Na 4ª CCaç, em Bedanda
No dia seguinte, 28 de Dezembro de 1962, embarcámos no porto de Bissau, com destino ao Enchudé, para depois seguirmos para Bedanda, para a 4.ª Companhia de Caçadores Indígenas.
Ninguém gostou da colocação. Foi uma viagem silenciosa, sem entusiasmo. No Enxudé, aguardava-nos um jipão com uma pequena guarnição de soldados europeus, chefiados por um 1º cabo.
– Pessoal, são vocês os condutores que vão para Bedanda? Toca a subir.
Feita a arrumação, prosseguimos para Tite, outra localidade de passagem. Entrámos no quartel e aguardámos pelo almoço, anunciado pelo tocar da corneta. Ninguém tocou na comida, era carne de porco. Em substituição, deram-nos rações de combate. Depois de comermos, seguimos para Bedanda, com passagem pelo porto de Cobumba.
Quando chegámos a Cobumba, no rio Cumbijã, avistámos na outra margem, colegas gesticulando e gritando, em grande alvoroço, muito satisfeitos com a nossa chegada. Éramos nós que os íamos substituir.
As canoas chegaram e despedimo-nos do cabo e do soldado condutor. Responderam que só se iam embora, quando tivéssemos atravessado o rio. Na outra margem fomos recebidos pelos companheiros que vínhamos render, com grande entusiasmo, abraços, galhofeira e conversa animada. E do outro lado do rio vimos os companheiros que nos escoltaram, a acenarem, num adeus de despedida.
Na viagem até ao porto de Cobumba tínhamos sido escoltados por soldados brancos, e nesta, que nos levou a Bedanda, fomos escoltados por soldados negros.
Assim que chegámos ao quartel de Bedanda, fomos à arrecadação para levantar armas, munições, camas, lençóis e cobertores. Íamos começar nova vida e exercer a nossa especialidade de condutores.
No dia seguinte, procedeu-se à distribuição das viaturas. Um condutor foi destacado para o Chugué, outro para Caboxanque e ficámos oito condutores em Bedanda. Sete tiveram carros, jipes e Unimogs, e o outro mais moderno, que era eu, ficou com uma Ford Canada, uma viatura muito velha, que largava um fumo muito negro, com mudanças à esquerda e quente como o inferno. Aguentei-a até à chegada do alferes Mendes.
O alferes tinha sido meu instrutor na recruta, em Bolama, e dedicava-me amizade. Quando, de manhã, íamos para a instrução, trazia sempre dois pregos, um para ele e outro para mim.
Ficou muito surpreendido quando me viu entre os colegas ali presentes.
– Amadu, tu aqui, em Bedanda?
Contou que, no regresso das férias em Portugal, tinha passado na 4.ª repartição do QG e, quando procurou saber do meu paradeiro, informaram-no que eu tinha sido colocado no Gabu.
Não lhe dei a conhecer o que tinha acontecido sobre a minha colocação em Bedanda, disse-lhe só que tinha sido eu quem tinha pedido para ser colocado aqui. Uma mentira minha, para evitar complicações.
Mas, regressando às viaturas. O alferes Mendes perguntou:
– Já tens carro?
– Tenho, sim, meu alferes. É aquele, ali em frente – apontei.
– Aquele ? Vai chamar o nosso sargento-mecânico.
Na presença deste, disse-lhe o alferes:
– Arranje outra viatura para o Amadu. É um soldado da minha confiança e nas colunas passa a sair comigo.
E em vez da velha Ford Canada passei a conduzir um Unimog 411.
A minha primeira saída ocorreu nos primeiros dias de Janeiro de 1963, não me lembro agora exactamente da data. Pelas 20h00, uma força constituída por um pelotão de militares africanos, com furriéis europeus, comandado pelo alferes Mendes e outro de milícias, partiu de Bedanda em direcção a Cabedú, em cinco viaturas, quatro Unimogues e um jipe, conduzido por mim.
Chegados ao cruzamento de Cafal, pelas 23h00, os pelotões seguiram a pé, embrenhando-se na mata e nós, os condutores, trouxemos as viaturas para Cabedú, um percurso que não demorou meia- hora.
Quando chegámos arrumámos as viaturas, dispostos a dormir, o que foi impossível com tantos mosquitos. Tivemos que acender uma fogueira, e estivemos acordados até quase às 05h00 da manhã, altura em que fomos ao encontro da patrulha.
