CARTAS DE AMOR E GUERRA
16. Aerogramas e insuficiência das mensagens
Na imagem > Aerogramas de 1966, com data de 7/4, 25/4 e 1/5
© Manuel Joaquim
[O aerograma foi um óptimo meio de comunicação mas sempre o olhei como um substituto menor da tradicional carta usada nas relações afectivas, principalmente no discurso amoroso (ou fizeram-me crer nessa menoridade). Tendo, muitas vezes por preguiça, desleixo, cansaço ou mesmo falta de tempo, recorrido ao aerograma para manter uma periodicidade regular na minha correspondência de guerra, nunca ninguém se me “queixou” do seu uso, exceto a namorada. Receber aerogramas em vez de cartas, era coisa de que ela não gostava nada. Mas lá foi disfarçando … até já não poder mais.]
Vale de Figueira, 9. Março. 66
Pois, está claro, que gostaria de receber daí cartas volumosas. (…). Eu sei que te é difícil, muitas vezes, fazer o que queres ou o que tens planeado para este ou aquele dia. Vários factores influem agora no teu querer, eu sei. E só por isso me não desalenta muito receber missivas tão lacónicas.
(…),sobretudo o que me interessa é que semanalmente me dês testemunho de que ainda há vida nesse corpo tão massacrado, (…). O resto, meu querido M., terá muita importância, sem dúvida que terá, pois não é nada agradável estar-se a falar para o “boneco”, para um poço sem fundo, isso é verdade. Mas também não é bem este o caso.
Isso, na situação actual em que vivemos, é compreensível e desculpável. (…). Podes estar certo, meu amor, que um “estou bem” género telegrama é uma felicidade para mim (…), um fortificante incentivo para continuar a te esperar.
(… … …).
Um longo e terno beijo (…)
D.
Bissorã, 17MAR66
Sem dúvida, meu amor, que compreendo inteiramente o teu desgosto por não te escrever como deveria. Deveria? Aqui não há questão de dever ou não dever. Precisamente porque o que desejo é escrever-te, escrever-te muito, (…). Não o faço muitas vezes porque me sinto cansado e sem forças para reagir (…), ao ciclo de desesperança e frustração que persistentemente me quer ocupar o espírito.
(… … …).
Eu sei que é preciso reagir a este estado de espírito. Seria preciso reagir para atenuar tudo isto. Mas reagir é-me praticamente impossível. Palavra que às vezes dá-me vontade de esquecer tudo, ficar em estado hibernal [hibernação] e só acordar para a vida daqui a uma dúzia e tal de meses, quando me visse livre de tudo isto. Esquecer. Esquecer tudo. Adormecer. Como se isto fosse possível!!!
Recebo as tuas cartas, acho-as maravilhosas. (…). Ao ler as tuas palavras passo-me para junto de ti (…). A tua presença faz-me esquecer tudo o resto. Mas são momentos efémeros porque a realidade que me rodeia está bem à vista. E então absorve-me o medo de nunca mais te ver e um chorrilho de ideias tristes, algumas até absurdas, perpassa dolorosamente por mim.
Eis a razão por que me custa escrever-te. Só em momentos excepcionais, às vezes excepcionais pela sua inautenticidade, é que te poderia escrever cartas que, de todo, te dessem alegria. Sim, porque estou a falar contigo e desde já a aborrecer-me por adivinhar que com as minhas palavras te provoco tristeza, talvez dor. (…)
(… … …).
Não falas para o “boneco”. Eu absorvo as tuas palavras e tenho concordado com elas. (…), quando não concordar contigo, a minha réplica surgirá. (…). (…), varre de ti a ideia de que o teu M. querido não está ligando nada (…). (…) até está muito satisfeito com essas palavras, com essas opiniões.
(… … …)
Saudosamente, (…).
M.
