverá ser ele a contá-la.

Desconhecia completamente (ele nunca tal me referiu) que era filho da rainha de Catió.

É com enorme satisfação que o poderei ver integrar o blogue para, à sombra do poilão, nos contar as suas histórias.

Forte abraço
Benito Neves


5. Comentário do editor LG:

Caros camaradas e amigos: apareceu agora um filho da "rainha de Catió". É caso para dizer que o Mundo é Pequeno e o nosso Blogue... é Grande! (**).

É uma feliz coincidência. O Souleimane Silá, de acordo com a sua página no Facebook, vive no Luxemburgo, em Marnach, desde 2020. Nasceu em Catió em 8 de março de 1958, portanto há 65 anos. Estudou na ENA-Bissau (Escola Nacional de Administração, ex Cenfa).

É amigo do Facebook dos nossos camaradas Benito Neves e João Sacoto e privou também com o nosso saudoso Victor Condeço (1943-2010). Conheceu, aos 14 anos, o então major inf. Mário Arada Pinheiro, 2.º comandante do BCAÇ 2930 (de rendição individual, esteve em Catió, de set71 a ago72, ou seja, no 2.º ano da comissão do batalhão).

Ele vem confirmar o que o cor inf ref Arada Pinheiro nos informara há dias, em conversa pessoal na Praia da Areia Branca, Lourinhá, onde tem casa:

(i) conheceu a senhora como sendo a "rainha de Catió", título que não era honorífico nem gentílico, mas sim atribuído popularmente, pela nobreza do seu porte (usava sempre o vestido comprido, branco, que mostram as duas fotos, tanto a de 1964/66, como a de 1972);

(ii) era sua lavadeira, e "boa lavadeira";

(iii) tinha vários filhos, o marido era o motorista do administrador de Catió;

(iv) ao filho mais novo, em 1972, fez questão de chamar-lhe "Major João Pinheiro" (sic) (homenagem ao major Mário Arada e ao seu filho João);

(v) depois de ele ser colocado no QG, na Amura, em Bissau, a "rainha de Catió" apareceu-lhe um dia lá em casa (ele vivia com a família numa vivenda em Santa Luzia), queria visitar uma filha que estava hospitalizada no HM 241, com uma perna esfacelada por um estilhaço de foguetão 122 mm (num dos ataques a Catió).

O João Sacôto, com quem falei ao telemóvel, não se lembra dela como "lavadeira", mas sim como "mulher grande", de "altivo porte", respeitada na comnunidade, não tendo nenhum parentesco ou relação com o João Bacar Jaló; não tem a certeza de ela ser fula, de resto não vivia em Príame (na estrada Catió-Cufar), mas numa tabanca a norte.

O Cherno Baldé também acrescentou, em comentário, que entre os fulas não havia rainhas.

Aproveito, por fim, para convidar o Souleimane Silá (a quem agradeço estas carinhosas confidências sobre a senhora sua mãe) para se juntar a este blogue que é dos camaradas e dos amigos da Guiné... 

Mantenhas. 
Luís Graça
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 10 de agosto de 2023 > Guiné 61/74 - P24546: Fotos à procura de... uma legenda (176): A "rainha de Catió", fotografada em 1964/66 (pelo João Sacôto) e em 1972 (pelo Mário Arada Pinheiro)

(**) Vd. poste de 9 de agosto de 2023 > Guiné 61/74 - P24540: Fotos do álbum do cor inf ref Mário Arada Pinheiro, antigo 2º cmd do BCAÇ 2930 (Catió, 1970/72) e cmdt do Comando Geral de Milícias (Bissau, 1972/73)

Vd. também poste de 28 de março de 2019 : Guiné 61/74 - P19628: Álbum fotográfico de João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como, Cachil, 1964/66) e cmdt da TAP, reformado - Parte VII: Catió e arredores: contactos com a população civil

(***) Último poste da série > 2 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23580: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (126): Leitor brasileiro, Edson de Lima Lucas, identifica o navio inglês Narkunda, da P&O Lines, em foto de 29/9/1942 (presumivelmente "Foto Melo") , tirada ao largo do Porto Grande, Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde... Dois meses depois seria atacado e afundado pela aviação alemã, na campanha dos Aliados no Norte de África.

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24546: Fotos à procura de... uma legenda (176): A "rainha de Catió", fotografada em 1964/66 (pelo João Sacôto) e em 1972 (pelo Mário Arada Pinheiro)

Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > "Mulher grande, rainha de Catió". 

Foto do álbum do João Gabriel Sacôto Martins Fernandes, de seu nome completo, ex-alf mil da CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66) e depois piloto da aviação civil onde chegou a comandante da TAP, reformado desde 1998. Conviveu com a população, fula e balanta, de Catió e arredores, incluindo Príame (a tabanca do cap 'comando' graduado João Bacar Jaló, 1929-1971).

Foto (e legenda): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné > Região de Tombali > Catió > BCAÇ 2930 (Catió, 1970-72) >  O então maj inf Mário Arada Pinheiro, 2.º cmdt do BCAÇ 2930, com a "rainha de Catió" e algumas das suas netas (?)... Em chão nalu, ela era fula. As miúdas mais pequenas estão "meio escondidas", envergonhadas ou intimidadas (como era normal, na presença dos "tugas")... (**)

Foto (e legenda): © Mário Arada Pinheiro (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Será a mesma senhora? A "rainha do Catió", fotografada por volta de 1964/66, pelo João Sacôto, e seis ou oito anos mais tarde, em 1972, pelo Mário Arada Pinheiro?

Ambos os fotógrafos lhe chamam "rainha de Catió", " mulher grande", "fula em terra de nalus"... Mas o Cherno Baldé, o nosso assessor para as questões etnolinguísticas, tem dúvidas, tendo deixado este comentário no poste P24549 (*):

(...) "Em Catió, na altura, o Bairro dos fulas, melhor dizendo futa-fulas, era logo à entrada em Priame, onde também vivia a família do Cap 
Cmd João Bacar Jaló. Por isso, quer-me parecer que a mulher grande aqui apresentada como a "rainha de Catió" poderia muito bem ser uma das suas viúvas ou uma familiar muito próxima, para merecer as visitas de um alto oficial do Batalhão sediado em Catió.

"Os fulas não têm rainhas e muito menos no chão Nalú, mesmo estando em terras conquistadas pelos seus antepassados. Talvez o Mário Arada Pinheiro nos possa esclarecer a dúvida." (9 de agosto de 2023 às 16:29 (...)

2. Comentário do editor LG:

Obrigado, Cherno, estou agora, neste mês, quase todos os dias com o coronel Mário Arada Pinheiro, tem casa de férias aqui na Praia da Areia Branca... Pertencemos ambos ao GAPAB / Vigia (Grupo dos Amigos da Praia da Areia Branca). Vou-lhe "espicaçar" a memória, que é muito boa para quem já teve a felicidade de chegar aos 90 anos. (E ainda há dias o vi a conduzir aqui na Lourinhã.) Realmente nunca vi nenhuma rainha "fula"... Dos nalus conheci, em 2008, o "rei", Salifo Camará, falecido em 2011... Aliás, "Aladje Salifo Camará, régulo de Cadique Nalu e Lautchandé, antigo Combatente da Liberdade da Pátria, o rei dos nalus" (tinha 87 anos em 2008).

Em Angola, sim, houve várias rainhas, que ficaram na história, começando pela mais célebre, Mwene Nzinga Mbandi (c. 1582, - 1663), também conhecida por rainha Njinga ou Ginga, ou Ana de Sousa (para os portugueses).

Vamos lançar o desafio aos nossos dois fotógrafos e aos nossos camaradas que tenham passado por Catió... Quem é (era ou foi) esta "mulher grande, rainha de Catió"? (***)
____________

Notas do editor:

(*) Vd,. poste de 28 de março de 2019 : Guiné 61/74 - P19628: Álbum fotográfico de João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como, Cachil, 1964/66) e cmdt da TAP, reformado - Parte VII: Catió e arredores: contactos com a população civil

(**) 9 de agostoi de 2023 > Guiné 61/74 - P24540: Fotos do álbum do cor inf ref Mário Arada Pinheiro, antigo 2º cmd do BCAÇ 2930 (Catió, 1970/72) e cmdt do Comando Geral de Milícias (Bissau, 1972/73)

(***) Último poste da série > 30 de julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24519 Fotos à procura de... uma legenda (175): Capinadores e "homens armadas" em Cutia, tabanca e destacamento no setor de Mansoa, ao tempo do BCAÇ 2885 (1969/71) (José Torres Neves, capelão)

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24500: História da CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72) - Parte IV: Período de 1 de novembro a 31 de dezembro de 1970: colocada nas ZA de Catió e Cabedu: missão

            Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) >Estrada para Príame


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) >  O alf mil João Sacôto  de visita a uma tabanca de Catió.


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 617 (1964/66) > Tabanca de Príame: eu, à porta da morança do João Bacar Jaló, na altura alferes de 2ª linha (será promovido a tenente de 2ª linha, em novembro de 1964).

