Lisboa > Fundação Calouste Gulbenkian > 9 de novembro de 2017 > Barros Veloso apresenta o livro, de que foi o principal organizador, "Médicos e Sociedade: para uma história da medicina em Portugal no século XX"... Um dos 50 capítulos é dedicado aos serviços de saúde militares durante a guerra colonial, da autoria do coronel médico Carlos Vieira Reis.
Cortesia da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (2017)
Nota de leitura - I Parte
por Luís Graça
Reis, Carlos
Vieira – A Guerra Colonial. In: Veloso A. J., Mora, L. D., Leitão, H., (Eds.)
(2017). Médicos e sociedade: para uma história da medicina em Portugal no
século XX. Lisboa: By The Book, pp. 492-505
O autor do capítulo sobre os serviços de saúde militares durante a guerra colonial Carlos Vieira Reis, é coronel médico e escritor, foi diretor de serviço de cirurgia, director clínico do Hospital Militar Principal e presidente da União Mundial dos Escritores Médicos.
Resumo: A organização e o funcionamento dos serviços de saúde militar, durante a guerra colonial / guerra do ultramar, é um dos cinquenta capítulos da obra verdadeiramente enciclopédica, de que o meu ilustre amigo A. J. Barros Veloso (médico, músico de jazz e historiador, especialista de medicina interna, ex-diretor de serviço do Hospital dos Capuchos, Hospitais Civis de Lisboa) foi o principal editor literário, para não dizer mesmo a verdadeira “alma mater”: “Médicos e sociedade: para uma história da medicina em Portugal no século XX”.
Barros Veloso é, de resto, o autor ou coautor de 15 capítulos. A obra, com um total 863 páginas, reúne a colaboração de cerca de quatro dezenas de especialistas da história da medicina portuguesa no séc. XX (, incluindo, modéstia à parte, o meu nome, no que diz respeito à génese e desenvolvimento da saúde pública).
Dispositivo sanitário no terreno
e doenças mais frequentes
Carlos Vieira Reis dá-nos a sua visão, por dentro, do sistema de saúde militar que, neste período, assentava no seguinte modelo de dispositivo:
- hospital central
- centro de convalescença
- hospital de evacuação
- enfermaria de tuberculose (só em Angola, Nova Lisboa, hoje Huambo)
- destacamento misto de cirurgia e reanimação
- enfermaria de setor
- depósito de material sanitário
- sucursal do laboratório militar de produtos químicos e farmacêuticos
- destacamento de doenças tropicais
- destacamento de inspeção de alimentos
- destacamento de desinfestação
- destacamento de inspeção de águas
- e equipa estomatológica.
Este
dispositivo podia variar, em função das características territoriais e operacionais (p. 492): por exemplo, em
Angola, optou-se pela concentração logística em Luanda, dada a sua “relativa
proximidade” da zona militar e da actividade operacional (inicialmente centrada
no Norte).
A cobertura sanitária do território angolano incluía:
(i) dois hospitais de evacuação (um no Luso, hoje Luena, no Leste; e outro em Cabinda, no Norte);
(ii) 10 enfermarias de sector;
(iii) e ainda “um número significativo de órgãos de apoio sanitário com alguma mobilidade”…
Já no caso da Guiné, e devido à sua pequena extensão territorial, foi possível fazer-se a concentração em Bissau dos órgãos de apoio sanitário.A prevenção das
doenças endémicas, infecciosas e parasitárias (paludismo, tuberculose, etc.)
foi considerada uma das prioridades da missão dos serviços de saúde militares;
(…) “O
paludismo destacou-se pela morbilidade (mais de 33 000 casos registados
anualmente no pessoal militar em Angola) e também pela mortalidade nos
militares de raça branca” (sic) (p. 493).
A
tuberculose era causa de morte sobretudo entre os negros. Mas também há a
registar casos, que o autor não quantifica, de febre tifóide, disenteria
(bacilar e amebiana), filaríase, “e um grande número de casos de doença do sono
e febre-amarela” (p. 493).
Outras
doenças também mereceram atenção especial: dermatomicoses, doenças das vias
respiratórias, doenças gastrointestinais, hepatites infeciosas, raiva e cólera.
Os serviços de saúde regiam-se pelas famosas NEP (Normas de Execução Permanente) e o Manual de Prevenção das Doenças e Socorros Urgentes nas Regiões Tropicais.
Prevenção e profilaxia
da malária / paludismo
O autor
considera ter sido um sucesso o regime (obrigatório) de quimioprofilaxia da
malária (com a administração da camoprima) e da doença do sono (com a pentamidina)
(p. 493).
E, a propósito recorda, que “o médico da companhia” (quando o havia, já que na Guiné, no meu tempo, em 1969/71, o que era correto era dizer-se “o médico do batalhão”…) tinha,à sua responsabilidade, a saúde de 160 homens, uma parte com baixa literacia funcional (para não falar da literacia em saúde…), a quem tinha que ministrar conhecimentos básicos de higiene e prolifaxia, e lidar com preconceitos, atitudes e comportamentos pouco ou nada salutogénicos: por exemplo, nem todos os militares aderiam à toma diária, “obrigatória”, do comprimido antipalúdico (em geral, a cloroquina, o quinino do Laboratório Militar), com o falso argumento de que… “fazia mal à tusa”!...
