1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2013:
Queridos amigos,
É um relatório bem fundamentado, com opiniões naturalmente controversas, apresenta vasta e oportuna bibliografia. Lê-se num ápice, é uma linguagem desempoeirada, por vezes coloquial.
Interessante seria cruzar estes dados com as informações em poder da PIDE/DGS. A polícia política, graças a Fragoso Allas, imprimiu um fôlego novo à natureza das informações obtidas fundamentalmente através dos comerciantes que calcorreavam os campos no Senegal e na República da Guiné.
Certo e seguro, temos aqui um documento à disposição do historiador e posso assegurar-vos que o que se escreve sobre as religiões está mesmo a pedir nova edição, é um absurdo, é um esbanjamento criminoso, deixar documentos como este na poeira das bibliotecas.
Um abraço do
Mário
Quem nos apoia? Quem nos hostiliza?
Análise de um documento da Repartição de Informações, do Comando-Chefe, Junho de 1971
Beja Santos
A Repartição de Informações era uma unidade sensível na contrassubversão. Produzia documentação da mais variada índole que permitisse ao decisor militar ponderar os apoios e as forças hostis, sopesando as etnias mais amigas e aquelas onde primavam os principais recrutamentos do PAIGC. O documento agora em apreço, amavelmente cedido pela biblioteca da Liga dos Combatentes, permite, no contexto temporal de 1971, perceber, na ótica deste serviço, a natureza dos apoios e das hostilidades à presença portuguesa. Isto em torno do estudo sobre as populações da Guiné. Mas o documento também procura fazer uma leitura sobre as religiões, revela-se altamente interessante e não custa nada supor como seria útil a sua publicação para estudo de todos os interessados na problemática da Guiné-Bissau.
Qual a população, em percentagem, apoiante da presença portuguesa, e quem era contra, de acordo com este documento? Considera-se que a população sob controlo português era de cerca de 436 mil habitantes, estando fora desse controlo 160 mil almas. E extrapola-se: “Considerando como 60 mil o número de refugiados no Senegal e 20 mil na República da Guiné, estima-se sob o controlo do IN no interior do teatro de operações 80 mil almas, ou seja 13 % da população”. O documento é rico nas considerações que profere sobre línguas e dialetos e da análise dos povos, dividindo-os em sahelianos (caso dos Fulas), sahelo-sudaneses (caso dos Mandingas, Oincas, Saracolés, Jalofos e outros), sudaneses meridionais (caso dos Padjadincas) e recalcados subguineenses (caso dos Felupes, Balantas, Banhuns, Manjacos, Papéis, Brames, Beafadas, Nalus, Bijagós e outros). Quanto aos Fulas, escreve-se: “Quando eclodiu terrorismo, os Fulas sentiram no facto um desabar do seu mundo e da supremacia que tinham conquistado. Os seus régulos e cipaios que dominavam em chão alheio acharam-se de um momento para outro atacados. Com o evoluir do terrorismo, definiram-se posições e hoje podem observar-se comportamentos diferentes em face à subversão: - franca colaboração com as autoridades e repúdio total ao movimento de subversão; - colaboração com as autoridades enquanto a força pender para o seu lado; desconfiança e retraimento em relação à política de justiça social do governo da Província, política que, repondo os Fulas no seu lugar, os coloca em igualdade de privilégios com as outras etnias”. No que toca aos Mandingas, o documento revela um pesado ceticismo: “A sua atitude perante o terrorismo, deve-se interpretar com todo o bom senso, pois houve razões fortes para que vissem no PAIGC a oportunidade de reaverem a sua independência política em face dos Fulas e vingar as prepotências a que foram sujeitos. Se abstrairmos o número de Mandingas que aderiram convictamente ao PAIGC, verifica-se que a grande maioria foi obrigada a aderir, ou porque as terras em que viviam foram envolvidas pela subversão ou porque foram acusados muitas vezes, injustamente, de terroristas, que os obrigou a fugir. Ainda há bem pouco tempo, o Mandinga na Guiné era sinónimo de terrorista. E refere-se o caso do chefe Fula Sambel Baldé, chefe da milícia de Fajonquito, que além de chefe das milícias desta povoação se valia da confiança que nele era depositada para acusar de cumplicidade com o IN os Mandingas ricos. É de recear que ainda haja na Guiné destes “fabricantes de terroristas”, o que desde já se julga de acautelar”.
Estamos perante um documento de leitura irrecusável para quem queira interpretar os olhares do serviço de informações do Comando-Chefe. São passados em revista todas as etnias e, no caso das religiões, pode dizer-se que o documento é exaustivo e a sua publicação teria êxito garantido, na Guiné-Bissau e em Portugal.