Fotos (e legendas): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guião da CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72). Cortesia do nosso tabanqueiro Amaral Bernardo, ex-alf mil médico, CCS/BCAÇ 2930 (Catió, 1970/72).

1. Continuação da publicação de alguns  alguns excertos da história da CCAÇ 2792 (Catió e Cabedu, 1970/72). É mais uma das subunidades, que estiveram no CTIG, e que não têm até à data nenhum representante (formal) na Tabanca Grande.

Foi um antigo aluno meu, pessoa que muito estimo,  o médico do trabalho Joaquim Pinho, da região centro,  que me facultou, há uns anos atrás,  cópia (não integral) desta história da CCAÇ 2792, que era comandada pelo cap inf  Augusto José Monteiro Valente,

Uma cópia da história da unidade  froi oferecida ao Centro de Documentação 25 de Abril, em vida,  pelo então major general Monteiro Valente, ex-elemento do MFA, com papel de relevo nos acontecimentos do 25 de Abril, na Guarda (RI 12) e Vilar Formoso (PIDE/DGS), bem como  no pós- 25 de Abril. (Foi também comandante da GNR, e era licenciado em História pela Univer5sidade de Coimbra.)

Acrescente-se ainda que o cap inf Monteir0 Valente, entre outros cargos e funções, foi instrutor, comandante de companhia e diretor de cursos de Operações Especiais, no Centro de Instrução de Operações Especiais, em Lamego (1968-1970, 1972-1974). (Foto à direita, cortesia do blogue Rangers & Coisas do MR", do nosso coeditor, amigo e camarada Eduardo Magalhães Ribeiro).

 
História da CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72) - Parte IV:

Período de 1 de novembro a 31 de dezembro de 1970:

colocada nas ZA de Catió e Cabedú; missão

2. Missão

a. CCAÇ 2792 (-)

(1) manter uma atividade operacional permanente na zona de Catió;

(2) assegurar a defesa de Catió e da população civil;

(3) concluir o reordenamento do Ilhéu de Infanda e estabelecer em autodefesa as populações de Quibil e Ilhéu de Infanda;

(4) garantir o funcionamento dos postos escolares militares de Nova Coimbra e Ilhéu de Infanda;

(5)  assegurar a defesa do reordenamenmto do Ilhéu de Infanda, da população de Príame, e das tabancas de Sua, Quitafine e Areia, e o seu socorro em tempo oportuno por forma a manter a confiança das populações nas NT;

(6) desenvolver uma equilibrada e positiva ação psicológica por forma a mnater e consolidar a coesaão das populações sob o seu controlo e criar condiçóes  favoráveis à recuperaçáo de elementos das populaçóes sob controlo IN ou, no mínimo, conseguir a sua passagem ao duplo controlo;

(7) garantir a defesa diurna do itinerário Príame-Ilhéu de Infanda e assegurar a liberdade de movimentos no itinmerário Catió-Cufar, dentro da sua ZA;

(8) assegurar a proteção de trabalhos e colheitas das populaçóes sob o seu controlo;

(9) excercer  o controlo sobre as populaçóes de Ilhéu de Infanda,  Quibil, Catió Balanta,  Areia, Sua e Quitafine, e controlar o tráfego de pessoas e mercadorias dentro da sua ZA;

(10) manter a posse e a livre circulação da pista de aviação, porto exterior e interior de Catió, dando a necessária segurança às aeronaves e embarcações que o utilizam;

(11) prever a  sua atuação em qualquer ponto da ZA do Batalhão;

(12) exercer o controlo operacional das  subunidades da CCS/BCAÇ 2930, quando em atuação  na sua ZA;

(13)  acabar com o IN, aniquliando-o, capturando-o ou, no mínimo, expulsando-o das zonas de não intervenção do Comando-Chefe,

b. Destacamento de Cabedú

(1) manter uma adequada atividade operacional  na zona, nomeadamente emboscadas noturnas, assegurar a defesa de Cabedú e da sua população civil;

(2)  estabelecer  a autodefesa dos aglomerados populacionais sob o seu controlo e asseguar o seu apoio em tempo oportuno;

(3) garantir o funcionamento do posto escolar militar  de Cabedú;

(4) desenvolver uma equilibrada e positiva ação psicológica por forma a manter e consolidar a adesão das populaçóes sob o seu controlo e criar condiçóes  favoráveis à recuperaçáo de elementos das populações sob controlo IN ou, no mínimo, conseguir a sua passagem ao duplo controlo;

(5) assegurar a proteção de trabalhos e colheitas das populações sob o seu controlo;

(6) manter a posse e a livre circulação do porto e da pista de aviação de Cabedú, porto exterior e interior de Catió, dando a necessária segurança às embarcaçóes e meios aéreos  que os utilizem;

(7) excercer  o controlo sobre as populações de Cabedú, e controlar o tráfego de pessoas e mercadorias dentro da sua ZA, em conformidade com as disposições legais em vigor;

8) contactar com as populaçóes do Ilhéu de Melo,  executando patrulhamentos periódficos, recenseamento e controlo das referidas populações;

(9)  criar condiçóes  favoráveis à recuperaçáo  das populaçóes da sua ZA que estão sob controlo do IN;

(10) estabelecer uma rede informações com vista a obter  completo conhecimento das atividades do IN  na sua ZA,

 (Excertos das pp.  20/II e 21/II, História da Unidade)

(Seleção / revisão e fixação de texto / substítulos / negritos: LG)

(Continua)
___________

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24487: História da CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72) - Parte IV: Período de 1 de novembro a 31 de dezembro de 1970: colocada nas ZA de Catió e Cabedu: descrição do terreno (aglomerados populacionais e comunicações)


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço  (1943-2010)> Um aspeto parcial do quartel.


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Vila > Álbum fotográfico do Victor Condeço (1943-2'010)  > "Lagoa com nenúfares,  à esquerda na estrada de Catió-Príame"


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Porto Interior > Álbum fotográfico do Victor Condeço  (1943-2010)> "O porto interior de Catió, no rio Cadime, fazia parte dos nossos passeios de Domingo". (O Victor é o primeiro da direita: era camarada discreto, amável, afável, prestável, generoso que a morte levou cedo: foi fur mil mec armamento.)

Fotos (e legendas): © Victor Condeço  (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Tombali > Cachil > CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65) > A lancha do Cachil, que vinha de Catió... A ligação de Cachil (na margem esquerda do Rio Cobade) a Catió fazia-se de barco, pelo Rio Cobade e depois pelo seu afluente, o Rio Cagopére (em cuja margem direita se situava o porto exterior de Catió)

Foto do álbum do ex-fur mil Victor Neto, da CCAÇ 557, enviada pelo incansável José Colaço, nosso grã-tabanqueiro.

Foto (e legenda): © Victor Neto / José Colaço (2014). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]´


Guiné > Região de Tombali > Carta de Catió (1956)  (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Catió e alguns rios envolventes: Tombali, Cobade, Umboenque, Ganjola, etc.


Guiné > Região de Tombali > Carta de Cacine (1960)    (Escala 1/50 mil)  > Posição relativa de Cabedú, e dos rios Cumbijã e Cacine.

Infografias: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. Continuação da publicação de alguns  alguns excertos da história da CCAÇ 2792 (Catió e Cabedu, 1970/72). É mais uma das subunidades, que estiveram no CTIG, e que não têm até à data nenhum representante (formal) na Tabanca Grande.

Recorde-se que embarcou, no T/T Carvalho Araújo, em 19 de setembro de 1970, desfalcada de 3 dos seus oficiais subalternos. Acabou a IAO, em 31 de outubro de 1970, no CIM de Bolama, sem qualquer alferes, sendo os pelotões comandados provisoriamente por furriéis, uam situação anómala e talvez inédita no CTIG. O comandante de companhia era o cap inf op esp Augusto José  Monteiro Valente (1944-2012) (*)

Com base nos elementos de que dispomos (cópia parcial da história da unidade), vamos hoje fazer uma breve caracterização do terreno correspondente à sua Zona de Acção (ZA), na realidade duas zonas, e distintas: Catió e Cabedú, na região de Tombali , Sector S3(*)


História da CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72) - Parte IV:

Período de 1 de novembro a 31 de dezembro de 1970: colocada nas  ZA de Catió e Cabedu: descrição do terreno   (aglomerados populacionais e comunicações)


(22) Caracterização das ZA de Catió e Cabedú:

(222) D
escrição do Terreno:

6. Aglomerados populacio0nais

61. Sob o controlo efetivo das NT:
  • Catió: sede  da administração do concelho, nesta vila encontram-se representantes das várias etnias, predominando contudo os balantas;
  • As tabancas à volta de Catió também são balantas:  Catió Balanta, Nova Comedú, Areia Branca, Suá, Quintafine, Areia...
  • Só fula é Catió Fula;
  • Camitendem é nalu e biafada;
  • Príame é fula e maninga;
  • As tabancas mais afastadas são do Ilhéu de Infanda,  de população balanta.
62. Sob o controlo IN:
  • Na ZA de Catió: Ilhéu de  Cote,  Canturé, Catissame,Dimbissile, Cachanga,b Gansona, Quire e Musna;
  • Na ZA de Cabedú, a Ilha de Melo, com população das etnias balanta, nalu e sosso.
7, Comunicações

71. Itinerários
  • Na ZA de Catió,  Estradas de Catió-Cufar | Catió- Ilhéu de Infanda | Tombali (Cantona - Tombo) | De Catió parte um troço que através do R Ganjola vai entroncar na estrada de Tombali;
  • Na ZA de Cabedú, estrada de Cabedú-Cabanta.
72. Portos
  • Na ZA de Catió: 

(i) Rio Ganjola e afluentes:  Portos interior e exterior de Catió (nos rios Cadime e Gagopere, respetivamente) | Porto de Ganjola | Porto de Comedú | Porto de Cubaque;

(ii) Rio Cumbijã e aflientes: Porto do Ilhéu de Infanda,

  • Na ZA de Cabedú: 
No rio de Cumbijã e afluentes: Porto de Cabedú (no rio Lade).