E a grande frequência de casos de blenorragia (“esquentamentos”) também era o resultado da falta de informação e educação em matéria de saúde sexual (p. 406).
Recorde-se, por outro lado, que a vacinação era também obrigatória para a varíola, a febre tifóide, a febre-amarela, o tétano, a poliomielite, a cólera. O programa de rádio-rastreio das doenças pulmonares era realizado em Portugal e nos territórios ultramarinos, mas não sabemos o grau de cobertura…
Mais preocupante ainda era a situação da saúde oral : por exemplo, em 1962, em Angola, mais de 1/3 das consultas hospitalares, efectuadas pelos militares, eram do foto da estomatologia (pág. 503).
Morbimortalidade
Interessantes
são os números que o autor avança para estimar a morbilidade: cerca de 25 mil
feridos em combate, dos quais 15 mil ficaram com “sequelas definitivas dos seus
ferimentos”. Não há, porém, números relativos à saúde mental…
Da pesquisa
dos registos epidemiológicos nos relatórios anuais dos Quartéis Generais das
Regiões Militares de Angola e Moçambique
e do Comando Territorial Independente da Guiné, só se conseguiu obter,
infelizmente, informações sobre a RM
Angola, relativamente ao período de 1968-1971.
Nesses quatro anos, regista-se um aumento do número de casos de disenteria amebiana, filaríase, blenorragia e sífilis. Também o alcoolismo e as hepatites tiveram um acréscimo significativo. No conjunto das patologias identificadas, “notou-se o elevado número de casos de infeções respiratórias, gastroenterites e sobretudo doenças dos dentes” (p. 494).
No que respeita à mortalidade, “estão documentadas 9 196 mortes, dos quais 8 920 do Exército e 906 da Marinha e da Força Aérea” (p. 494).
As mortes em
combate atingem a percentagem de 45,58%, sendo as restantes causas de morte
o acidente (, de viação, arma de fogo,
afogamento e outras) (36,90%) e a doença (14,52%).
De uma lista
de 1 204 mortos por doença, na população militar de adultos jovens (média
etária: c. 26 anos), só foi possível localizar 429 processos (35,6%, pouco mais
de um terço) no Arquivo Geral do
Exército.
Em Angola, a
causa das mortes por doença, em 107 militares
(66%) foi determinada por autópsia, método este muito menos utilizado na
Guiné e em Moçambique (apenas em cerca de 30% dos casos).
De acordo com a Classificação Internacional das Doenças (CID-10), da Organização Mundial de Saúde, usada “a posteriori” (, uma vez que não existia na época o CID),ficamos a saber o seguinte (p. 494):
(i)
As
doenças infeciosas e parasitárias, no seu conjunto, representavam 36% do total,
com destaque para a malária e a tuberculose (37 e 27 casos, respetivamente);
(ii)
ao
conjunto das outras doenças cabiam os restantes 64%, onde se incluíam as neoplasias
(73 casos) e as doenças do aparelho
circulatório (41 casos) e ainda as
doenças renais.
A idade média de mais de 4/5 dos mortos por doença era igual ou inferior a 23 anos. A média dos restantes (18,6%) era de 42,7 anos. (Tratava-se sobretudo, neste grupo, de militares do quadro permanente, sendo as principais causas de morte as doenças malignas e as doenças do aparelho circulatório.) (p. 494).
Durante toda a guerra, ter-se-á realizado um total (estimado) de 30 mil evacuações para a Metrópole, a maioria estando documentada nos processos existentes no Arquivo Geral do Exército (p. 494).
O regime de
evacuação, definido para os 3 teatros de operações, era o seguinte:
- 10 dias, para a enfermaria de subsector (Batalhão);
- 20 dias (Angola) e 30 dias (Moçambique), para a enfermaria de sector;
- 60 dias, para o hospital de evacuação;
- 90 dias, para o hospital geral (por ex., HM 241, Bissau);
- tratamento definitivo, no caso do hospital militar principal e hospital militar de doenças infecto-contagiosas (Lisboa).
O autor refere que, no entanto, só há registos de evacuações de:
- Angola, em 1962 (6519), 1968 (412), 1969 (602), 1970 (477) e 1971 (720);
- Guiné, em 1972 (620) e 1973 (786);
- Moçambique, em 1970 (477) e 1971 (426).
Relativamente
a evacuações médicas dentro dos TO, só há dados referentes a Moçambique, em
1970 e 1971, com respetivamente 4314 e 4107 evacuações médicas efetuadas por
via área (p. 504).
Veremos a seguir, com detalhe, os recursos, nomeadamente humanos e técnicos, que o sistema de saúde militar dispunha.
Por lapso ou não, o autor não faz qualquer referência ao papel das nossas queridas enfermeiras paraquedistas. Talvez na Guiné esse papel fosse mais valorizado do que em Angola.
O autor, pelo que. percebi, foi cirurgião no Hospital do Luso durante 14 meses e é a partir dessa experiência angolana que aborda os problemas de saúde e da organização e funcionamento dos serviços de saúde militares.
