sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16624: Notas de leitura (893): “História da História em Portugal, Séculos XIX-XX”, organização de Luís Reis Torgal, José Amado Mendes, Fernando Catroga; Temas e Debates; 1998, volume II (3) (Mário Beja Santos)

Bissau - Monumento ao Infante D. Henrique


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Setembro de 2015:

Queridos amigos,
Os programas comemorativos da gesta dos Descobrimentos foram perfeitamente lineares entre 1880 e 1960, de monárquicos, passando por republicanos, até aos aficionados do Estado Novo, tudo fizeram para exaltar a epopeia encetada pelo Infante D. Henrique, e que imprimiu um cunho indelével à História de Portugal. O fim do Império não significou o fim do estudo dos Descobrimentos portugueses, pelo contrário, a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses procurou responder, até que foi extinta, aos ditames do rigor da investigação científica, distinguindo a comemoração da propaganda. Conhecer as sucessivas fases destas comemorações é penetrar no quadro mental e nos conceitos ideológicos dos nacionalistas e de quem lhes sucedeu.

Um abraço do
Mário


As comemorações imperiais portuguesas, nos séculos XIX e XX (3)

Beja Santos

Graças ao importante trabalho de investigação intitulado “Ritualizações da História”, de Fernando Catroga, incluído no II volume da “História da História em Portugal, Séculos XIX-XX”, Temas e Debates, 1998, é possível encontrar uma sequência das grandes manifestações nacionalistas-imperialistas entre o jubileu de Camões (1880) e as comemorações do V Centenário da morte do Infante D. Henrique (1960), podendo, por conseguinte, descodificar as razões políticas para as exaltações da “questão imperial”.

Estamos agora nesse grande acontecimento que foi a Exposição do Mundo Português de 1940. António Ferro não iludiu o móbil do que estava a propor para as comemorações: Fundação, Restauração e Descobrimentos. Ou seja, a Fundação e a Refundação da Nação deviam ser simbolizadas como momentos matriciais da construção do Império daí o deslumbramento do Cortejo Imperial do Mundo Português. O Portugal de hoje, síntese do Portugal imperial desfilava com trajes típicos de todas as províncias, ilhas e colónias. E quanto ao Portugal de amanhã lá tínhamos o Carro Alegórico da Mocidade Portuguesa. Catroga é minucioso na descrição de todas as etapas deste programa onde era peça importante a “Exposição Histórica do Mundo Português”.

O V Centenário da descoberta da Guiné é a primeira comemoração depois da II Guerra Mundial, no ar do tempo já espreita a descolonização, ela é desejada e incentivada pelas duas superpotências. A Guiné dispõe de um governador ativíssimo, diligente, reformador como muito poucos. Em Lisboa, é a Sociedade de Geografia quem vai promover as promoções centradas em Nuno Tristão. Em Bissau, as cerimónias terão lugar entre Janeiro de 1946 e Janeiro de 1947, houve conferências, o Centro de Estudos e o Boletim Cultural aparecem sob a batuta de Teixeira da Mota, realiza-se uma exposição histórica na ampla praça em frente do Palácio do Governador. E discursa-se coisas como esta: “O Império, a eternidade de Portugal, nasceu em Sagres. Portugal, sem Império, seria hoje uma anquilose, uma petrificação histórica”.

Para a ciência histórica, são tempos de refrescamento. Um jovem cientista, opositor do regime, Vitorino Magalhães Godinho, alertava: “Os aniversários e centenários só podem ser úteis se constituírem ensejo para estudar problemas, meditar diretrizes, criticar certezas dogmáticas; caso contrário, mumificam-se os vivos sem ressuscitar os mortos”. Godinho traz novas hipóteses interpretativas, envolveu-se em polémica suave com Teixeira da Mota que lhe lançara uma farpa de que era antipatriótico criticar os Descobrimentos, ou de diminuir a ação do Infante ou de pôr em dúvida a existência da Escola de Sagres. A verdade é que Teixeira da Mota nunca mais voltou a escrever em tom apologético.