Estes portos podem ser utilizados por  barcos a motor na praia-mar. Muitos outr0s são frequentad0s apenas por canoas nativas.

73. Pistas de aterragem

(i) Pista de Catió

Ccom um comprimento de 1200 metros, permite no tempo seco a aterragem de avióes do tipo DC.3 (Dakota), T-6 e DO-27. Na estação das chuvas, só as DO-27 fazem serviço com normalidade.

(ii) Pista de Cabedú: 

Com um comprimento de 500 metr0s, só pode ser utilizada, durante todo o ano, por avionetas de tipo DO-27.

74. Meios de ligação:

As características especiais do terreno das ZA (em especial de Catió) (plano, baixo, facilmente alagadiço e muito recortado por braços de rios) conduzem a que as poucas estradas existentes sejam muito sensíveis às chuvas , tornando-se impraticáveis por largos períod0s do ano.

Tal circunstància aconselha a utilização da via fluvial: por ser  bastante densa, torna fácil o acesso por barco a qualquer parte da ZA. A única limitação a este procedimento reside na necessidade de subordinar os movimentos ao período das marés.

Excertos das pp.  3/II - 6/II, História da Unidade)

terça-feira, 23 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24337: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXVI: 16 de abril de 1971, um dia trágico, a morte de João Bacar Jaló (Cacine, 1929 - Tite, 1971)


Guiné > s/l > s/ d > O tenente graduado 'comando'  João Bacar Djaló,  rodeado de pessoal da 1ª CCmds Africanos. Entre outros, é possível identificar o furriel “Dico” Andrade, o 1º da esquerda, o furriel Orlando da Silva, ajoelhado, no meio e o 1º da direita, em cima, o soldado Francisco Gomes Nanque, que esteve preso na Libéria após a operação a Conacri. Foto de Amadu Djaló, publicado na pág. 190 do seu livro.



Lisboa > 1970 > O cap graduado 'comando'.  cmdt da 1ª CCmds Africanos João Bacar Jaló como o nosso veteraníssimo João Sacôto (ex-alf mil, CCAÇ 617/BCAÇ 619, Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66), hoje comandante da TAP reformado, membro da nossa Tabanca Grande desde 20/12/2011. 

O João Bacar Jaló veio a Lisboa, nessa altura, no 10 de Junho, receber a Torre e Espada. Nasceu em Cacine, circunscrição de Catió, região de Tombali, no sul da Guiné, em  1929, e morreu em 1971, no HM 241, em Bissau, por ferimentos em combate. Era alferes de 2ª linha em 6 de junho de 1965. (*)

Foto (e legenda): © João Sacôto (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Quínara > Carta de Tite (1955) > Escala 1/50 mil  > Posição relativa de Tite e, a nordetse, Jufá, a zona onde o João Bacar Jalõ perdeu a vida, em 16 de abril de 1971. Infografia publicada no livro, pág. 193.


Guiné > Região de Quínara > Tite > 1971 > O soldado Abdulai Djaló Cula, da 1ª CCmds, que contou aqui, no livro do Amadu Djalõ, as circunstâncias em que morreu ao seu lado o seu comandante. Foto publicada no livro, pág. 191.


1. C
ontinuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digital,  do seu livro 
"Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O seu editor literário, ou "copydesk", o seu camarada e amigo Virgínio Briote,  facultou-nos uma cópia digital; o Amadu, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.

[Foto à esquerda > O autor, em Bafatá, sua terra natal, por volta de meados de 1966. (Foto reproduzida no livro, na pág. 149) ]

Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri,  começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii)  depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido,  por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757; 

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló; 

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló  (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,


 

Capa do livro do Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.  


Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXVI:

A morte de João Bacar Jaló (Cacine, 1929- Jufá, Tite, 1971) 

No dia seguinte, de manhã, apanhei o transporte para Brá. Quando lá cheguei, estava o capitão Miquelina Simões a proceder às identificações dos instruendos, que iam frequentar o curso para a 2ª Companhia de Comandos, vi o Furriel Vasconcelos.

 Vamos a isso depressa, pá!     gritei-lhe,  a brincar.

–  Amadu, ouvi agora uma coisa, não sei se é verdade.

–  O que foi que ouviste?

–  Ouvi dizer que o João Bacar morreu!

Corri para o gabinete do capitão e vi o Sisseco.

–   Sim, é verdade, o capitão morreu!

Sem demora corremos para o hospital. Quando chegámos, estava a entrar o general Spínola. Fomos atrás dele, até ao local onde repousava o corpo do nosso capitão João Bacar Jaló. Foi o próprio general que levantou o lençol que cobria o cadáver. As lágrimas romperam pelos nossos olhos.

Terminou, neste dia, 16 de Abril de 1971, a história do Capitão João Bacar Jaló[1].

Dirigi-me para a casa do capitão João Bacar e fiquei à espera do irmão dele, porque, entre nós, as famílias não podem ficar sem um homem em casa. E quando um dos nossos morre, é costume cada um de nós dar qualquer coisa, mesmo que a pessoa morta seja rica e ainda mais se o falecido tiver sido em vida boa pessoa. Então, cada um estava a dar dentro das suas possibilidades e foi nessa altura que entrou o tal velhote, de que já falei antes, o Mamadu Candé 
[o adivinho] . Vi-o pôr uma nota de 100 escudos no cesto. Ficámos, uns momentos, a olhar um para o outro.

Mais tarde, perguntei-lhe por que razão tinha dado 100 escudos.

–   Eu não queria o dinheiro, quando o capitão mo deu. Não aceitou o meu conselho e não é legítimo eu ficar com o dinheiro. Tive que o devolver.

Fiquei assim a compreender por que é o velhote não a queria, quando o João Bacar lhe deu a nota.

O Soldado Abdulai Djaló Cula[2], filho do Padre[3] Central de Bissau, conta que,  ao amanhecer daquele dia[4], o Capitão João Bacar Jaló lhe disse que ia morrer nesse dia. Abdulai chamou o Alferes Justo[5] e contou-lhe a conversa do capitão.

–    Como?  
  perguntou o alferes.

–  Sonhei com a minha morte      respondeu o capitão.

Estávamos juntos, eu, o Abdulai Djaló Cula, o Alferes Justo e o Furriel Braima Bá (Baldé). Não tinha ainda acabado de contar o sonho, vimos duas mulheres acompanhadas por uma criança. Traziam cestos com arroz à cabeça, que iam vender em Tite. Parámo-las e o capitão perguntou-lhes:

–  
Onde está o PAIGC?

–  
Eles dormiram aqui perto, devem estar ali em frente.

Tínhamos passado a noite, nós e eles, PAIGC, bem perto uns dos outros, talvez a pouco mais de duzentos metros. Nós estávamos muito desconfiados que eles andavam por ali e eles tinham a certeza onde nós estávamos. Por isso, durante a noite, tanto nós como eles evitámos fazer ruídos.

João Bacar deixou as mulheres irem à sua vida e decidiu preparar o ataque à zona onde desconfiávamos que eles estivessem. Aproximámo-nos com muito cuidado, chegámos ao local e vimos folhas estendidas no chão, que devem ter servido de camas. Vimos um resto de cigarro no chã, ainda a deitar fumo.

–  
Justo, procura nessa zona      ordenou o capitão.

O grupo do alferes, de cerca de vinte homens, começou a movimentar-se até desaparecerem da nossa vista. Soube, mais tarde, que, depois de percorrerem a zona, o Justo decidiu emboscar-se relativamente perto de nós.

João Bacar disse a um dos furriéis que lançasse sete granadas de morteiro 60 em cima da área, onde julgava estar o grupo do PAIGC. Mas o furriel só lançou uma. Vendo que era muito lento, o capitão preparou ele próprio sete granadas de morteiro e começou rapidamente a lançá-las.