Foto 1 > Bissorã, 1970 > Rio Armada ao pôr-do-sol
© Carlos Fortunato, CCaç 13
Bissorã, 3ABRIL66
(… … …)
Minha querida, tens de desculpar a minha demora na correspondência. As operações, agora, no final da estação seca são mais fáceis de fazer. Talvez sejam, até, menos perigosas. Por isso andam a apertar bastante com a tropa. Trabalho estafante (…).
Está claro que isto não é razão para deixar de te escrever. Mas o cansaço ajuda a ficar indolente, a cair no “não te rales”, no “não me maces” Estas frases não se referem a ti. As tuas cartas são sempre bem-vindas e ansiadas. Simplesmente, apetecia-me mais falar-te do que escrever-te. Às vezes esqueço-me de que não estás junto de mim, de que me não podes ouvir. O resultado está à vista, é estar bastante tempo sem te escrever uma carta, limitando-me a uns lacónicos aerogramas. Mas olha para essa espécie de telegramas com a certeza de que neles o teu M. também está presente, bem presente no amor que te dedica, no desejo de que não estejas muito tempo sem notícias.
(… … …).
Muitos e muitos beijos (…). Até sempre!
M.
Vale de Figueira, 24-4-1966
“Amo-te”, “Sou teu”; são sem dúvida expressões sempre agradáveis que se escutam com prazer. (…). Mas não bastam, não são o essencial para que se acredite em quem as pronuncia. (…). São expressões efémeras, correntes em toda e qualquer boca, para qualquer fim.
(… … …).
Depois de ler cada um dos teus aerogramas que chegam, depois de pensar demoradamente no que se está passando contigo, tentando absorver das tuas poucas palavras algo de doce e de reconfortante, … desânimo! Nelas, parece-me ver esquecimento, um subterfúgio para não revelares a verdade.
E então o “amo-te”, o “quero-te”, o “sou teu” não me dizem quase nada, meu querido. Soam-me tão longínquos! Quase amargam.
Mesmo assim, esses aerogramas representam muito. Pelo menos na hora em que os escrevias ainda havia vida nesse corpo embora o espírito talvez estivesse morto, massacrado pela dor. Não queria que isso acontecesse, meu amorzito. Quero que reajas, que converses comigo se ainda me queres para tua companheira, tua amante, tua mulher. (…). Mas, meu amor, estes aerogramas não serão o teu refúgio, não estarás a desligar-te de mim?
Vivo este dilema, agora. Perdoa-me se te ofendo, dizendo-te isto. Mas eu não posso perder-te! Tu não podes fugir-me, meu amor!
Que alegria para mim são, nos primeiros instantes, esses aerogramas! Tu ainda estás comigo, é o meu primeiro pensamento. Depois, mastigando o seu conteúdo, que desilusão, que contrariedade! Nada adiantam … são todos iguais!
Meu M. querido perdoa-me se não sou compreensiva, se estou a ser injusta, mas não estou a recriminar-te, meu amor. Decerto que há muita coisa em mim que te não agrada, podes dizê-lo.
(…).
(…) não escrevo mais, hoje. Talvez amanhã ou depois te escreva mais, quando esta neura tiver passado e eu sentir firmemente que continuas me querendo muito. (…)
Tenho tantas saudades tuas, meu querido! Beijo (…).
N.
Foto 2 > Bissorã, 1966 > ao centro, aquartelamento das CCaç 1419 e CArt 1525; ao centro-direita, edifício-sede da Administração Civil; ao fundo, campo de futebol
© A. Silva Pinheiro, CCaç 1419
Bissorã, 1 MAIO 66
Cheguei ontem de Mansoa e cá encontrei a tua última carta. Palavra que, antes de a abrir, já pensava no seu possível conteúdo. Acertei (…).
Eu sei que os meus aerogramas são insuficientes. Inclusivamente, não gosto de te enviar aerogramas. Dá-me a sensação de coisa impessoal, o que com certeza não é, minha querida.
(…) por coincidência, há uns tempos para cá, quando estou para me dedicar inteiramente a falar contigo, surge um contratempo.