Saímos da estrada no local onde os tínhamos deixado e seguimos a picada que tinham tomado. Antes de atingirmos Cafal Nalu, Bacar Sambu, o condutor mais antigo em Bedanda, e que, por isso, caminhava à frente, viu na estrada um objecto estranho. Evitou tocá-lo e a seguir parou. A minha viatura seguia atrás da dele e o Bacar fez-me sinal para parar. O tal objecto ficou debaixo do pára-choques do meu jipe.
– Apanha aquela coisa – disse-me o Bacar.
Ao abaixar-me para ver o que era, senti o meu coração bater mais depressa. Levantei-me rapidamente e perguntei-lhe o que era aquilo?
– Não sei – respondeu Bacar. – Tens medo?
Claro que tinha. Bacar saiu do Unimog, aproximou-se e, quando ia apanhar o objecto, pedi-lhe para me deixar primeiro tirar o jipe.
Podia ser uma granada ou qualquer armadilha. Bacar começou a recuar. Tomámos a decisão de não mexer em nada e prosseguir a caminhada para recolher os militares que se encontravam em patrulha, passando por Cafal Nalu e Cafal Balanta.
Quando chegámos à ponte avistámos os militares que vinham de Cafine. Entraram para as viaturas e, com o jipe à frente, iniciámos a viagem de regresso para Bedanda, com o alferes Mendes ao meu lado. Depois de passarmos por Cafal Balanta e Cafal Nalu, relatei ao alferes que tínhamos visto na estrada um objecto que nos pareceu suspeito. Que parecia uma garrafa de plástico, pequena, de cor preta, com uma tampa verde, que estava aberta, com uma fita vermelha pendente.
Quando chegámos ao local, o alferes parou a uma certa distância e foi, a pé, examinar o objecto. Vi-o tirar a pistola e depois de três ou quatro tiros, ouviu-se uma explosão.
– É a granada espanhola que perdi na caminhada – disse um furriel.
Mutma, prisioneiro em Cacine
Cacine era uma povoação agradável, a população era quase toda de etnia nalu e, na altura, tinha um pelotão independente [1], comandado por um alferes chamado Brandão, reforçado com duas secções, uma da nossa 4ª Companhia de Caçadores. Por isso íamos a Cacine quase todas as semanas.
Na primeira vez que lá fui, chegámos a Cacine cobertos de pó. Perguntámos onde podíamos tomar banho e indicaram-nos uma fonte junto ao arame farpado.
A ajudar a acarretar água para o quartel estava um rapaz da nossa idade, com o corpo coberto de feridas, com marcas de chicotadas, um ar cansado. Julguei que fosse algum militar que tivesse sido castigado. O que terá feito para sofrer castigo tão forte, perguntei para mim. E, curioso, perguntei-lhe o que tinha acontecido.
– Bateram-me – respondeu.
– Quem te bateu?
– Pessoal da tropa.
– E porquê?
– Sou prisioneiro.
Em Janeiro de 1963, quando estava em Bedanda, secções de tropas europeias e africanas encontravam-se destacadas em algumas tabancas, para a segurança das populações. Havia no Chugué, Boche Cul, Caboxanque, Gadamael Porto e Cacine.
Num dia que me não lembro ao certo[2], uma viatura com um furriel ou 2º sargento e alguns soldados vieram passar o dia ao quartel de Bedanda. À tardinha regressaram a Boche Cul e nessa mesma noite foram atacados a tiro. Um soldado, que estava de sentinela, matou o guerrilheiro que o estava a atacar com uma catana e acabou também por ser morto com uma rajada de tiros disparada por outro guerrilheiro. Quando o comandante da secção ouviu os tiros foi em defesa do soldado, e foi também ele abatido pelo PAIGC. Eram onze ao todo com o furriel. Tiveram dois mortos[3] e a maioria foi ferida.
Nós, em Bedanda, ouvimos os tiros. Organizou-se uma coluna comandada por um alferes e chegámos lá noite escura. Só quando, ao longe, viram as luzes das viaturas, os feridos e sobreviventes saíram do celeiro e aproximaram-se de nós. Passámos lá a noite e no dia seguinte arrancámos para Bedanda, com os dois corpos, os feridos já tinham sido transportados durante a noite para Bedanda. Os corpos ficaram no Unimog a aguardarem que viesse algum heli recolhê-los. Não apareceu, tivemos que os enterrar fora do aquartelamento, junto ao arame farpado de Bedanda.