Depois, montada a segurança, João Bacar deslocou-se à tabanca com a intenção de avisar a população que devia sair das casas e fugir para a mata.

Entretanto o grupo do PAIGC foi-se aproximando de nós, sem nós nos percebermos. O capitão pediu granadas de mão defensivas a Bailo Jau, este não tinha, foi o Fassene Sama que lhas passou para a mão. 

João Bacar tinha acabado de tirar a cavilha de uma quando o PAIGC abriu fogo sobre as nossas posições. Ouviu-se um grito do Furriel Bacar Sissé, tinha sido atingido por estilhaços de uma granada de RPG, que desfizeram um baga-baga. O capitão e eu corremos para o ferido. Vi o capitão baixar-se e, com a mão esquerda, apanhar a arma do Bacar, enquanto mantinha a granada descavilhada apertada na mão direita.

O capitão muito raramente andava com G-3, quase sempre levava a pistola e duas granadas de mão defensivas. Passou por mim, tinha dado talvez dois ou três passos e avistámos o disparo do RPG. Eu estava bem abrigado, protegido por uma raiz de uma árvore. João Bacar ajoelhou-se instantaneamente, o rebentamento deu-se atrás de nós e depois mais rebentamentos, tudo muito rápido.

 O capitão, que estava ajoelhado, a mão esquerda ocupada com a G-3, foi atingido no braço direito cuja mão segurava a granada sem cavilha. Perdeu força, não deve ter conseguido lançá-la e ela rebentou.

Saí da grande raiz que me servia de abrigo, a cerca de cinco metros, e comecei a puxar pelo capitão. Ainda estava vivo. Arrastei-o para uma zona mais segura e ajoelhei-me. A troca de tiros e de granadas prosseguia. Pus a cabeça do capitão em cima das minhas pernas.

- Uai, Nene[6]!

A granada tinha-lhe arrancado a perna direita, a mão direita e esfacelou-lhe a parte direita do tronco. Estava a morrer,  o meu Capitão João Bacar Djaló.

O Furriel Lalo Bailo gritou em mandinga:

- Uai ‘nte Báma, capitom fata[7]!

O Inimigo sabia o que estava a acontecer e intensificou ainda mais o fogo, enquanto o sentíamos mais perto. Era um grupo numeroso e chegámos a pensar que nos queriam apanhar à mão. Aos gritos chamei o Furriel Vicente Pedro da Silva[8]:

–  
Meu furriel, querem apanhar-nos à mão!

A morte do nosso comandante estava a tocar-nos muito, o nosso moral estava em baixo e o grupo do PAIGC cheirava isso.

–  
Calma!    ouviu-se a voz do Furriel Vicente.

Agarrou-me e ao Vicente Malefo e a mais dois ou três, lançou uma granada de mão defensiva e gritou bem alto:

–  
Comandos ao ataque! Cada um dispara dois tiros seguidos de cada vez, tum-tum! Vamos apanhá-los à mão, agora não façam mais tiros!

Com os gritos do nosso furriel começámos a avançar e eles recuaram. Depois, na acalmia que se seguiu, pedimos as evacuações, enquanto nos movimentávamos com o corpo do nosso comandante e carregando os feridos mais graves, o Alferes Justo, que se tinha ferido no joelho ao servir-se dele para apoiar o morteiro, e os Furriéis Bacar Sissé e Dabho.

Quando atravessávamos a bolanha ouvimos o silvo de um Fiat, picou sobre nós, largou uma bomba que só estremeceu tudo à volta e levantou outra vez. O Alferes Justo pegou no banana, o AVP-1[9], e conseguiu entrar em contacto com a esquadrilha. Que éramos nós e que precisávamos de um heli para evacuar os nossos feridos.

Momentos depois, talvez antes ainda das nove horas, fomos sobrevoados por dois 
[helis] , um armado[10] e outro que pousou com uma enfermeira que os transportou para Bissau, para o Hospital Militar.

Quando regressávamos a Tite,  vinha ao nosso encontro uma unidade e, em coluna auto,  fomos transportados para o Inchudé e daqui seguimos numa lancha para Bissau.

Eu vinha com o camuflado empastelado do sangue do meu capitão. No cais, num ambiente de grande tristeza, aguardavam-nos as nossas famílias e muitos amigos nossos.

Três ou quatro dias depois, já não me lembro bem, foi o funeral do João Bacar, que foi uma manifestação que Bissau nunca tinha visto.

Acaba aqui a história dessa grande figura humana, do grande fundador das milícias no sul, na sua terra de Catió. Quando lá estive com os “Fantasmas”, em 1965, com o Alferes Saraiva para operações no Como e em Cufar, o João Bacar escolheu milícias da sua confiança, para aprenderem a ser operacionais. 

O capitão entrou em dezenas de batalhas até acabar a sua vida numa simples patrulha de combate em Jufá, em circunstâncias um pouco estranhas, no dia negro de 16 de Abril de 1971.



Lisboa > Terreiro do Paço > 10 de junho de 1970 > "Dia da Raça" > Ao centro, o Capitão Graduado 'Comando' João Bacar Djaló, comandante da 1.ª Companhia de Comandos Africanos, condecorado com a "Torre e Espada", e que tive oportunidade de cumprimentar em Fá Mandinga, onde, na altura, estava sediada aquela unidade de elite (participou na Op Mar Verde, a invasão anfíbia de Conacri e numerosíssimas outras operações do mais elevado risco; seria morto em combate, meio ano depois,  de ser condecorado com a “Torre e Espada”). 

A segunda figura, da esquerda para a direita é o capitão-tenente Alpoim Calvão, cérebro da Op Mar Verde, que cheguei a ver, mas não conheci, nem de perto nem de longe, nos “paços” do “Comando-Chefe”, na Amura. 

Os restantes elementos da primeira fila, todos eles igualmente condecorados com a “Torre e Espada”, são o furriel Cherno Sissé (Guiné), e, salvo erro, o coronel Hélio Felgas e o ten mil inf José Augusto Ribeiro, cuja província/colónia onde prestavam serviço desconheço.

Fonte: Revista "Guerrilha", junho de 1970 (Publicação editada pelo MNF - Movimento Nacional Feminino. Edição e legendagem:  Mário Migueis da Silva (ex-fur mil rec inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72) (***)


Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério português > Abril de 2006 > Restos de lápides funerárias de soldados portugueses cujos corpos por aqui ficaram. Como o guineense Capitão Comando João Bacar Jaló, natural da Guiné, morto em combate em 16 de Abril de 1971.

Foto (e legenda): © A. Marques Lopes (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do autor ou editor literário:

[1] Nota do editor: João Bacar Jaló nasceu em 2 de outubro de 1929, em Cacine. Foi incorporado no Exército, para o qual se voluntariou, no dia 1 de março de 1949. Em junho de 1951 encontrava-se ao serviço da 2ª CCaç, em Bolama, quando terminou o seu primeiro período militar. Nesse mesmo ano começou a trabalhar na Administração Civil, em Bissau. Em 1952 no Palácio do Governo e até 1958, sempre como funcionário da Administração Civil, em Bissalanca, Antula, Prábis e Safim.

 Entre 1958 e 1961 foi fiscal de fronteira no sul e em seguida desempenhou o cargo de comandante de ronda em Catió, que acumulou com as funções de oficial de diligências do Julgado Municipal. 

Com o início da actividade militar do PAIGG, João Bacar, já com 33 anos, alistou-se novamente, como comandante de Caçadores Naturais da Guiné. Foi graduado em alferes de 2ª linha em 8 de junho de 1965.

Depois foi nomeado comandante da Companhia de Milícias nº. 13 e um ano depois foi promovido a tenente. Depois de ter frequentado um curso de oficiais, João Bacar foi graduado em capitão e passou a comandar a 1ª CCmds Africanos.

 Ao longo da sua vida militar recebeu numerosos louvores. Foram-lhe atribuídas duas Cruzes de Guerra em 1964 e 1965 e era, desde 30Jun1970, Oficial da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito.

[2] O Soldado Abdulai Djaló Cula é natural de Bissau. Pertencia à equipa do Furriel Bacar Sissé que fazia parte do grupo de cerca de 40 homens que foram a Jufa, comandado pelo Capitão João Bacar Jaló.

[3] Dignitário Muçulmano.

[4] Havia a informação que um grupo do PAIGC ia passar a noite de 15 para 16 de abril de 1971 a uma tabanca de balantas, em Jufá, na zona de Tite. O João Bacar estava com um grupo emboscado junto à tabanca. Durante a noite, os cães da tabanca não pararam de ladrar. Quando amanheceu, João Bacar disse: 

“Nós vamos ali à tabanca, conversamos com a população, mas não passámos dali. Porque num sono muito rápido que tive, sonhei que o PAIGC me prendera. Amarraram-me, meteram-me num jipe, e eu consegui saltar do jipe em andamento. No chão, com as mãos e os pés atados não podia correr. O jipe fez marcha atrás, voltaram a apanhar-me e meteram-me outra vez no carro. Quando o carro voltou a andar, seguraram-me, para não me deixarem mexer. O jipe arrancou e acordei. "

Este sonho foi contado pelo João Bacar ao Furriel Braima Bá e ao Soldado Abdulai Djaló Cula, na manhã do dia em que morreu.