(…). Ontem tinha intenções de te escrever uma longa carta mas não pude. Pensei muito em ti, em nós, mas foi de arma às costas “passeando” pela selva. Saímos ontem ao princípio da noite. Chegámos há pouco tempo, são 11h 30. Estou cansado, deveras cansado e cheio, cheio de sono. Só a grande vontade de que não fiques sem notícias minhas me leva a pegar na caneta.
Espero, nota bem, espero que no próximo correio te ocupe um bocado o tempo a ler-me. Estou pronto a escrever muito.(…).
Depois de umas horas de descanso, ficarei “au point”.
Sei que vais ficar mais uma vez aborrecida mas tenta compreender. Eu tenho muito que fazer. Muita coisa me preocupa. Tu terás que ser vítima, um pouco, da minha situação.
Ou não? Mas, forçosamente, tens de ser. Preciso muito das tuas cartas.
Preciso mais delas do que tu das minhas. Continua escrevendo, sim? Não te zangues, hem?
Do que tem esperança de ser teu – desculpa o possível cinismo que a tua carta agora me provocou. Vamos lá falar a sério:
Muitos e muitos beijos, saudosamente, do TEU
M.
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Nota do editor
Último poste da série de 5 DE JUNHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11674: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (15): Analfabetismo, um outro combate
3 comentários:
Como eu te compreendo, camarada!. como eu te compreendo... Só quem foi operacional na Guiné, naquele tempo, é que entende o cansaço, a lassidão, a morte na alma, que nos invadia, durante dias e dias... Tu eras um sortudo, tinhas uma grande mulher à tua espera, aquela que será depois a mãe das tuas filhas e que eu tive o privilégio em conhecer, no passado dia 8, em Monte Real... Coitada, dela, que se sentia mal tratadda pro receber os teus lacónicos aerogramas e as tuas cartas preguiçosas... Eu, não escrevia, comportei-me como um bicho!...De vez em quando, mandava uma foto autografada. E também sempre me recusei a escrever aerogramas!... A minha vontade era esqucer, esquecer a Guiné... Será que uma mulher pode entender isto, a milhares de quilómetros de dist
ância ?... É pedir-lhe muito...
(...) Esquecer a Guiné... por uma noite!
O sabor a sangue e a merda
Que a vida aqui tem,
Aos vinte e três anos,
Já feitos.
A merda da Guiné.
A merda que te cobre o corpo e a alma.
É mais do que a merda toda
Das bolanhas, das lalas e do tarrafo.
Podes lavar-te todos os dias
Que essa merda
Nunca mais te sai.
Nunca mais te sairá do corpo e da alma.
(...)
Olá Manuel Joaquim.
Os aerogramas eram bons e maus.
Eram bons porque eram de graça, e maus porque nós entendíamos que era uma correspondência "menor", até dizia-mos, "olha, aquele só recebeu dois aerogramas"!.
Eu às vezes mandava fotografias dentro dos aerogramas!.
Até cheguei a mandar uma pétala de uma flor que apanhei na beira da bolanha, que parecia um "nenúfar", a uma madrinha de guerra!.
Também fazia desenhos de "gajas", que mandava aos amigos.
Olha hoje gostei daquela frase onde dizes:
...às vezes apetecia-me mais falar-te do que escrever-te!.
Ai expressas toda a tua angústia e talvez solidão.
Um abraço e quero ler a próxima.
Tony Borie.
Amigo Manuel Joaquim. Estou a gostar, eu era incapaz de dizer essas coisas tão doces, que demonstram decerto aquilo que sentiam um pelo outro e mais pela coragem ousada de transmitires isso para nós.
Por acaso raramente utilizei aerogramas e como me apetecia falar (tal como dizes) quer no K3 quer depois em Bissau, utilizei (e não ficava caro)o telefone. No K3 quando me calhava ser a minha secção a ir á água, aproveitava para no dia antes marcar uma chamada para a Metrópole e assim tinha também o prazer de ouvir a minha filha,já com dois anos e o mesmo fiz em Bissau.
Toma lá um abraço e gosto de ver esse amor lindo que vos uniu.
Veríssimo Ferreira
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