Houve logo ordem para recolher todas as secções e, três dias depois, já não havia nenhuma destacada nas tabancas. Fui, nessa altura, numa coluna, a conduzir o Unimog que me estava distribuído, levar a secção que estava em Gadamael Porto para Cacine. E fiquei lá com a viatura a arrastar troncos de árvores para fazer os abrigos. O meu serviço passou a ser ir buscar troncos de árvores para a construção de abrigos, que em Cacine, naquele tempo, nem um tinha.
Em Bedanda a situação andava muito tensa, ocorriam, por vezes, denúncias, acusações e espancamentos. Quando soube que em Cacine precisavam de um Unimog, fui ter com o Aaferes Mendes e pedi-lhe para me deixar ir para lá.
Parti no dia seguinte. Cheguei a Cacine para cumprir um período de serviço, que sabia ir ser por pouco tempo. Depois de arranjar alojamento, fui-me lavar à fonte. Quando me dirigia para lá passei junto à prisão e vi o tal moço com o corpo coberto de feridas.
O Mutma, assim se chamava o moço, passou a ir comigo no carro trazer os troncos das árvores. Um dia, o alferes disse que queria um porco, se eu podia arranjar um junto de alguma tabanca.
Em Cacine a população era muçulmana, ninguém criava porcos. Disse ao alferes que eu podia falar com o Mutma, que era balanta, talvez ele soubesse onde se podia arranjar. Fomos em dois carros à tabanca do Mutma e escolhemos um bom porco, que em Bissau podia custar à volta de dois mil escudos e trouxemo-lo por quinhentos. Depois, o Mutma passou a ser minha companhia assídua. Um dia disse-me:
– Amadu, lembras-te da vez em que me encontraste na fonte, quando me perguntaste o que é que eu tinha no corpo?
– Sim, lembro-me.
– Quando ouvi o ruído das viaturas a regressarem a Bedanda, fiquei satisfeito por te ver ir embora. Tinha medo de ti. Agora voltaste, tiraste-me da prisão, vou contigo a todo o lado, jogo futebol convosco e só volto à prisão quando vou dormir. Antes comia os restos, agora como no refeitório.
– Mutma, as pessoas enganam-se, às vezes.
Mutma acabou por ser libertado e regressou à tabanca dele. Mais tarde, como aquelas tabancas deixaram de ter a protecção da tropa, foram recolhidas pelo PAIGC e vim a saber, já depois do 25 de Abril, que Mutma tinha morrido na guerra.
Condutor, nunca mais
Uma secção pertencente à guarnição de Buba[4], que estava destacada em Gadamael, foi mandada recolher a Cacine, para reforçar o pelotão independente[5], e pediu ao alferes duas viaturas, um jipe e um Unimog, para se deslocarem a Buba, a fim de receberem os salários e trazerem alguns materiais em falta.
Na véspera à noite, por volta das 22h00, fomos encarregados de recolher em Cacoca ou em Sanconha uma secção nossa que se encontrava em patrulha na zona, junto à linha da fronteira.
Chegados a Cacoca, à hora e local combinado, como a patrulha não apareceu até à 01h00 da madrugada, dirigimo-nos para Sanconha, onde ficámos até às 04h00.
Voltámos para trás, a Cacoca, e também não a encontrámos. Como não sabíamos o que se estava a passar com a secção, regressámos ao aquartelamento de Cacine e fui-me deitar.
O furriel atestou a viatura e, mal tinha acabado de adormecer, acordaram-me. Eram mais ou menos 6h30, peguei na viatura e rumámos a Buba. Quando chegámos a Sanconha, fomos alertados pelo guarda alfandegário que os militares da secção que devíamos ter recolhido na noite anterior, tinham regressado por volta das 05h00 e estavam a dormir numa casa ali perto.
O furriel disse-me para os ir acordar e, juntamente com um soldado, levá-los rapidamente a Cacine e que devia regressar logo para retomarmos o nosso caminho para Buba. Assim fiz, peguei na patrulha, levei-a a Cacine e regressei a Sanconha.
Quando chegámos a Gadamael, parámos para entrar o régulo de Froia, Baro Baldé, uma das esposas, três filhas e quatro homens com cinco balaios grandes, cada um com 40 a 50 quilos de noz de cola. Foi nessa altura que eu descobri por que é que eu trazia um atrelado na minha viatura.