E estamos chegados às festas henriquinas de 1960, já há movimentos anticoloniais a trabalhar nas colónias portuguesas. É nesta atmosfera de ofensiva anticolonialista que o governo retoma a consigna de uma só Nação, de Minho a Timor. Revogara-se o Ato Colonial de 1930 e as Colónias passaram a designar-se por Províncias Ultramarinas. O que se traçou para as comemorações henriquinas é anunciado publicamente: “Exaltar, através da evocação da figura e obra do Infante D. Henrique, a grande gesta dos Descobrimentos e ação civilizadora dos portugueses. Estas comemorações não estão voltadas exclusivamente para o passado, mas serão a demonstração do valor e das possibilidades das gerações de hoje e como que um ato de fé nos destinos da Pátria – bem necessário nesta hora incerta da vida no mundo”. À semelhança do Duplo Centenário, voltávamos ao conceito de Portugal como baluarte cristão, a sustar o comunismo. A nova lógica era a seguinte: já não estávamos em 1940, a exaltação imperial teria que ser proclamada num contexto em que ainda pudesse gozar de alguma credibilidade, por isso se imprimiu ao discurso oficial português o tom de resistência e os valores da civilização Ocidental. E a proclamação das festas henriquinas, subliminarmente, usava o tom triunfal do passado: “Nesta hora em que o mundo, cada vez mais dividido e disperso, sofre de tão grandes doenças mortais e em que tudo parece ter entrado em dissolução: os espíritos e os corações, a autoridade e a estabilidades dos governos, o sentido de solidariedade e da unidade dos povos, sabemos nós, Portugueses, manter essa crença, essa virtude que iluminou com os seus fogos a nossa grandeza no passado e que nos dias de hoje marca o nosso inconfundível êxito aos olhos do mundo”. Um dos pontos mais altos das comemorações passou pela construção do Padrão dos Descobrimentos, da autoria de Cottinelli Telmo e de Leopoldo Almeida.

E agora? Agora comemoramos a descoberta do “outro”. Extinto o Império, comemoram-se os Descobrimentos portugueses, foi esta a tarefa que recaiu sobre a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, o objetivo era impulsionar a investigação científica, e Vitorino Magalhães Godinho veio novamente à estacada, defendendo a necessidade de se dar prioridade ao estudo erudito e crítico das fontes e à elaboração de trabalhos que refletissem uma posição interdisciplinar. Havia que renovar a historiografia dos Descobrimentos, dominada por estudos marcantes de Orlando Ribeiro, Teixeira da Mota, Luís de Albuquerque e do próprio Godinho. Estes propósitos irão ser plasmados num elevado número de publicações e em comemorações como as do 450.º aniversário da chegada dos portugueses ao Japão, na Expo 98 e na celebração da viagem de Pedro Álvares Cabral.

Revista Oceanos, o cartão-de-visita da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses 

Extinto o Império, tem sido notório o embaraço com o culto cívico dos mortos da guerra colonial, bem ao contrário do que aconteceu no termo da I Guerra Colonial que deixou dezenas e dezenas de monumentos, lápides, colunas ou pilares espalhadas pelo país. De 1921 a 1936, houve uma Comissão de Padrões da Grande Guerra que apoiou a construção de memoriais no Sul de Angola e no Norte de Moçambique, Açores, mas também em França (o escultor Teixeira Lopes é o responsável pela obra mais relevante que se ergue em La Couture, região em que morreram muitos soldados portugueses. Parece ter ficado bem claro que a consolidação da memória através de comemorações, exposições, cortejos, edições de selos, medalhas, filmes e tantas expressões iconográficas é fruto de um quadro mental em dada conjuntura. Há um fio condutor em que estiveram envolvidos monárquicos de todos os matizes, republicanos e aficionados do Estado Novo: Portugal era indissociável da gesta dos Descobrimentos. Este quadro mental é severamente afetado pelo ciclo da descolonização, pela declaração universal dos direitos humanos, pela carta da ONU, pelo reconhecimento de que os povos eram livres de escolher o seu destino. A historiografia pós 25 de Abril espelha a rejeição da propaganda e a necessidade de estudar numa visão que ultrapassa o eurocentrismo de que se alimentou o sonho nacionalista-imperialista.

Monumento do escultor Teixeira Lopes em La Couture
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Notas do editor

Postes anteriores de:

14 de Outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16598: Notas de leitura (890): “História da História em Portugal, Séculos XIX-XX”, organização de Luís Reis Torgal, José Amado Mendes, Fernando Catroga; Temas e Debates; 1998, volume II (1) (Mário Beja Santos)
e
17 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16608: Notas de leitura (891): “História da História em Portugal, Séculos XIX-XX”, organização de Luís Reis Torgal, José Amado Mendes, Fernando Catroga; Temas e Debates; 1998, volume II (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 18 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16613: Notas de leitura (892): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte XI: O caso do médico militar, especialista em cirurgia cardiovascular, Virgílio Camacho Duverger [II]: Estava a 3 km de Madina do Boé, em 10 de novembro de 1966, quando o cmdt Domingos Ramos foi morto por um estilhaço de morteiro da CCAÇ 1416 (Jorge Araújo)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...


Mais uma leitura interessante que nos dá BS.

E termina:
"... A historiografia pós 25 de Abril espelha a rejeição da propaganda e a necessidade de estudar numa visão que ultrapassa o eurocentrismo de que se alimentou o sonho nacionalista-imperialista".

Ou seja, o 25 de Abril rejeita a grande vergonha dos piores 500 dos 900 anos que leva Portugal? O 25 de Abril só aprecia aqueles primeiros 400 anos da idade média? Ou será apenas uma maneira de falar?

BS descobre cada coisa!

Cumprimentos