Voltando aos apoios aos portugueses ou ao PAIGC, sobre os Felupes escreve-se o seguinte: “Como sociedade fechada que ainda hoje mostra ser, muitas atitudes dos seus elementos foram consideradas como suspeitas. É caso a atitude desconfiada e receosa dos Felupes nos primeiros contactos com elementos estranhos à sua comunidade. Presentemente, o poder encontra-se nos Chinas das diversas populações Felupes. O desconhecimento deste facto levou alguns sectores a pensarem que havia uma sonegação de informações às nossas autoridades em benefício do PAIGC”. E quando as autoridades portuguesas nomeavam régulos, eles nunca tinham prestígio. Falando dos Balantas, é de ficar surpreendido com a fragilidade da argumentação usada: “O seu espírito de guerreiro concretiza-se somente no roubo de gado e nos assaltos de surpresa, o que os levou a ser considerados como povo essencialmente guerreiro. Também são considerados como os que mais entraves puseram à penetração portuguesa. Quanto ao primeiro aspeto, o balanta é pouco valente quando tem que enfrentar uma força regular pois para esse tipo de luta é o beafada o guerreiro por excelência (…) O diálogo estabelecido com este povo, no último congresso do povo da Guiné, trouxe ao de cima alguns problemas aqui anunciados, podendo a sua solução provocar uma mudança sensível na luta que se trava na Guiné”. Passando para os Manjacos, observa-se que: "os manjacos residentes no Senegal e Gâmbia viram na subversão um meio para lutarem contra a influência Mandiga e Fula no seu chão, formando movimentos de tendência tribalista como foi o Movimento de Libertação da Guiné (…) Embora a maioria dos Manjacos que estão com o PAIGC sejam combatentes, muitos há que ocupam lugares de liderança”. Acerca dos Papéis, observa o documento: “A subversão veio ao encontro das aspirações da camada jovem aculturada, que viu nela possibilidades de triunfar, uma vez que a situação económica estagnante da província não lhes oferecia oportunidades. No entanto, os papéis integrados na cultura tradicional e localizados na Ilha de Bissau, ainda que com mais contactos com a cultura europeia, não foram atingidos diretamente pelo terrorismo e por isso não manifestaram a sua atitude face à subversão; no entanto, admite-se que esta tenha penetrado nas suas estruturas. No PAIGC ocupam lugares de chefia”. E quando aos Beafadas: “A subversão penetrou com facilidade na sociedade Beafada que apresentava no início do terrorismo um desequilíbrio estrutural devido à mandinguização. No entanto, o seu comportamento em relação à subversão tem sido variável; se em certas áreas da circunscrição Fulacunda e nas zonas do Cuor e Xime aderiram e colaboraram com o PAIGC, noutras, como em Gadamael, Jabadá e Fulacunda, tornaram-se fiéis colaboradores das autoridades. Também os seus chefes se dividiram na atitude tomada face à subversão, tornando ainda maior a indecisão de muitos Beafadas perante o caminho a seguir. O seu espírito aguerrido foi aproveitado pelo PAIGC, fazendo deles combatentes”. E, por último, uma referência aos Bijagós: “Embora o terrorismo não se tenha manifestado no Arquipélago, verificaram-se certos factos que podem de algum modo indicar, em maior ou menor grau, o comprometimento de alguns sectores da sociedade Bijagó. São eles: - várias referências de tráfego de canoas entre o Cubisseco e Tombali, zonas sob o controlo IN; a presença Bubaque de cerca de 70 Fulas e Mandingas deslocados de Buba, suspeitos de estarem comprometidos com a subversão; a fuga em 1 de Novembro de 1969 de 12 elementos jovens e evoluídos que desempenhavam funções de professores, monitores agrícolas e fiel de barco da ilha de Bubaque. A adesão de muitos elementos jovens e evoluídos à subversão pode levar, num futuro próximo, a decidir os restantes, dado o seu de permeabilidade. Recorda-se que muitos professores e enfermeiros do PPAIGC pertencem à etnia Bijagó”.
Enfim, um documento valioso, um olhar da Repartição de Informações, um estudo sobre populações que devia estar ao alcance tanto do curioso como do estudioso, nos dois países.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 17 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11719: Notas de leitura (492): em nome da Grei, por Gustavo Pimenta (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Este doc. tem inegável valor histórico e é susceptível de várias leituras, consoante o ângulo donde se veja. Contudo, não creio que tenha sido muito lido. Quem comandava e devia lê-lo e conhecê-lo não creio que o fizesse. A sua difusão era restrita e só se fazia até companhia, incluído. Trata-se de um doc. de análise sociológica às pop. rurais e só peca por ter vindo tarde.
Louve(m)-se o(s) executante(s) que devem ter suado bastante.
O seu valor científico pode ser discutível, mas num país onde a sociologia não era cultivada como ciência já não é nada mau.
Um Ab.
António J. P. Costa
Algumas destas ideias sobre as várias etnias chegava-nos sem qualquer contexto e parecia ser suportada de forma empírica. Lendo o documento que me parece bem feito, pela experiencia que tive nos 25 meses que estive na Guiné e, especialmente, porque tive experiencias muito diversas. Cabuca, chão fula, a vida era toda feita dentro do perímetro da tabanca e a população era fiel e colaboradora. Primeiro em Bambandica depois no Xime, na 12, não tínhamos quase contacto com a população. Dentro do grupo de combate a relação era muito forte e ai senti o apoio e até a proteção dos soldados e cabos africanos. Por fim Bolama, onde dei duas recrutas que estavam divididas em duas companhias, uma só fulas e futa-fulas a outra de várias etnias, mas a predominante era a balanta. Penso que a separação era religiosa. Sempre que houve problemas, tipo levantamentos de rancho, o pretexto, diga-se que justo, era a qualidade do rancho, estavam na liderança os balantas. Embora todos saibamos qual seria o fim da nossa presença em Africa a nossa formação e preparação era quase nula o que não ajudou a prolongar ou mesmo eternizar como outras potencias conseguiram até hoje manter em colonias desta dimensão. Ao nível militar, expecto as tropas ditas de elite, que de elite pouco vi no TO, era de 90% de da chamada "Ordem Unida", sobre a outra quiçá a mais importante a psicologia era nula, embora reconheça que a matéria prima disponível de muito baixa escolaridade não era a adequada. O retrato do país da época!
Enviar um comentário