Retomámos a marcha. Estávamos na descida para a ponte, no rio Balanazinho, com o sol da manhã a bater-me na cara e adormeci. O carro entrou numa valeta bem funda, inclinou-se e acordei dentro da vala, com um pé no travão e o Unimog inclinado. Parecia-me que estava a sonhar, ninguém se mexia até que ouvi uma voz de mulher a gritar, na língua fula, “Ai, minha mãe, o carro virou”.
Conseguimos pôr a viatura na posição normal e, com a ajuda de todos, tirámos o carro da vala, sem nenhum ferido nem danos e prosseguimos a nossa marcha para Quebo[6], onde se apeou o régulo, a família, os acompanhantes e a carga.
Logo depois da chegada a Buba fui ter com o furriel e disse-lhe que não queria conduzir mais na minha vida, mas como ele não me quis ouvir fui procurar o comandante[7].
– Meu comandante, eu nunca mais quero conduzir! – e pousei as chaves da viatura na mesa dele.
– De onde vieste, qual é a tua unidade?
Mandou chamar o furriel e perguntou-lhe o que tinha sucedido. Que tinha havido um pequeno acidente, sem consequências, respondeu.
– Não entregas aqui a chave, entrega-la na tua unidade, em Bedanda, e vou arranjar um condutor para levar a viatura para Cacine – disse o comandante, voltado para mim.
E avisou o furriel que não voltasse a vir a Buba com apenas duas viaturas, que agora era muito perigoso. Que, quando regressássemos iríamos integrados numa coluna.
No dia seguinte, depois do café, partimos numa coluna de seis viaturas, escoltados até Cacine. A minha viatura foi conduzida pelo Madalena, um soldado muito conhecido em toda aquela zona, comigo ao lado dele.
Quando chegámos a Cacine, quando o alferes Brandão me viu sentado ao lado do condutor quis saber o que se tinha passado. Depois, falou comigo, aconselhou-me e voltei a pegar no volante.
Patrulhas em Bedanda
Estive destacado em Cacine cerca de três meses, de Janeiro a Março de 1963, altura em que me mandaram voltar a Bedanda.
Dias depois de regressar fui integrado num grupo de combate da 4ª Companhia de Caçadores, comandado pelo 1º cabo Martins.
O nosso objectivo era patrulhar as tabancas até Incala. Depois de atravessarmos o rio, entrámos em Contubum, uma pequena tabanca balanta, com algumas casas. À porta de uma, estava um homem grande, descalço, barba branca, com um grande pano vermelho que lhe cruzava o tronco, e um barrete vermelho a cobrir-lhe a cabeça, também toda branca. O 1º cabo Queba Sanha disse ao 1º cabo Martins:
– Eu conheço aquele homem, vi-o em Caboxanque. Não sei o que é que ele está aqui a fazer.
Queba e o cabo Martins foram ter com ele e entraram na casa. Martins fazia perguntas, Queba era o intérprete. O que está aqui a fazer, desde quando está aqui na tabanca, se tem visto pessoal do PAIGC, se conhece alguém da guerrilha, se eles vêm cá à tabanca.
Eu encontrava-me à porta, a ouvir a conversa e, a certa altura, o que ouvi foi o barulho de uma estalada. Na varanda da casa, estava um velho, sentado, a mulher, velha também, a cozer uma cabaça e uma menina, filha deles, de 14 ou 15 anos, também sentada, a torcer pontas de um pano novo, daqueles panos com que se vestem.
Com o barulho da estalada, calaram-se todos. Aproximei-me e, quando cheguei junto da menina, vi lágrimas a correrem-lhe pela cara abaixo.
– O que é que se passou? – perguntei.
Que tinha sido um rapaz que lhe tinha dado uma bofetada. Porquê, quis eu saber.
Ela tinha as pernas unidas, um soldado quis abri-las, ela fazia força para ele não conseguir e ele deu-lhe um estalo.
Saí e perguntei quem tinha sido o soldado que tinha acabado de sair da casa. Um apontou para outro. Na frente de todos, perguntei-lhe se ele ficava contente se fizessem o mesmo a uma irmã dele. Não respondeu, olhou para o chão.
Entrei na casa e contei o que tinha acontecido ao cabo, que saiu logo, zangado, e disse ao soldado que se voltasse a fazer uma coisa dessas, voltaria sozinho a Bedanda.
