quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16622: Memória dos lugares (348): Olossato, com o Moura Marques, o Grão de Bico, a São... 35 anos depois (Paulo Salgado, ex-alf mil cav op esp, CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72; autor do livro "Guiné: crónicas de guerra e de amor", 2016)



Foto nº 1 > Guiné-Bissau > Região do Oio > Olossato > 2006 > O Grão-de-bico, ontem criança, hoje homem grande, pai de filhos, reencontra o ex-1º cabo Moura Marques e o ex-alf mil cav op esp Paulo Salgado, da CCAÇ


Foto nº 2 > Guiné-Bissau > Região do Oio > Olossato > 2006 > Rio Olossato > O Paulo Salgado e o Moura Marques, 35 anos depois...


Foto nº 3 > Guiné-Bissau > Região do Oio > Olossato > Maqué > O centenário poilão de Maqué... Um monumento vivo... Na foto, o Paulo Salgado e o Moura Marques


Foto nº 4 > Guiné-Bissau > Região Autónoma de Bissau > Cumeré > 2006 > Uma viagem de regresso ao passado...A cumplicidade de dois antigos camaradas de armas...



Foto nº 5 > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > Rio Farim > 2006 > Cambança do rio..."A bos portuguisis? Pai di nôs!"...

Fotos (e legendas); © Paulo & Conceição Salgado (2006), Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O regresso de um homem bom! (*)

por Paulo Salgado  

[ex-alf mil cav op esp, CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72; administrador hospitalar reformado,  transmontano,  apaixonado pela África Lusófona, cooperante, autor do livro "Guiné: crónicas de guerra e de amor", 2016]

Quero falar-vos do Moura Marques [MM] – camarada de luta, companheiro de labutas, amigo de confidências. Nos idos meses de 1970-1972.

Foi no Olossato que se forjou uma solidariedade grande, mas já em Santa Margarida se notava ali a bondade e valentia do Moura Marques, para quem não havia heroísmos nem cobardias, para quem mais valia a verdade do que o servilismo. Se foi louvado, só o poderia ser pela coragem, pelo exemplo, pela calma que dele transparecia, que dele irradiava.

Ontem, dia 26 de fevereiro de 2006, 35 anos depois de a CCAV 2721 embarcar para Lisboa, fomos ao Olossato: ele, a Maria da Conceição e eu,  no Prado. Devagar, para bebermos em conjunto as emoções, e rememorar momentos vividos com os outros camaradas.

Saída em direcção a Bula e dali para Bissorã: o largo, as fotos ao que resta de Os Bigodes, as casas coloniais envelhecidas pelo tempo inclemente, a picada, que outrora era picada por causa das minas, e, não sei por que razão, agora estava linda, avermelhada, e, ao lado, as pequenas bolanhas do alto do Maqué, onde está o mais belo poilão que conheço da Guiné [, foto nº 3], o que resta do aquartelamento do pontão do Maqué, não mais do que algumas paredes onde ainda se descobre uma fresta espreitando para a mata lá atrás (ai quantas sentinelas feitas pelos infernais, pelos vampiros). As fotos da praxe [Foto nº 2]. O marejar de lágrimas do MM.
– Vês, ali, Salgado, tantas horas de trabalho na construção do heliporto, quantas horas perdidas na solidão da mata, quanto de nós ali está ! – dizia ele, emocionado… E a Maria da Conceição tirando as fotos das mais bonitas que já vimos…

Na ligeira subida para o Olossato, alguém grita correndo:
Bolea, patim,  bolea!

Parámos. Uma mulher vinha correndo:
Um mindjer prenhadu sta ali na caminhu!

E nós, os três, preparados para o que desse e viesse que as dores e contracções (percebiam-se) eram repetidas e já nos imaginávamos a fazer de parteiros na beira da estrada…Felizmente a mulher aguentou. E lá foi levada com mil cuidados ao centro de saúde. E nós, como sorrimos de satisfação e de alívio.

O reencontro com os amigos. Um deles anda se recordava do cabo Moura. E o Moura Marques mais uma vez emocionado:
– Bolas, um homem sofre, com este exorcismo... (palavras do MM).

Uma oferta aos amigos. Uma visita à campa muçulmana do Suleiman Seidi. Uma oração em silêncio, um silêncio de saudade, uma saudade enorme – o Suleiman era um irmão. Eu que o diga. O Moura Marques chorou, de pé, honrando a memória de soldado milícia português – um homem chora quando tem que chorar, bolas.
– Olha, ali era o PC, e ali o local dos morteiros; acolá o bar…
– E ali, bem visível a caserna, agora escola de marabu...

O sol já caía a pino. E os amigos, de volta: mantenhas, e o desejo manifesto do Grão-de-bico (homem agora com quatro filhos…menino era naquele tempo) [Foto nº 1]:
– Cabo Moura, leva-me para Lisboa.

Que carinho e que ternura e que vontade de ter outra vida o desejo destes homens, dos que estiveram connosco dos que combateram do outro lado.
– Salgado, isto é demais!

Lá fomos em direcção ao rio Olossato, sempre bonito e frondosas as margens, lodoso, embora. Mais fotos e sempre as crianças, as belas crianças. Umas bolachas que a Conceição distribuiu, fizeram-nas sorrir. Sorrir ainda mais, se é possível.

 Depois a picada para Farim com passagem por Cansambo (só possível agora visitar, pois naquele tempo estava arrasada) e K3; a travessia de canoa a remos para a outra banda: Farim. Tarde quente de calor do sol e de calor humano. Uma cerveja meio quente junto da Fatu Turé e Mustika Turé, encarregadas do bar da festa carnavalística (assim lhe chamou o comandante da canoa! – um neologismo (?!) para o nosso vocabulário.
Boa tarde! A bos portuguisis? Pai di nôs.

O que responder a tal fé antiga? Sem palavras.

De novo a cambança. No meio do rio [foto nº 5], gritou o comandante da canoa vizinha, a motor, sorrindo:
Li, tene manga di lagartus [crocodilos]…

A corrida para Mansabá, umas fotos do jovem ferreiro e da forja… Depois, Mansoa. Um hospitalzinho novo, da cooperação francesa, e as ruínas do quartel com soldados sentados à sombra dos mangueiros…!

E a seguir, Uaque. O último olhar para uma viagem longa, mas emocionantemente bela, reconfortante. Estava (quase) feita a catarse… O Moura Marques:
– Meu Camaradão, meu amigo!...


PS - No dia anterior, estiveramos em Nhacra e no Cumeré {Foto nº 4)… exactamente no dia em que pela última vez o MM almoçara com o seu amigo Fernando (periquito) que viria a morrer em emboscada dois dias depois…

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Notas do editor:

(*) Texto, revisto,  a partir do poste de 2 de março de 2006 > Guiné 63/74 - P584: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (12): reviver o passado em Olossato

(**) Três últimos postes da série >

18 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16499: Memória dos lugares (347): Samba Juli, Sansancuta e Demba Tacobá, tabancas fulas em autodefesa, a sudeste de Bambadinca, para as quais foi destacado por mês e meio, em 20/7/1969, o 3º pelotão da CPM [, Companhia de Polícia Militar,] 2537 (Bissau, 1969/71), a que pertencia o sold cond auto Jerónimo de Sousa, hoje secretário geral do PCP

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