Guiné > Zona Sul > Região de Quínara > Sector S1 (Tite) > Empada > CCAÇ 2381, Os Maiorais ( Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70) > O 1º cabo aux enf Zé Teixeira em 1969, com a sua namorada, a G3trudes, com quem irá manter um conflituosa relação que acabará mal.
Foto (e legenda): © José Teixeira (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem comp'lementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Humor de caserna > A minha... G3trudes: uma peça em 3 atos e um final feliz
por Zé Teixeira
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"O Maioral", Zé Teixeira |
Na quinzena de campo, na IAO, que antecedeu a partida para Guiné, deram-me uma companheira, a namorada que, afirmaram, me ia acompanhar durante todo o tempo em que ia estar na guerra. Se houvesse alguma infelicidade, me acompanharia até ao caixão. Era uma G3, a Gertrudes ou a G3trudes.
Disseram-me também para a tratar com carinho. Cuidar dela era cuidar de mim próprio.
Primeiro, trazê-la sempre limpa e asseada, sobretudo o cano, para que a baba, ao tentar sair, furiosa por não conseguir devido a sujidade, não rebentasse o cano. Pois, na pior das hipóteses, as tiras de aço voltavam-se para trás e atingiam o crânio do atirador, mandando-o de volta no sobretudo de madeira.
Segundo, pôr-lhe creme (óleo) nas partes mais sensíveis, para responder rapidamente aos estímulos.
Terceiro, sempre travadinha, para não fazer asneiras.
Quaro, nunca a abandonar, pois, se perdida, dava origem no mínimo, mais meio ano de comissão. O importante era chegar, sempre, ao aquartelamento com a G3trudes.
Durante os primeiros três meses, foi de facto, a minha companheira preferida e inseparável:
- pendurada no meu ombro, ao lado da bolsa de enfermeiro;
- deitada a meu lado à sombra de uma árvore protectora do sol e do IN;
- ou no chão de cimento na caserna em Ingoré.
Antes da partida, prometera a mim mesmo não lhe tocar nas partes sensíveis, porque vomitavam fogo, matavam vidas e isso não fazia parte da minha missão como enfermeiro e muito menos dos meus planos.
Cantei de alegria, quando soube que as sortes me tinham destinado a ser enfermeiro, convencido que escaparia à guerra pura e dura e que com o meu trabalho iria minimizar dores e, quem sabe, salvar vidas.
Da guerra dura e crua, não escapei, mas cumpri, apesar dos parcos conhecimentos da arte de enfermagem que me proporcionaram, a missão que me destinaram, com dedicação.
(ii) O início do fim de uma relação de amor... impossível
Ao fim de três meses de companhia dedicada, algo de grave se passou que me levou a repudiar a G3trudes para sempre.
Estávamos em plena época das chuvas. Partimos de Buba às seis da matina com destino a Aldeia Formosa, terra até então desconhecida, onde deveríamos chegar à tarde.
A CCAÇ 1792 veio buscar-nos. Os Lenços Azuis foram, assim, testemunhas no meu batismo de fogo em aquartelamento. Mal chegámos (tínhamos ido ao seu encontro), fomos recebidos com fogo cruzado das duas margens do Rio, mas foi só o susto. Uma amostra do que nos ia esperar no futuro.
Para além de uma enorme coluna de viaturas carregadas com mantimentos, seguiam três obuses de 14 cm. Toneladas de aço a atravessar lamaçais contínuos, pontes montadas e desmontadas por nós e o IN à espreita.
Ao meio da tarde, depois de uma tempestade de... abelhas, quando tínhamos andado apenas uns três quilómetros, uma traiçoeira mina destrói a 5.ª viatura, a das transmissões, levantando uma nuvem de lama. As transmissões terminaram a sua missão.