Mas as coisas não ficaram por aqui. Quando chegámos à outra tabanca, Rossum Óle, o Queba avisou as pessoas que cada casa lhe tinha que dar cinco galinhas, que as levava quando regressasse. O cabo Martins não contrariou, nem disse nada.
Prosseguimos para Incalá, chegámos entre o meio-dia e a uma hora. Algumas pessoas da tabanca estavam a comer. Quase todos os soldados entraram nas casas, tiraram as malas para fora e abriram-nas, algumas com tiros das Mausers. Tiraram panos novos, dinheiro, ouro, o que puderam. No fim de pilharem as casas deitaram-lhes fogo. No regresso, recolheram as galinhas da outra tabanca. Os únicos que saíram dali sem nada foi o cabo Martins e eu.
Casos destes passaram a ser frequentes e, a partir de certa altura, deixei de me sentir bem em Bedanda.
Noutra saída com o alferes Gonçalves, chegámos de surpresa a uma tabanca de que não lembro o nome. Ninguém ouviu as viaturas. Quando estávamos a chegar junto das casas, ouvimos ruídos de gente a fugir, muita gente, talvez mais de cinquenta pessoas e ainda os vimos a correr para a mata.
O alferes chamava pelo Ansumane, “ó Ansumane, não corram, pá, somos nós, porque estão a fugir?” E gritou alto para nós, “não façam fogo, não façam fogo”. Ninguém disparou.
O alferes sentou-se numa cadeira de bambu, feita por eles, com as mãos na cabeça, quase a chorar. O Ansumane ganhou coragem, regressou com os companheiros à tabanca. Então, o alferes perguntou-lhe:
– Por que é que estavam a fugir? Nós não vos fazemos mal!
Que tinham tido medo, quando nos viram chegar sem eles terem ouvido o barulho dos carros.
– E que estão aqui a fazer tantos homens? Morreu alguém? – perguntou o alferes.
– Não, nós só estávamos todos reunidos para dar o nome a um bebé, recém-nascido.
Nós sabíamos que era mentira. Não havia farinha e se fosse verdade o que ele estava a dizer, deveria haver muitas bolinhas de farinha de arroz com açúcar e noz de cola e no local não vimos nada disso.
Era uma grande reunião do PAIGC.
Férias em Bafatá
Em bril [de 1963], quando me estava a deslocar para Bafatá para gozar férias, junto da minha família, encontrei em Bambadinca alguns soldados do pelotão independente[8] de Cacine, com quem tinha estado há cerca de um mês. Foram eles próprios que me reconheceram e me chamaram.
– O que é que vocês estão a fazer aqui? – perguntei, admirado.
Que tinham sido colocados em Bambadinca, responderam, muito contentes.
Uma semana depois, em Bafatá, ouvi contar que algumas viaturas civis de transporte de fruta tinham sido aprisionadas no sul e que um dos ajudantes de motorista[9] tinha sido aprisionado e levado para o PAIGC. A partir desta altura as viaturas civis deixaram de circular sozinhas.
Depois, quando as férias começaram a aproximar-se do fim, o meu pensamento estava no regresso a Bedanda. A terra era bonita, a gente era boa, da minha etnia. Mas estavam a viver-se os primeiros tempos da guerra, andava muita coisa no ar, denunciavam-se pessoas por tudo e por nada.
Despedi-me dos meus pais com as lágrimas a escorrerem-lhes pelas faces e entrei para a camioneta de transportes, que me ia levar para Bissau.
No meu último dia de férias apresentei-me no QG e lembrei-me de procurar o capitão Simões, na 4.ª repartição, para lhe pedir que me tirasse de Bedanda.
Quando entrei no gabinete do capitão apercebi-me que já não era capitão, tinha sido promovido. Fixou-me demoradamente, talvez tentando lembrar-se de onde me conhecia.
– Então, tu ainda estás cá?
– Meu major, nós já fomos todos colocados.
– E, agora, o que queres?
– Vim cumprimentar o meu major e solicitar mais um favor, que me transferisse de Bedanda.
O major Simões, que tinha um capitão junto dele, virou-se para ele e disse:
– Estás a ver o que vais ter de enfrentar nesta repartição? Este soldado apareceu aqui, há três ou quatro meses, a pedir que o tirasse do CICA. E agora, aqui está ele outra vez, a pedir outra transferência. E eu a pensar que ele me vinha agora agradecer.