Cite-se,
entretanto, a conclusão do seu artigo,
em jeito de introdução à segunda parte desta nossa nota de leitura:
“Durante a Guerra Colonial, os médicos viveram, de várias formas, uma experiência única, em que testaram ao limite a sua profissão e trabalharam até à exaustão sem a sensação de que isso constituísse um sacrifício.
Desempenharam uma tarefa dignificante, na medida em que levaram a esperança aos combatentes e deram um passo enorme na reconquista das populações indígenas.
No meio de guerras intestinas desnecessárias, fizeram amizades para toda a vida e entregaram-se por inteiro e com orgulho à missão que lhes foi confiada.
A sua presença ficou, por isso, como um momento que os honra e merece ser
recordado” (p. 503).
Não podemos estar mais de acordo.
(Continua)
_________Último poste da série > 18 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21779: Notas de leitura (1334): As Grandes Operações da Guerra Colonial, a Guiné, 1972 a 1974, por Manuel Catarino (Mário Beja Santos)
4 comentários:
By the way... aproveito aqui para reiterar, agora em público, os meus parabéns ao Barros Veloso pelos seus 90 anos como homem e 70 como músico, com toda uma vida fascinante e uma mukltiplicidade de talentos que me levaram há tempos a falar dele como de um "principe da Renascença".
Ver aqui o destaque que lhe deu a Antena 2, chamando-lhe o "Senhor Jazz"
DESTAQUES
Barros Veloso | 90 anos | 27 Setembro
O Doutor Jazz
| Publicado 24 Set, 2020, 10:47
https://www.rtp.pt/antena2/destaques/barros-veloso-90-anos-27-setembro_4567
"A 27 de Setembro, António Barros Veloso, um dos primeiros músicos portugueses de Jazz, cumpre 90 anos de idade. Em 2020 completa também 70 anos como pianista amador de jazz. Uma vida dedicada à Medicina, à Música, ao estudo da azulejaria e à história da ciência. Percurso poliédrico celebrado numa série de iniciativas a que a Antena 2 se associa."
mais uma sugestão de leitura deste grande senhor...
Ordem dos Médicos - Região do Sul
Entrevista a António José Barros Veloso
Um médico que sabe mais do que de Medicina
https://www.omsul.pt/noticias/entrevista-a-ant243nio-jos233-barros-veloso
(...) António José de Barros Veloso nasceu em Coimbra, em 1930. Em entrevista aborda a vida de médico – é especialista em Medicina Interna e Oncologia –, os Hospitais Civis de Lisboa, onde trabalhou praticamente sempre, a sua paixão pela azulejaria e pela História da Medicina. Onze livros no currículo. Reconhecido pianista de jazz que tocou com grandes músicos nacionais e internacionais, embora não saiba ler uma pauta, como refere. (...)
Olá Camaradas
Louvemos o Dr. Barros Veloso, pela sua acção variada e pelo médico que foi ou ainda é. O conhecimento é algo que não nos podemos despir e que podemos aplicar sempre.
Pela recensão que foi apresentada podemos concluir que a sua acção dirá respeito a um TO e num dado momento da Guerra. As alterações que se verificaram são consequência do "problema do pessoal" ou falta dele... Efectivamente seria lógico que em cada companhia existisse um médico. Efectivamente, teríamos uma unidade isolada - como era habitual - à qual estava ligada uma população que, às vezes atingia os milhares de pessoas. Porém, o número de médicos não chagava e, assim rapidamente se resvalou para um médico por batalhão que era manifestamente insuficiente, devido à dispersão das unidades no terreno. E era o mínimo dos mínimos.
Assim, surge-nos o trabalho das Sec. Sanitárias, sob o comando do furriel e com 3 cabos Aux. Enfermagem (maqueiros), cujo trabalho foi heróico, quer pela insuficiência de meios, quer pela falta de conhecimentos, quer pelas variadíssimas situações que lhe poderiam surgir. Mas este será um tema para outro estudo.
Recordo que, no B.Art. 1896 e B.Caç 2834, havia dois médicos, um em Cacine e outro em Buba. Em Mansoa, havia também dois médicos no B.Caç 4612, ambos em Mansoa. Um deles visitou a C.Art. 3567. Curiosamente era... ginecologista.
Um Ab.
António J. P. Costa
Tó Zé: O seu a seu dono...A recensão ou nota de leitura em questão diz respeito a um capítulo de um livro (e não ao livro todo)....O autor do capítulo sobre "a guerra colonial" é o dr. Carlos Vieira Reis, coronel médico e escritor, ex-diretor de serviço de cirurgia, ex-director clínico do Hospital Militar Principal, ex-presidente da União Mundial dos Escritores Médicos. Na realidade, é um capítulo sobre os serviços de saúde militares durante a guerra de Ágrica / guerra di ««««
O dr. Barros Veloso foi quem organizaou o livro "Médicos e Socidade: para uma história da medicina portuguesa no século XX". Ou seja, é o editor literário principal, além de ser autor ou coautor de mais de uma dúzia de capítulos.
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