Queridos amigos,
Permito-me recordar ao leitor que a análise do Boletim Oficial, tal como estamos a fazer, numa longa sequência cronológica, não passa de um mero instrumento de análise, uma ferramenta que deve ser usada com a necessária dose de circunspeção e prudência. Vimos atrás como houve um governador como Velez Caroço que mandava publicar todo o expediente militar; governadores houve que entenderam que não devia ficar plasmado no Boletim Oficial acontecimentos do tipo insurrecional; Carvalho Viegas é assumidamente um governador respeitador das regras do Império, em momento algum antes se verificara este turbilhão de processos disciplinares; para o investigador, é bastante útil folhear estes documentos para ver como se processou o início da guerra na Europa, como emergiram as dificuldades do abastecimento e como se deu a resposta mais conveniente. Certo e seguro, Carvalho Viegas deixou uma administração mais competente do que a que recebera. O seu sucessor, Ricardo Vaz Monteiro, irá potenciar essa energia, e não será por casualidade que o governador Sarmento Rodrigues será confrontado com uma administração de gente melhor preparada, que irá seguir o seu entusiasmo de tornar a colónia uma parcela visível do Império.
Um abraço do
Mário
A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Colónia da Guiné, finais de 1940, princípios de 1941 (52)
Mário Beja Santos
É o último ano da governação de Carvalho Viegas, é insuficiente, como é natural, apreciar o seu tempo de governação com base no Boletim Oficial, Carvalho Viegas não se coibirá de vir a escrever todo o seu mandato em vários volumes, a tentação hagiográfica é enorme, reconheça-se, porém, que há dados fundamentais da sua governação que o seu substituto, o Major Ricardo Vaz Monteiro, irá gerir e com proficiência. Carvalho Viegas apreciava a retórica e mostrou sempre um forte pendor para exarar doutrina no Boletim Oficial, quis deixar a imagem de um homem que se pautava pela equidade, pela independência face a outros interesses, que era dotado de uma integridade inflexível. Vem isto a propósito do que consta do Boletim Oficial n.º 34, de 19 de agosto de 1940, sai do seu punho uma decisão sobre um pedido do presidente do Tribunal Militar Territorial da Colónia da Guiné, pedia-se ao Governador autorização para poder ser demandado criminalmente o atual Administrador do Concelho de Bissau, ex-Administrador da Circunscrição dos Bijagós.
Matéria de facto, segundo o Promotor de Justiça, era de que o primeiro divulgador do boato do encerramento das operações da Companhia Agrícola e Fabril da Guiné fora Pereira Cardoso, boato que teve como porta-voz em Bubaque António Pires Leitão. Observa o governador:
“O Administrador Pereira Cardoso não faltou à verdade porquanto a referida companhia encerrou os seus estabelecimentos na ilha de Sogá no fim do mês de setembro, mês e que deflagrou a guerra europeia, despedindo centenas de indígenas trabalhadores e a seguir na ilha de Rubane e outras, além de denunciar os contratos com todos os empregados, por ordem da sua sede social em Lisboa, prevendo o seu despedimento forçado pelas circunstâncias de não poder colocar convenientemente os seus produtos. De resto, a todos sabendo as condições em que a companhia labora a sua fábrica, era natural e intuitivo que como o Administrador Pereira Cardoso pensassem, de mais a mais os factos mostrando a sua realidade que o futuro mais veio confirmar.
A presunção do Administrador é, pois, lógica, ponderosa e concordante com a situação de ocasião e futura o que ilide em absoluto a acusação.
Depois, há a considerar o que o caso tem de ridículo se querer criminar um administrador que procura alterar a tranquilidade pública – e numa fábrica e seus estabelecimentos com uns seis empregados civilizados e indígenas que do assunto se alheiam! – quando é o número um dos seus deveres manter na Área da Circunscrição a ordem e a tranquilidade pública.”
E já no final do seu despacho dirá Carvalho Viegas que não pode permitir que se desprestigie as suas autoridades deixando-as ir à barra do tribunal quando reconheça que são vítimas da função difícil e ingrata de administrar, sempre sujeitas às calunias e deturpações dos seus atos. E invocando a legislação competente, o governador denega autorização.