E, fixando-me:
– Olha, isto não é assim. Tens que requerer a transferência, indicando para onde pretendes ir.
– Meu major, eu já requeri duas vezes. E por duas vezes foi indeferido o meu pedido!
– E porquê? Talvez, por falta de substituto ou por ninguém querer ir para lá, não?!
– Mas a mim, meu major, ninguém perguntou se eu queria ir para Bedanda! E mandaram-me para lá!
– E para onde queres ser transferido?
– Para a 1ª CCaç[10], se fosse possível, meu major.
– Bem, vou ver, não prometo nada. Vou saber junto do comandante da 1ª CCaç quais as possibilidades. Passa por cá amanhã, pode ser que já haja novidades.
Saí dali, para casa, cheio de esperança. No dia seguinte, ainda não eram 10h00, lá estava eu no QG, à porta da 4.ª Rep.
– Meu major, dá licença?
– Estás transferido para a 1.ª CCaç – E continuou:
– Olha, não sejas ingrato. Se amanhã a 1ª CCaç for transferida para a zona da fronteira com o Senegal, Ingoré, Bigene ou Farim[11], tu vais, ouviste?
Pareceu-me um sonho, uma notícia tão rápida.
– Meu major, eu ainda tenho de ir a Bedanda, entregar os materiais que estão à minha responsabilidade. Desculpe o incómodo, meu major, mas eu gostava de levar uma carta para o nosso capitão de Bedanda, indicando os motivos da minha transferência.
– Não vale a pena. Já foste transferido e a informação já foi para Bedanda.
– Desculpe a insistência, meu major. Peço encarecidamente que escreva ao nosso capitão de Bedanda, informando sobre a minha transferência.
Pegou num papel, começou a escrever e no fim entregou-mo, com a recomendação de entregar a carta pessoalmente ao capitão de Bedanda[12].
Fui-me apresentando todos os dias no QG, procurando saber da data do barco para Bedanda. Durou cerca de duas semanas esta espera e fiquei a saber que também se encontravam em Bissau dezasseis militares a aguardarem transporte.
Chegado o momento do embarque, com a guia de marcha na mão, compareci, bem cedo, no cais de Bissau. Abraços e lenços de despedida a acenar e o barco afastou-se, lentamente, para sul, rumo a Catió.
Sem saudades de Bedanda
Antes de chegarmos a Catió, desembarcámos em Bolama. Talvez devido à euforia que sentia, lembrei-me de mostrar aos meus companheiros de viagem a carta do major Simões para o capitão de Bedanda.
– Quem te deu essa carta? – perguntou um colega.
– Foi o nosso major que me conseguiu a transferência para Bissau, para a 1.ª CCaç.
– Por que é que não nos disseste nada? Devias falar-nos, para também pedirmos!
– Não falei, porque éramos muitos. Se pedisse para todos, estragava a minha sorte!
Na manhã do dia seguinte desembarcámos em Catió. Agora tínhamos que procurar que no quartel nos arranjassem transporte para Bedanda.
– Não disponho de viaturas nem desloco os meus soldados sem ordem expressa de Bissau– informou-nos o capitão.
Não contávamos com esta resposta, mas não podíamos fazer outra coisa se não procurar um local para ficar. Dirigimo-nos para o bairro Príame, onde cada um encontrou hospedagem em casas de amigos ou conhecidos.
Eu fui para casa do João Bacar Jaló[13], que comandava, na altura, os caçadores nativos. Quando lhe falei das nossas dificuldades em arranjar transporte para Bedanda, o João Bacar prontificou-se a escoltar-nos, mas que, primeiro, eu tinha que ir pedir transporte ao administrador.
Na manhã seguinte dirigimo-nos à administração do concelho, onde fomos recebidos pelo administrador.
– Se vocês tiverem escolta, dou-vos a camioneta. Mas, sem escolta, o transporte não se faz!
Escolta já tínhamos, o João Bacar dava-nos. O administrador chamou o seu condutor, o Aliu, e disse-lhe que aprontasse a viatura.
Seguimos para o bairro Príame, onde o João Bacar nos aguardava com os seus homens. João Bacar distribuiu os seus homens, uns à frente e outros atrás, ficando nós, os escoltados sem armas, no meio. Tudo arrumado, seguimos em direcção ao porto de Cobumba, onde chegámos sem qualquer novidade.