[5] Nota do editor: Justo Nascimento.

[6] - Ai, minha Mãe!

[7] - Ai, minha mãe, o meu capitão morreu!

[8] O Vicente Pedro da Silva foi mais tarde promovido a alferes. Talvez devido ás precárias condições em que vivia e cansado da incompreensão que sentia por não ver reconhecida a sua condição de português nascido na Guiné e antigo combatente das Forças Armadas Portuguesas suicidou-se em Lisboa, por volta de 2004.

[9] Nota do editor: Transmissor-receptor.

[10] Nota do editor: Sud Aviation SA-3160 “Alouette III”, c/helicanhão de 20mm, conhecido por “Lobo Mau”.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Parênteses rectos com notas /  Subtítulo / Negritos: LG]
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


Vd. ainda poste de 2 de maio de 2009 > Guiné 63/74 – P4275: Tugas - Quem é quem (4): João Bacar Jaló (1929-1971) (Magalhães Ribeiro)

(***) Vd. poste de 30 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20021: Recortes de imprensa (103): O 10 de Junho de 1970 na Revista Guerrilha, edição do Movimento Nacional Feminino, dirigida por Cecília Supico Pinto (1) (Mário Migueis da Silva)

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23615: Bedanda, região de Tombali, no início da guerra - Parte I: Testemunho de Amadu Djaló (1940-2015), relativo ao período de dezembro de 1962 a junho de 1963

 

Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada. 

Em rigor, o livro (escrito na primeira pessoa, portanto autobiográfico) deveria ter como segundo autor, o nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf  mil,  CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966),  que fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk"... Referindo-se a esse trabalho, o nosso crítico literário, Mário Beja Santos, escreveu aqui (*): 

(...) "Este livro é um sortilégio, sente-se permanentemente o pulsar de uma cumplicidade de alguém que não renega a identidade ou ilude os diferentes níveis da memória e de um outro que escuta, reelabora, clarifica, adensa a trama. O produto final é brilhante, deixa perceber a intimidade do Eu e a disponibilidade do Outro. Fica-se com orgulho pela obra feita pelo Virgínio Briote, o Outro que garante um relato estuante transformado na árvore da vida.
“Guineense, Comando Português” é uma soberba colectânea de memórias, assegura a visão prismática de um fula que se orgulha das suas origens e que se releva apaziguado, propondo a todos os seus leitores guineenses que façam um esforço de reconciliação.

"(...) A dupla Amadú Djaló – Virgínio Briote é um monumento de camaradagem inesquecível, um testemunho que os historiadores não poderão evitar." 



1. Quando o livro foi publicado, Amadu Djaló então com 69 anos, era, como escreveu o seu editor, camarada e "cúmplice", Virgínio Briote, um dos raros sobreviventes que podia falar de todos os anos que durou o conflito, de 1962 até ao fim.


"Incorporado em 1962, percorreu todo o território onde se combatia na então província portuguesa. Futa-Fula, natural de Bafatá, oriundo de famílias da antiga Guiné Francesa, Amadu escolheu um dos lados, combateu no Exército Português, ao lado de milhares de guineenses. (...) Em 1964, ingressou nos Comandos do CTIG e fez parte de um dos primeiros grupos então formados em Brá, perto de Bissau". (...)

É justamente dos primeiros tempos da sua vida militar que queremos falar hoje. Em homenagem à sua memória, e com a devida vénia aos seus herdeiros, à Associação de Coamndos (que oportunamente, ainda em vida do autor, editou livro, entretanto há muito esgotado), e com um especial agradecimento ao Virgínio Briote que nos facultou o "manuscrito" (em formato pdf),  vamos reproduzir aqui alguns excertos, sem as resepctivas fotos,   excertos esses que correspondem ao tempo em que o Amaduy Djaló, sendo soldado condutor auto, esteve na 4ª CCAÇ, em Bedanda, de dezembro de 1962 a junho de 1963 
(pp. 27-35). (Fez a recruta em Bolama, e a instrução de especialidade no CICA/BAC 1, em Bissau; depois de Bedanda, conseguiu a transferência para a 1ª CCAÇ, instalada em Farim a partir de 1 julho de 1963.)

Este é um valioso (e raro) testemunho, escrito na primeira pessoa do singular, sobre os  primeiros tempos da 4ª CCAÇ, em Bedanda, e o início da guerra no sul do território... Repare-se que no final de 1962 ainda se ia do Enxudé,  na região de Quínara até Bedanda, passando por Tite, Buba e Aldeia Formosa, e daqui até Catió e Cacine, em viatura, de viatura, praticamente sem escolta... 

A guerra (oficialmente iniciada em Tite, em 23 de janeiro de 1963) veio alterar complemente o mapa do sul da Guiné, com destaque para os sectores de Bedanda, Catió e Cacine. A administração portuguesa vai perder rapidamente o controlo de uma série de povoações. E o PAIGC começa a pôr os seus primeiros "pioneses" no seu mapa das "áreas libertadas"...


Sem saudades de Bedanda (dez 61/ jun 63)

por Amadu Bailo Djaló


Na 4ª CCaç, em Bedanda

No dia seguinte, 28 de Dezembro de 1962, embarcámos no porto de Bissau, com destino ao Enchudé, para depois seguirmos para Bedanda, para a 4.ª Companhia de Caçadores Indígenas.

Ninguém gostou da colocação. Foi uma viagem silenciosa, sem entusiasmo. No Enxudé, aguardava-nos um jipão com uma pequena guarnição de soldados europeus, chefiados por um 1º cabo.

–   Pessoal, são vocês os condutores que vão para Bedanda? Toca a subir.

Feita a arrumação, prosseguimos para Tite, outra localidade de passagem. Entrámos no quartel e aguardámos pelo almoço, anunciado pelo tocar da corneta. Ninguém tocou na comida, era carne de porco. Em substituição, deram-nos rações de combate. Depois de comermos, seguimos para Bedanda, com passagem pelo porto de Cobumba.

Quando chegámos a Cobumba, no rio Cumbijã, avistámos na outra margem, colegas gesticulando e gritando, em grande alvoroço, muito satisfeitos com a nossa chegada. Éramos nós que os íamos substituir.

As canoas chegaram e despedimo-nos do cabo e do soldado condutor. Responderam que só se iam embora, quando tivéssemos atravessado o rio. Na outra margem fomos recebidos pelos companheiros que vínhamos render, com grande entusiasmo, abraços, galhofeira e conversa animada. E do outro lado do rio vimos os companheiros que nos escoltaram, a acenarem, num adeus de despedida.

Na viagem até ao porto de Cobumba tínhamos sido escoltados por soldados brancos, e nesta, que nos levou a Bedanda, fomos escoltados por soldados negros.

Assim que chegámos ao quartel de Bedanda, fomos à arrecadação para levantar armas, munições, camas, lençóis e cobertores. Íamos começar nova vida e exercer a nossa especialidade de condutores.

No dia seguinte, procedeu-se à distribuição das viaturas. Um condutor foi destacado para o Chugué, outro para Caboxanque e ficámos oito condutores em Bedanda. Sete tiveram carros, jipes e Unimogs, e o outro mais moderno, que era eu, ficou com uma Ford Canada, uma viatura muito velha, que largava um fumo muito negro, com mudanças à esquerda e quente como o inferno. Aguentei-a até à chegada do alferes Mendes.

O alferes tinha sido meu instrutor na recruta, em Bolama, e dedicava-me amizade. Quando, de manhã, íamos para a instrução, trazia sempre dois pregos, um para ele e outro para mim.

Ficou muito surpreendido quando me viu entre os colegas ali presentes.

– Amadu, tu aqui, em Bedanda?

Contou que, no regresso das férias em Portugal, tinha passado na 4.ª repartição do QG e, quando procurou saber do meu paradeiro, informaram-no que eu tinha sido colocado no Gabu.

Não lhe dei a conhecer o que tinha acontecido sobre a minha colocação em Bedanda, disse-lhe só que tinha sido eu quem tinha pedido para ser colocado aqui. Uma mentira minha, para evitar complicações.

Mas, regressando às viaturas. O alferes Mendes perguntou:

– Já tens carro?

 – Tenho, sim, meu alferes. É aquele, ali em frente   
  apontei.

 – Aquele ? Vai chamar o nosso sargento-mecânico.

Na presença deste, disse-lhe o alferes:

 
   Arranje outra viatura para o Amadu. É um soldado da minha confiança e nas colunas passa a sair comigo.

E em vez da velha Ford Canada passei a conduzir um Unimog 411.