Ficámos isolados do mundo. Aparentemente, os quatro camaradas que voaram com o sopro, ficaram apenas combalidos, mas um deles, o radiotelegrafista, projectado com o forte impacto, ao cair, ficou ferido interiormente. A morte foi-se aproximando lentamente. A vida dele caminhava para o fim devido à perda de sangue, que não podíamos controlar. Só uma evacuação urgente o salvaria. Tínhamos ficado sem comunicações.
Foram tremendamente dolorosos, para mim e para os enfermeiros das duas companhias, viver estes momentos, horas, de vida, a lutar sem armas, pela vida de um camarada que se apagava. Ele sentia que as forças lhe estavam a escapar. Nós sentíamo-nos impotentes para o salvar. Só o milagre do helicóptero, que não aparecia, porque ninguém sabia, que aquela jovem vida se estava a apagar.
Da guerra dura e crua, não escapei, mas cumpri, apesar dos parcos conhecimentos da arte de enfermagem que me proporcionaram, a missão que me destinaram, com dedicação.
(ii) O início do fim de uma relação de amor... impossível
Ao fim de três meses de companhia dedicada, algo de grave se passou que me levou a repudiar a G3trudes para sempre.
Estávamos em plena época das chuvas. Partimos de Buba às seis da matina com destino a Aldeia Formosa, terra até então desconhecida, onde deveríamos chegar à tarde.
A CCAÇ 1792 veio buscar-nos. Os Lenços Azuis foram, assim, testemunhas no meu batismo de fogo em aquartelamento. Mal chegámos (tínhamos ido ao seu encontro), fomos recebidos com fogo cruzado das duas margens do Rio, mas foi só o susto. Uma amostra do que nos ia esperar no futuro.
Para além de uma enorme coluna de viaturas carregadas com mantimentos, seguiam três obuses de 14 cm. Toneladas de aço a atravessar lamaçais contínuos, pontes montadas e desmontadas por nós e o IN à espreita.
Ao meio da tarde, depois de uma tempestade de... abelhas, quando tínhamos andado apenas uns três quilómetros, uma traiçoeira mina destrói a 5.ª viatura, a das transmissões, levantando uma nuvem de lama. As transmissões terminaram a sua missão.
Ficámos isolados do mundo. Aparentemente, os quatro camaradas que voaram com o sopro, ficaram apenas combalidos, mas um deles, o radiotelegrafista, projectado com o forte impacto, ao cair, ficou ferido interiormente. A morte foi-se aproximando lentamente. A vida dele caminhava para o fim devido à perda de sangue, que não podíamos controlar. Só uma evacuação urgente o salvaria. Tínhamos ficado sem comunicações.
Foram tremendamente dolorosos, para mim e para os enfermeiros das duas companhias, viver estes momentos, horas, de vida, a lutar sem armas, pela vida de um camarada que se apagava. Ele sentia que as forças lhe estavam a escapar. Nós sentíamo-nos impotentes para o salvar. Só o milagre do helicóptero, que não aparecia, porque ninguém sabia, que aquela jovem vida se estava a apagar.
− Já não vejo ! − gritava.
E depois:
− Ajudem-me a levantar − balbuciava ele, mesmo no fim, com a esperança de ainda conseguir recuperar forças e poder gritar bem alto "Safei-me!"... Mas não. Não era possível. O seu destino fora traçado, quando alguém pegou num lápis e riscou o nome dele, assinalando-o para ser mobilizado para a guerra. A guerra que ele não queria...
O sol começou a esconder-se como que envergonhado e o camarada irmão disse adeus à vida, serenamente, sem pressas, em silêncio...
Na azáfama de tratar os feridos, esqueci-me da G3trudes. Foi posta de lado, esquecida, algures. Agora, era preciso procurá-la. Onde ? Tinha-lhe perdido o lugar.
Apareceu uma abandonada junto a uma árvore. Deitei-lhe a mão. Estava safo. E segui caminho.