Quando chegámos a Cobumba telefonei para o quartel, a dar conhecimento da nossa chegada e pedi que nos mandassem uma viatura. Minutos depois, uma nuvem de pó levantava-se na estrada e anunciava a chegada do nosso transporte.
Entretanto João Bacar avisou-nos que só retiraria quando tivéssemos atravessado o rio para a outra margem. Assim fizemos. Terminada a travessia e montados na viatura, João Bacar e os seus homens acenaram-nos e retiraram-se.
Quando chegámos a Bedanda fomos apresentar-nos. Chegada a minha vez, o 1º sargento disse que tinham recebido uma mensagem com a informação da minha transferência para a 1ª CCaç.
– É verdade, meu sargento, vim entregar o material que estava à minha responsabilidade.
– Mas vais fazer serviço até à chegada de barco.
Passados alguns dias chegou um barco carregado com géneros. Tinha sofrido um ataque de que resultou um ferido grave que acabou por morrer e ser enterrado em Bedanda.
Preparei as malas para o regresso que, no meu pensamento, estava para breve. Recebi das mãos do 1.º sargento os pagamentos que me eram devidos e disse-me que partiria no dia a seguir. Não foi assim.
A protecção dos aviões ao barco, por um motivo imprevisto, não se pôde fazer e a viagem teve que ser adiada para dois dias depois. Aproveitando essa disponibilidade, o 1º sargento informou-me que eu iria voltar a entrar de serviço nesse mesmo dia. E eu, disse-lhe que não achava bem.
– Se não te apresentares ao serviço, levas uma porrada!
– Está bem, meu sargento! Posso levar a porrada, mas não faço o serviço!
Mandou-me acompanhá-lo ao gabinete do alferes Gonçalves.
– Este gajo, meu alferes, está hoje de serviço e recusa-se a fazer.
– Não queres fazer o serviço porquê? – perguntou-me o alferes.
– Meu alferes, o nosso 1º sargento, pelos serviços prestados até ontem, pagou-me. Mas, pelo serviço de hoje, não me vai pagar, porque embarco amanhã!
O alferes virou-se para o 1º sargento:
– Se lhe pagar, ele, de certo, faz o serviço!
Saímos juntos, cada um para seu lado, eu com ar de vencedor e ele, um tanto comprometido.
Embarquei no dia seguinte, na companhia de três militares, ainda não eram 10h00 da manhã e cheguei a Bissau às 15h00 do outro dia. (...)
[Seleção / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de edição deste poste: LG. Corrigimos a grafia de alguns topónimos, de acordo com a cartografia portuguesa, e sem desprimor para o trabalho paciente e incansável do Virgíno Briote: Cobumba (e não Cubumba), Enxudé (e não Inchudé), Sanconhá (e não Sancoia)... Por outro lado o nome do prisioneiro balanta deve ser Mutna (e não Mutma), de acordo com o entendimento do Cherno Baldé, nosso assessor para as questões etno-linguísticas. ]
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Notas do autor (Amadu Bailo Djaló) e do editor literário ou "copydesk" (Virgínio Briote):
[1] Pelotão de Caçadores 859
[2] Nota do editor: 27 janeiro de 1963, domingo.
[3] Nota do editor: esta secção talvez tenha pertencido à companhia destacada em Cabedú. À data, em Cabedú estava, desde dez62, o Pel Caç 871, encontrando-se o Pel Caç 870 em Bedanda.
[4] CCaç 152
[5] Pel Caç 859
[6] Conhecida na altura por Aldeia Formosa, na qual estava destacado um pelotão da CCaç 152.
[7] Muito provavelmente o Capitão de Infantaria Alberto Blasco Gonçalves
[8] Pel Caç 870.
[9] Chamava-se Caba e a mãe, pouco dias depois, dirigiu-se a Sansalé, Guiné-Conacri e conseguiu convencer os chefes da guerrilha a devolverem-lhe o filho.
[10] Em maio e junho de 1963 ainda instalada em Bissau.
[11] Nota do editor: para onde foi transferida em 01 de julho de 1963.
[12] Nota do editor: nesta ocasião, já devia ser o Capitão de Infantaria Nelson João dos Santos.
[13] Anos mais tarde, comandante da 1.ª CCmds da Guiné. (*) Vd. poste de 8 de julho de 2010 >