A minha primeira saída ocorreu nos primeiros dias de Janeiro de 1963, não me lembro agora exactamente da data. Pelas 20h00, uma força constituída por um pelotão de militares africanos, com furriéis europeus, comandado pelo alferes Mendes e outro de milícias, partiu de Bedanda em direcção a Cabedú, em cinco viaturas, quatro Unimogues e um jipe, conduzido por mim.

Chegados ao cruzamento de Cafal, pelas 23h00, os pelotões seguiram a pé, embrenhando-se na mata e nós, os condutores, trouxemos as viaturas para Cabedú, um percurso que não demorou meia- hora.

Quando chegámos arrumámos as viaturas, dispostos a dormir, o que foi impossível com tantos mosquitos. Tivemos que acender uma fogueira, e estivemos acordados até quase às 05h00 da manhã, altura em que fomos ao encontro da patrulha.

Saímos da estrada no local onde os tínhamos deixado e seguimos a picada que tinham tomado. Antes de atingirmos Cafal Nalu, Bacar Sambu, o condutor mais antigo em Bedanda, e que, por isso, caminhava à frente, viu na estrada um objecto estranho. Evitou tocá-lo e a seguir parou. A minha viatura seguia atrás da dele e o Bacar fez-me sinal para parar. O tal objecto ficou debaixo do pára-choques do meu jipe.

– Apanha aquela coisa    disse-me o Bacar.

Ao abaixar-me para ver o que era, senti o meu coração bater mais depressa. Levantei-me rapidamente e perguntei-lhe o que era aquilo?

 
  Não sei  respondeu Bacar. – Tens medo?

Claro que tinha. Bacar saiu do Unimog, aproximou-se e, quando ia apanhar o objecto, pedi-lhe para me deixar primeiro tirar o jipe.

Podia ser uma granada ou qualquer armadilha. Bacar começou a recuar. Tomámos a decisão de não mexer em nada e prosseguir a caminhada para recolher os militares que se encontravam em patrulha, passando por Cafal Nalu e Cafal Balanta.


Quando chegámos à ponte avistámos os militares que vinham de Cafine. Entraram para as viaturas e, com o jipe à frente, iniciámos a viagem de regresso para Bedanda, com o alferes Mendes ao meu lado. Depois de passarmos por Cafal Balanta e Cafal Nalu, relatei ao alferes que tínhamos visto na estrada um objecto que nos pareceu suspeito. Que parecia uma garrafa de plástico, pequena, de cor preta, com uma tampa verde, que estava aberta, com uma fita vermelha pendente.

Quando chegámos ao local, o alferes parou a uma certa distância e foi, a pé, examinar o objecto. Vi-o tirar a pistola e depois de três ou quatro tiros, ouviu-se uma explosão.

 
  É a granada espanhola que perdi na caminhada  disse um furriel.


Mutma, prisioneiro em Cacine

Cacine era uma povoação agradável, a população era quase toda de etnia nalu e, na altura, tinha um pelotão independente [1], comandado por um alferes chamado Brandão, reforçado com duas secções, uma da nossa 4ª  Companhia de Caçadores. Por isso íamos a Cacine quase todas as semanas.

Na primeira vez que lá fui, chegámos a Cacine cobertos de pó. Perguntámos onde podíamos tomar banho e indicaram-nos uma fonte junto ao arame farpado.

A ajudar a acarretar água para o quartel estava um rapaz da nossa idade, com o corpo coberto de feridas, com marcas de chicotadas, um ar cansado. Julguei que fosse algum militar que tivesse sido castigado. O que terá feito para sofrer castigo tão forte, perguntei para mim. E, curioso, perguntei-lhe o que tinha acontecido.

– Bateram-me   respondeu.

 – Quem te bateu?

– Pessoal da tropa.

 – E porquê?

 
– Sou prisioneiro.

Em Janeiro de 1963, quando estava em Bedanda, secções de tropas europeias e africanas encontravam-se destacadas em algumas tabancas, para a segurança das populações. Havia no Chugué, Boche Cul, Caboxanque, Gadamael Porto e Cacine.

Num dia que me não lembro ao certo[2], uma viatura com um furriel ou 2º sargento e alguns soldados vieram passar o dia ao quartel de Bedanda. À tardinha regressaram a Boche Cul e nessa mesma noite foram atacados a tiro. Um soldado, que estava de sentinela, matou o guerrilheiro que o estava a atacar com uma catana e acabou também por ser morto com uma rajada de tiros disparada por outro guerrilheiro. Quando o comandante da secção ouviu os tiros foi em defesa do soldado, e foi também ele abatido pelo PAIGC. Eram onze ao todo com o furriel. Tiveram dois mortos[3] e a maioria foi ferida.

Nós, em Bedanda, ouvimos os tiros. Organizou-se uma coluna comandada por um alferes e chegámos lá noite escura. Só quando, ao longe, viram as luzes das viaturas, os feridos e sobreviventes saíram do celeiro e aproximaram-se de nós. Passámos lá a noite e no dia seguinte arrancámos para Bedanda, com os dois corpos, os feridos já tinham sido transportados durante a noite para Bedanda. Os corpos ficaram no Unimog a aguardarem que viesse algum heli recolhê-los. Não apareceu, tivemos que os enterrar fora do aquartelamento, junto ao arame farpado de Bedanda.

Houve logo ordem para recolher todas as secções e, três dias depois, já não havia nenhuma destacada nas tabancas. Fui, nessa altura, numa coluna, a conduzir o Unimog que me estava distribuído, levar a secção que estava em Gadamael Porto para Cacine. E fiquei lá com a viatura a arrastar troncos de árvores para fazer os abrigos. O meu serviço passou a ser ir buscar troncos de árvores para a construção de abrigos, que em Cacine, naquele tempo, nem um tinha.

Em Bedanda a situação andava muito tensa, ocorriam, por vezes, denúncias, acusações e espancamentos. Quando soube que em Cacine precisavam de um Unimog, fui ter com o Aaferes Mendes e pedi-lhe para me deixar ir para lá.

Parti no dia seguinte. Cheguei a Cacine para cumprir um período de serviço, que sabia ir ser por pouco tempo. Depois de arranjar alojamento, fui-me lavar à fonte. Quando me dirigia para lá passei junto à prisão e vi o tal moço com o corpo coberto de feridas.

O Mutma, assim se chamava o moço, passou a ir comigo no carro trazer os troncos das árvores. Um dia, o alferes disse que queria um porco, se eu podia arranjar um junto de alguma tabanca.

Em Cacine a população era muçulmana, ninguém criava porcos. Disse ao alferes que eu podia falar com o Mutma, que era balanta, talvez ele soubesse onde se podia arranjar. Fomos em dois carros à tabanca do Mutma e escolhemos um bom porco, que em Bissau podia custar à volta de dois mil escudos e trouxemo-lo por quinhentos. Depois, o Mutma passou a ser minha companhia assídua. Um dia disse-me:

 –   Amadu, lembras-te da vez em que me encontraste na fonte, quando me perguntaste o que é que eu tinha no corpo?

 
   Sim, lembro-me.

– Quando ouvi o ruído das viaturas a regressarem a Bedanda, fiquei satisfeito por te ver ir embora. Tinha medo de ti. Agora voltaste, tiraste-me da prisão, vou contigo a todo o lado, jogo futebol convosco e só volto à prisão quando vou dormir. Antes comia os restos, agora como no refeitório.

– Mutma, as pessoas enganam-se, às vezes.

Mutma acabou por ser libertado e regressou à tabanca dele. Mais tarde, como aquelas tabancas deixaram de ter a protecção da tropa, foram recolhidas pelo PAIGC e vim a saber, já depois do 25 de Abril, que Mutma tinha morrido na guerra.


Condutor, nunca mais

Uma secção pertencente à guarnição de Buba[4], que estava destacada em Gadamael, foi mandada recolher a Cacine, para reforçar o pelotão independente[5], e pediu ao alferes duas viaturas, um jipe e um Unimog, para se deslocarem a Buba, a fim de receberem os salários e trazerem alguns materiais em falta.

Na véspera à noite, por volta das 22h00, fomos encarregados de recolher em Cacoca ou em Sanconha uma secção nossa que se encontrava em patrulha na zona, junto à linha da fronteira.

Chegados a Cacoca, à hora e local combinado, como a patrulha não apareceu até à 01h00 da madrugada, dirigimo-nos para Sanconha, onde ficámos até às 04h00.

Voltámos para trás, a Cacoca, e também não a encontrámos. Como não sabíamos o que se estava a passar com a secção, regressámos ao aquartelamento de Cacine e fui-me deitar.

O furriel atestou a viatura e, mal tinha acabado de adormecer, acordaram-me. Eram mais ou menos 6h30, peguei na viatura e rumámos a Buba. Quando chegámos a Sanconha, fomos alertados pelo guarda alfandegário que os militares da secção que devíamos ter recolhido na noite anterior, tinham regressado por volta das 05h00 e estavam a dormir numa casa ali perto.