Uma noite sem sono, com milhares de mosquitos a perseguirem-me e o IN à espreita. Até que o Sol raiou de novo e com ele a ordem de marcha. A partida para o desconhecido. Chão que eu nunca pisara. Lama e mais lama. Mata cerrada. Grandes palmeiras que furaram a selva verdejante à procura do sol, apontavam o céu...
Não demorou muito a aparecer o IN. A coluna era demasiado longa e pesada. Lentamente lá se ia movendo à procura do destino. Deu para emboscarem a frente. Recuaram face à forma como ripostamos e voltaram a atacar a retaguarda.
(iii) Ah! G3trudes de um raio!
Deitado sobre os rodados das viaturas, com o coração a bater como nunca o tinha sentido, escutava o tiroteio que me rodeava, ao ritmo dos rebentamentos das morteiradas que me faziam vibrar violentamente os tímpanos. A G3trudes, a meu lado muito quietinha, quando senti que estava a ser incomodado diretamente. Alguém estava a querer brincar às guerrinhas comigo. As balas assobiavam muito por perto e vinham do alto. Olhei para as palmeiras e vislumbrei fogachos de luz.
A raiva contida, pela morte do camarada, veio ao de cima.
− Ah! G3trudes de um raio! Anda cá!...
Apontar, disparar e... um tremendo coice, um som seco e abafado, seguido de um ruído estranho. À minha frente jazia a G3ertrudes, com o cano esventrado em tiras. Uma espécie de fole, ou balão.
Fui desarmado para que pudesse cumprir o voto de não matar na guerra para onde me atiraram sem me perguntar.
Deus esteve comigo neste momento. Contrariamente ao que me disseram na instrução de armamento, o cano não abriu em leque, o que a acontecer, muito provavelmente se viria espetar no meu crânio e era a morte certa. O tapa-chamas foi o impecilho que me salvou a vida.
− Uf! Desta já escapei.
A G3 que no dia anterior tinha encontrado abandonada pertencia ao Salvaterra Bernardes, natural de Salvaterra de Magos. Um jovem português, deficiente motor e deficiente mental, que assassinos (não encontro nome mais apropriado)´apuraram para todo o serviço militar, fez a recruta e a especialização como atirador e veio cair na CCAÇ 2381, quando já aguardávamos embarque para a Guiné.
A arma na mão deste homem não servia para nada. Não tinha utilidade prática. Limpeza, para quê? O cano estava cheio de areia. A bala encontrou resistência e provocou o seu rebentamento, mas estava lá o tapa-chamas.
Salvou-me a vida, impedindo o rebentamento em leque e... talvez, assim se tenha salvo a vida do IN que procurava atingir-me.
Restou apenas encolher-me e esperar que a fraca pontaria do adversário desse resultado, o que aconteceu para meu bem.
Não houve feridos de nossa parte. A coluna seguiu caminho.
(iv) O divórcio
A meio da tarde a aviação localizou-nos, o héli veio buscar os feridos do dia anterior e a vida continuou. Chegãmos ao destino ao fim da tarde, ou seja vinte e quatro horas depois do previsto.
A G3 que no dia anterior tinha encontrado abandonada pertencia ao Salvaterra Bernardes, natural de Salvaterra de Magos. Um jovem português, deficiente motor e deficiente mental, que assassinos (não encontro nome mais apropriado)´apuraram para todo o serviço militar, fez a recruta e a especialização como atirador e veio cair na CCAÇ 2381, quando já aguardávamos embarque para a Guiné.
A arma na mão deste homem não servia para nada. Não tinha utilidade prática. Limpeza, para quê? O cano estava cheio de areia. A bala encontrou resistência e provocou o seu rebentamento, mas estava lá o tapa-chamas.
Salvou-me a vida, impedindo o rebentamento em leque e... talvez, assim se tenha salvo a vida do IN que procurava atingir-me.
Restou apenas encolher-me e esperar que a fraca pontaria do adversário desse resultado, o que aconteceu para meu bem.