Passando agora para o suplemento n.º 43 referente ao Boletim Oficial n.º 25, de 23 de outubro, o Governador vai mandar deportar um rol de gente. Lendo-se a portaria n.º 162, fica-se a saber que indígenas de raça Papel, do regulado de Bandim, instigados pelos seus balobeiros, levaram a efeito vários crimes, fazendo reviver práticas de costumes bárbaros, havia que reprimir pronta e energicamente o ressuscitar destes famigerados antigos costumes. E determina a deportação para S. Tomé e Príncipe de um conjunto de instigadores e autores e só de autores, eram penas que iam de 1 ano a 28 anos de deportação.
No Boletim Oficial n.º 51, de 16 de dezembro, novo rasgo de firmeza, extinção de um regulado. Vejamos qual a matéria de facto:
“Para obstar aos inconvenientes da luta política travada entre os pretendentes ao regulado de Corlá, Farim, resolveu o governo da colónia que, a título experimental, fosse o território de Corlá anexado ao regulado de Caresse e, assim, acabasse um mal-estar que prometia prolongar-se indefinidamente, embora um dos pretendentes fosse nomeado régulo.
De facto, durante um ano nada se notou de anormal na vida do regulado, até que, ultimamente, por manobras de Demba, um dos pretendentes, apareceu em cena um seu irmão, filho do falecido régulo Djabu, de nome Sambaru, que até então tinha vivido na obscuridade no território francês.
Esta figura apagada que os manejos políticos atiraram para o primeiro plano, apresentou-se agora como pretendente ao lugar e, o que é mais interessante, na iminência de verem para sempre frustrado o seu plano com a anexação definitiva do regulado de Corlá ao de Caresse, todos os pretendentes se apresentaram em Bolama numa frente única e, esquecidos das suas dissensões, todos pretendem que o Governo escolha um deles para régulo de Corlá.
Esta última fase mostra claramente as intenções dos pretendentes em quererem, por todos os meios ao seu alcance, evitar que a região de Corlá seja anexada ao regulado do Caresse e, por consequência, possam desfrutar das vantagens que, por um momentâneo acordo, seriam equitativamente distribuídas por todos, embora um só fosse de facto o régulo e os outros os seus satélites.
Este arranjo, porém, não convém nem aos superiores interesses do Estado nem às populações indígenas. Não convém às populações porque, para satisfazer às necessidades sempre crescentes dos três pretendentes redobrariam as exigências e, por conseguinte, a incidência de maiores imposições aos habitantes da região.
Não convém ao Estado porque, sentindo-se sobrecarregados com os pedidos e exigências do futuro régulo, unido num esforço comum com os outros pretendentes e respetivas comitivas, dentro de pouco tempo os habitantes da região começariam a emigrar para outros regulados ou, o que seria mais grave, para vizinha colónia francesa.
Por todos estes motivos, sendo função do Governo da colónia proteger as populações indígenas contras as arbitrariedades e prepotência dos régulos que, muitas vezes, por excessivas provocam perturbações grandes no meio social indígena e facilitam o nomadismo que caracteriza especialmente os indígenas da raça Fula e, por vezes, os da raça Mandinga, habitando regiões próximas da fronteira.
Não convindo que os elementos perturbadores continuem permanecendo na região onde a sua acção política poderá ocasionar graves prejuízos, não só aos habitantes como também aos interesses do Estado; o Governo da colónia, no uso das atribuições que lhe estão acometidas, determina que seja extinto o regulado de Corlá, cuja região fica anexada ao regulado de Caresse; que, por sua permanência na região de Corlá se tornara inconveniente, aos indígenas Taibo Djamanca, Demba Djamanca e Sambaru Djamanca, seja fixada residência na circunscrição civil de Gabu por dois anos.”
O novo ano promete, veremos logo em fevereiro, por mão do encarregado do Governo, Armando Augusto Gonçalves de Morais e Castro (Carvalho Viegas partiu, Ricardo Vaz Monteiro chegará mais tarde). Publica legislação criando o parque Doutor Vieira Machado, algo de surpreendente e até pelo uso de uma terminologia que os ambientalistas de hoje certamente darão concordância.
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 3 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27180: Historiografia da presença portuguesa em África (495): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, primeiros meses de 1940 (51) (Mário Beja Santos)