O furriel disse-me para os ir acordar e, juntamente com um soldado, levá-los rapidamente a Cacine e que devia regressar logo para retomarmos o nosso caminho para Buba. Assim fiz, peguei na patrulha, levei-a a Cacine e regressei a Sanconha.

Quando chegámos a Gadamael, parámos para entrar o régulo de Froia, Baro Baldé, uma das esposas, três filhas e quatro homens com cinco balaios grandes, cada um com 40 a 50 quilos de noz de cola. Foi nessa altura que eu descobri por que é que eu trazia um atrelado na minha viatura.

Retomámos a marcha. Estávamos na descida para a ponte, no rio Balanazinho, com o sol da manhã a bater-me na cara e adormeci. O carro entrou numa valeta bem funda, inclinou-se e acordei dentro da vala, com um pé no travão e o Unimog inclinado. Parecia-me que estava a sonhar, ninguém se mexia até que ouvi uma voz de mulher a gritar, na língua fula, “Ai, minha mãe, o carro virou”.

Conseguimos pôr a viatura na posição normal e, com a ajuda de todos, tirámos o carro da vala, sem nenhum ferido nem danos e prosseguimos a nossa marcha para Quebo[6], onde se apeou o régulo, a família, os acompanhantes e a carga.

Logo depois da chegada a Buba fui ter com o furriel e disse-lhe que não queria conduzir mais na minha vida, mas como ele não me quis ouvir fui procurar o comandante[7].

– 
Meu comandante, eu nunca mais quero conduzir! – e pousei as chaves da viatura na mesa dele.

– De onde vieste, qual é a tua unidade?

Mandou chamar o furriel e perguntou-lhe o que tinha sucedido. Que tinha havido um pequeno acidente, sem consequências, respondeu.

– Não entregas aqui a chave, entrega-la na tua unidade, em Bedanda, e vou arranjar um condutor para levar a viatura para Cacine    disse o comandante, voltado para mim.

E avisou o furriel que não voltasse a vir a Buba com apenas duas viaturas, que agora era muito perigoso. Que, quando regressássemos iríamos integrados numa coluna.

No dia seguinte, depois do café, partimos numa coluna de seis viaturas, escoltados até Cacine. A minha viatura foi conduzida pelo Madalena, um soldado muito conhecido em toda aquela zona, comigo ao lado dele.

Quando chegámos a Cacine, quando o alferes Brandão me viu sentado ao lado do condutor quis saber o que se tinha passado. Depois, falou comigo, aconselhou-me e voltei a pegar no volante.


Patrulhas em Bedanda

Estive destacado em Cacine cerca de três meses, de Janeiro a Março de 1963, altura em que me mandaram voltar a Bedanda.

Dias depois de regressar fui integrado num grupo de combate da 4ª Companhia de Caçadores, comandado pelo 1º cabo Martins.

O nosso objectivo era patrulhar as tabancas até Incala. Depois de atravessarmos o rio, entrámos em Contubum, uma pequena tabanca balanta, com algumas casas. À porta de uma, estava um homem grande, descalço, barba branca, com um grande pano vermelho que lhe cruzava o tronco, e um barrete vermelho a cobrir-lhe a cabeça, também toda branca. O 1º cabo Queba Sanha disse ao 1º cabo Martins:

– Eu conheço aquele homem, vi-o em Caboxanque. Não sei o que é que ele está aqui a fazer.

Queba e o cabo Martins foram ter com ele e entraram na casa. Martins fazia perguntas, Queba era o intérprete. O que está aqui a fazer, desde quando está aqui na tabanca, se tem visto pessoal do PAIGC, se conhece alguém da guerrilha, se eles vêm cá à tabanca.

Eu encontrava-me à porta, a ouvir a conversa e, a certa altura, o que ouvi foi o barulho de uma estalada. Na varanda da casa, estava um velho, sentado, a mulher, velha também, a cozer uma cabaça e uma menina, filha deles, de 14 ou 15 anos, também sentada, a torcer pontas de um pano novo, daqueles panos com que se vestem.

Com o barulho da estalada, calaram-se todos. Aproximei-me e, quando cheguei junto da menina, vi lágrimas a correrem-lhe pela cara abaixo.

– 
O que é que se passou?    perguntei.

Que tinha sido um rapaz que lhe tinha dado uma bofetada. Porquê, quis eu saber.

Ela tinha as pernas unidas, um soldado quis abri-las, ela fazia força para ele não conseguir e ele deu-lhe um estalo.

Saí e perguntei quem tinha sido o soldado que tinha acabado de sair da casa. Um apontou para outro. Na frente de todos, perguntei-lhe se ele ficava contente se fizessem o mesmo a uma irmã dele. Não respondeu, olhou para o chão.

Entrei na casa e contei o que tinha acontecido ao cabo, que saiu logo, zangado, e disse ao soldado que se voltasse a fazer uma coisa dessas, voltaria sozinho a Bedanda.

Mas as coisas não ficaram por aqui. Quando chegámos à outra tabanca, Rossum Óle, o Queba avisou as pessoas que cada casa lhe tinha que dar cinco galinhas, que as levava quando regressasse. O cabo Martins não contrariou, nem disse nada.

Prosseguimos para Incalá, chegámos entre o meio-dia e a uma hora. Algumas pessoas da tabanca estavam a comer. Quase todos os soldados entraram nas casas, tiraram as malas para fora e abriram-nas, algumas com tiros das Mausers. Tiraram panos novos, dinheiro, ouro, o que puderam. No fim de pilharem as casas deitaram-lhes fogo. No regresso, recolheram as galinhas da outra tabanca. Os únicos que saíram dali sem nada foi o cabo Martins e eu.

Casos destes passaram a ser frequentes e, a partir de certa altura, deixei de me sentir bem em Bedanda.


Noutra saída com o alferes Gonçalves, chegámos de surpresa a uma tabanca de que não lembro o nome. Ninguém ouviu as viaturas. Quando estávamos a chegar junto das casas, ouvimos ruídos de gente a fugir, muita gente, talvez mais de cinquenta pessoas e ainda os vimos a correr para a mata.

O alferes chamava pelo Ansumane, “ó Ansumane, não corram, pá, somos nós, porque estão a fugir?” E gritou alto para nós, “não façam fogo, não façam fogo”. Ninguém disparou.

O alferes sentou-se numa cadeira de bambu, feita por eles, com as mãos na cabeça, quase a chorar. O Ansumane ganhou coragem, regressou com os companheiros à tabanca. Então, o alferes perguntou-lhe:

– Por que é que estavam a fugir? Nós não vos fazemos mal!

Que tinham tido medo, quando nos viram chegar sem eles terem ouvido o barulho dos carros.

– 
E que estão aqui a fazer tantos homens? Morreu alguém?    perguntou o alferes.

– 
Não, nós só estávamos todos reunidos para dar o nome a um bebé, recém-nascido.

Nós sabíamos que era mentira. Não havia farinha e se fosse verdade o que ele estava a dizer, deveria haver muitas bolinhas de farinha de arroz com açúcar e noz de cola e no local não vimos nada disso.

Era uma grande reunião do PAIGC.


Férias em Bafatá

Em bril  [de 1963]
, quando me estava a deslocar para Bafatá para gozar férias, junto da minha família, encontrei em Bambadinca alguns soldados do pelotão independente[8] de Cacine, com quem tinha estado há cerca de um mês. Foram eles próprios que me reconheceram e me chamaram.

 – O que é que vocês estão a fazer aqui?    perguntei, admirado.

Que tinham sido colocados em Bambadinca, responderam, muito contentes.

Uma semana depois, em Bafatá, ouvi contar que algumas viaturas civis de transporte de fruta tinham sido aprisionadas no sul e que um dos ajudantes de motorista[9] tinha sido aprisionado e levado para o PAIGC.
A partir desta altura as viaturas civis deixaram de circular sozinhas.

Depois, quando as férias começaram a aproximar-se do fim,  o meu pensamento estava no regresso a Bedanda.
A terra era bonita, a gente era boa, da minha etnia. Mas estavam a viver-se os primeiros tempos da guerra, andava muita coisa no ar, denunciavam-se pessoas por tudo e por nada.

Despedi-me dos meus pais com as lágrimas a escorrerem-lhes pelas faces e entrei para a camioneta de transportes, que me ia levar para Bissau.

No meu último dia de férias apresentei-me no QG e lembrei-me de procurar o capitão Simões, na 4.ª repartição, para lhe pedir que me tirasse de Bedanda.

Quando entrei no gabinete do capitão apercebi-me que já não era capitão, tinha sido promovido. Fixou-me demoradamente, talvez tentando lembrar-se de onde me conhecia.

– Então, tu ainda estás cá?

– 
Meu major, nós já fomos todos colocados.

– E, agora, o que queres?

– 
Vim cumprimentar o meu major e solicitar mais um favor, que me transferisse de Bedanda.