Não houve feridos de nossa parte. A coluna seguiu caminho.
(iv) O divórcio
A meio da tarde a aviação localizou-nos, o héli veio buscar os feridos do dia anterior e a vida continuou. Chegãmos ao destino ao fim da tarde, ou seja vinte e quatro horas depois do previsto.
Localizei a minha arma na mão do Salvaterra, fiz o relatório que me exigiram para abater a arma destruída e... para não mais ser tentado a fazer fogo e correr o risco de matar vidas humanas, fui entregar a minha arma ao quarteleiro, sob a ameaça do capitão que me daria uma porrada se me apanhasse sem a minha G3trudes.
Fui só e apenas enfermeiro durante o resto da comissão. Afinal era a minha missão.
Zé Teixeira
Fui só e apenas enfermeiro durante o resto da comissão. Afinal era a minha missão.
Zé Teixeira
(Revisão / fixação de texto, título: LG)(**)
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Notas do editor LG:
(*) Vd. poste de 5 de agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2030: Estórias do Zé Teixeira (19): A G3ertrudes encravada que salvou duas vidas (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)
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Notas do editor LG:
(*) Vd. poste de 5 de agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2030: Estórias do Zé Teixeira (19): A G3ertrudes encravada que salvou duas vidas (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)
2 comentários:
Zé, espero não te chocar, nem a ti nem aos outros "Maiorais", por ir repescar esta tua fabulosa crónica, e republicá-la, com alguns (re)toques, na série "Humor de Caserna"... A guerra onde tu e eu estivemios, teve, como todas as guerras, muitas facetas, foi tragédia, drama, comédia, farsa, circo, feira de vaidades, ópera bufa, tragicomédia...
Não me lembrava de todo deste texto...Redescobri-o por causa do descritor "G3"... É mais um texto "pícaro" que enriquece a nossa literatura da guerra colonial... Um dia, tens que o incluir na tua antologia de textos, que hás de publicar, nem que seja para os teus/nossos netos e bisnetos...
É um achado, chamares "Gertrudes" à G3, "namorada" que tiveste de suportar...Genial foi a ideia de lhe truncares o nome, "G3ertudes" (sic) (como vem no teu original... Simplifiquei: "G3trudes", "Gê-Três-Trudes", é mais fácil de pronunciar...Também podia ser só "Gê-Trudes"...Mas perdia-se a associação do nome Gertrudes com a G3...
Renomei o texto: "A minha...G3trudes: uma peça em 3 atos e um final feliz"... O teu "noivado forçado" tinha que acabar em.. "divórcio". Em boa verdade, não chegou a ver "casamento". É uma história que, lida por um psicanalista ou psicólogo, tem muito que se lhe diga...
Andei sempre sempre no mato com os bravos 1ºs cabos auxiliares enfermeiros, camaradas como tu, por quem tenho grande admiração e respeito. Nunca percebi por que razão vocês, além da mochila dos primeiros socorros, tinha que andar com a G3...que pesava 4 quilos e tal... Na contabilidade de mercearia dos nossos "maiores", um enfermeiro com G3trudes era mais um "atiruense"...Quando tinhas que prestar socorrer os feridos, tinhas que largar a tua "namorada"... Por que não dar-te uma arma de defesa pessoal ? Nunca me explicaram isso, eu agora é que estou a manifestar o meu "espanto"...
Que não dessem uma "arma de defesa pessoal" às enfermeiras paraquedistas, percebe-se... Elas estavam "terminantemente proibidas" de sair do heli... Proibição que elas, obviamente, nunca respeitaram...Quem assistiu, no mato, ao seu trabalho, sabe bem que elas não eram "mulheres para capinar sentadas"... E vocês também não. Já aqui publicámos a lista dos teus camaradas que morreram na Guiné...Temos que, de vez em quando, reavivá-la, republicá-la... Mantenhas. Saúde e bom humor. Luís
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