O major Simões, que tinha um capitão junto dele, virou-se para ele e disse:

– 
Estás a ver o que vais ter de enfrentar nesta repartição? Este soldado apareceu aqui, há três ou quatro meses, a pedir que o tirasse do CICA. E agora, aqui está ele outra vez, a pedir outra transferência. E eu a pensar que ele me vinha agora agradecer.

E, fixando-me:

–  Olha, isto não é assim. Tens que requerer a transferência, indicando para onde pretendes ir.

– 
Meu major, eu já requeri duas vezes. E por duas vezes foi indeferido o meu pedido!

– 
E porquê? Talvez, por falta de substituto ou por ninguém querer ir para lá, não?!

– 
Mas a mim, meu major, ninguém perguntou se eu queria ir para Bedanda! E mandaram-me para lá!

– 
E para onde queres ser transferido?

– 
Para a 1ª CCaç[10], se fosse possível, meu major.

– 
Bem, vou ver, não prometo nada. Vou saber junto do comandante da 1ª CCaç quais as possibilidades. Passa por cá amanhã, pode ser que já haja novidades.

Saí dali, para casa, cheio de esperança. No dia seguinte, ainda não eram 10h00, lá estava eu no QG, à porta da 4.ª Rep.

– 
Meu major, dá licença?

– 
Estás transferido para a 1.ª CCaç    E continuou:

– 
Olha, não sejas ingrato. Se amanhã a 1ª CCaç for transferida para a zona da fronteira com o Senegal, Ingoré, Bigene ou Farim[11], tu vais, ouviste?

Pareceu-me um sonho, uma notícia tão rápida.

– 
Meu major, eu ainda tenho de ir a Bedanda, entregar os materiais que estão à minha responsabilidade. Desculpe o incómodo, meu major, mas eu gostava de levar uma carta para o nosso capitão de Bedanda, indicando os motivos da minha transferência.

– Não vale a pena. Já foste transferido e a informação já foi para Bedanda.

– 
Desculpe a insistência, meu major. Peço encarecidamente que escreva ao nosso capitão de Bedanda, informando sobre a minha transferência.

Pegou num papel, começou a escrever e no fim entregou-mo, com a recomendação de entregar a carta pessoalmente ao capitão de Bedanda[12].

Fui-me apresentando todos os dias no QG, procurando saber da data do barco para Bedanda. Durou cerca de duas semanas esta espera e fiquei a saber que também se encontravam em Bissau dezasseis militares a aguardarem transporte.

Chegado o momento do embarque, com a guia de marcha na mão, compareci, bem cedo, no cais de Bissau. Abraços e lenços de despedida a acenar e o barco afastou-se, lentamente, para sul, rumo a Catió.

Sem saudades de Bedanda

Antes de chegarmos a Catió,  desembarcámos em Bolama. Talvez devido à euforia que sentia, lembrei-me de mostrar aos meus companheiros de viagem a carta do major Simões para o capitão de Bedanda.

– 
Quem te deu essa carta? – perguntou  um colega.

– Foi o nosso major que me conseguiu a transferência para Bissau, para a 1.ª CCaç.

– 
Por que é que não nos disseste nada? Devias falar-nos, para também pedirmos!

– 
Não falei, porque éramos muitos. Se pedisse para todos,  estragava a minha sorte!

Na manhã do dia seguinte desembarcámos em Catió. Agora tínhamos que procurar que no quartel nos arranjassem transporte para Bedanda.

– 
Não disponho de viaturas nem desloco os meus soldados sem ordem expressa de Bissau  informou-nos o capitão.

Não contávamos com esta resposta, mas não podíamos fazer outra coisa se não procurar um local para ficar. Dirigimo-nos para o bairro Príame, onde cada um encontrou hospedagem em casas de amigos ou conhecidos.

Eu fui para casa do João Bacar Jaló[13], que comandava, na altura, os caçadores nativos. Quando lhe falei das nossas dificuldades em arranjar transporte para Bedanda, o João Bacar prontificou-se a escoltar-nos, mas que, primeiro, eu tinha que ir pedir transporte ao administrador.

Na manhã seguinte dirigimo-nos à administração do concelho, onde fomos recebidos pelo administrador.

– Se vocês tiverem escolta, dou-vos a camioneta. Mas, sem escolta, o transporte não se faz!

Escolta já tínhamos, o João Bacar dava-nos. O administrador chamou o seu condutor, o Aliu, e disse-lhe que aprontasse a viatura.

Seguimos para o bairro Príame, onde o João Bacar nos aguardava com os seus homens. João Bacar distribuiu os seus homens, uns à frente e outros atrás, ficando nós, os escoltados sem armas, no meio. Tudo arrumado, seguimos em direcção ao porto de Cobumba, onde chegámos sem qualquer novidade.

Quando chegámos a Cobumba telefonei para o quartel, a dar conhecimento da nossa chegada e pedi que nos mandassem uma viatura. Minutos depois, uma nuvem de pó levantava-se na estrada e anunciava a chegada do nosso transporte.

Entretanto João Bacar avisou-nos que só retiraria quando tivéssemos atravessado o rio para a outra margem. Assim fizemos. Terminada a travessia e montados na viatura, João Bacar e os seus homens acenaram-nos e retiraram-se.

Quando chegámos a Bedanda fomos apresentar-nos. Chegada a minha vez, o 1º sargento disse que tinham recebido uma mensagem com a informação da minha transferência para a 1ª CCaç.

– É verdade, meu sargento, vim entregar o material que estava à minha responsabilidade.

– 
Mas vais fazer serviço até à chegada de barco.

Passados alguns dias chegou um barco carregado com géneros. Tinha sofrido um ataque de que resultou um ferido grave que acabou por morrer e ser enterrado em Bedanda.

Preparei as malas para o regresso que, no meu pensamento, estava para breve. Recebi das mãos do 1.º sargento os pagamentos que me eram devidos e disse-me que partiria no dia a seguir. Não foi assim.

A protecção dos aviões ao barco, por um motivo imprevisto, não se pôde fazer e a viagem teve que ser adiada para dois dias depois. Aproveitando essa disponibilidade, o 1º sargento informou-me que eu iria voltar a entrar de serviço nesse mesmo dia. E eu, disse-lhe que não achava bem.

– Se não te apresentares ao serviço, levas uma porrada!

– Está bem, meu sargento! Posso levar a porrada, mas não faço o serviço!

Mandou-me acompanhá-lo ao gabinete do alferes Gonçalves.

– Este gajo, meu alferes, está hoje de serviço e recusa-se a fazer.

– Não queres fazer o serviço porquê?    perguntou-me o alferes.

– 
Meu alferes, o nosso 1º sargento, pelos serviços prestados até ontem, pagou-me. Mas, pelo serviço de hoje, não me vai pagar, porque embarco amanhã!

O alferes virou-se para o 1º sargento:

– Se lhe pagar, ele, de certo, faz o serviço!

Saímos juntos, cada um para seu lado, eu com ar de vencedor e ele, um tanto comprometido.

Embarquei no dia seguinte, na companhia de três militares, ainda não eram 10h00 da manhã e cheguei a Bissau às 15h00 do outro dia.  (...)

[Seleção / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de edição deste poste: LG. Corrigimos a grafia de alguns topónimos, de acordo com a cartografia portuguesa, e sem desprimor para o trabalho paciente e incansável do Virgíno Briote: Cobumba (e não Cubumba), Enxudé (e não Inchudé), Sanconhá (e não Sancoia)... Por outro lado o nome do prisioneiro balanta deve ser Mutna (e não Mutma), de acordo com o entendimento do Cherno Baldé, nosso assessor para as questões etno-linguísticas. ] 

_____________

Notas do autor (Amadu Bailo Djaló) e do editor literário ou "copydesk"  (Virgínio Briote):

[1] Pelotão de Caçadores 859

[2] Nota do editor: 27 janeiro de 1963, domingo.

[3] Nota do editor: esta secção talvez tenha pertencido à companhia destacada em Cabedú. À data, em Cabedú estava, desde dez62, o Pel Caç 871, encontrando-se o Pel Caç 870 em Bedanda.

[4] CCaç 152

[5] Pel Caç 859

[6] Conhecida na altura por Aldeia Formosa, na qual estava destacado um pelotão da CCaç 152.

[7] Muito provavelmente o Capitão de Infantaria Alberto Blasco Gonçalves

[8] Pel Caç 870.

[9] Chamava-se Caba e a mãe, pouco dias depois, dirigiu-se a Sansalé, Guiné-Conacri e conseguiu convencer os chefes da guerrilha a devolverem-lhe o filho.

[10] Em maio e junho de 1963 ainda instalada em Bissau.

[11] Nota do editor: para onde foi transferida em 01 de julho de 1963.

[12] Nota do editor: nesta ocasião, já devia ser o Capitão de Infantaria Nelson João dos Santos.

[13] Anos mais tarde, comandante da 1.ª CCmds da Guiné.

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Nota do editor LG;

(*) Vd. poste de 8 de julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6694: Notas de leitura (126): "Guineense Comando Português", de Amadú Bailo Djaló (Mário Beja Santos)