Vídeo (49''): Luís Graça (2011). Alojado em You Tube > Nhabijoes
Luis Henriques (1920-2012): Lourinhã, Atalaia, Lar e
Centro de Dia de Nossa Senhora da Guia, 8 de outubro de 2011, precisamente seis meses antes de morrer (a 8 de abril de 2012)... Trauteando, aos 91 anos, uma das
suas canções favoritas, ligada à sua memória da tropa e e da sua comissão de serviço militar no ultramar, no Mindelo, Ilha de São Vicente, Cabo Verde (1941-1943). Mesmo debilitado pela doença (crónica) de que sofria há 5 anos, ele arranjava forças para se mostrar feliz e agradecido pelas visitas que a família (filhos e netos) lhe faziam todas as semanas...
A canção chama-se "Ranchinho Abandonado". É uma canção brasileira,
sertaneja, da dupla Raul Torres e João Pacífico, composta em 1939. Estava na moda em Portugal, quando ele, em plena II Guerra Mundial, partiu como expedicionário para a Ilha de São Vicente, Cabo Verde, indo integrar o RI 23 (*)... Acompanhamento a violino, pelo neto João Graça que tinha o bom hábito de ir anotando, sempre que estava com o avô, os seus ditos, anedotas e historietas...
Letra > "Ranchinho Abandonado" (Música e letra: Raul Torres e João
Pacífico, 1939).
Você deixou o nosso ranchinho abandonado,
Vive tão triste, o coitado,
Que dá pena até de ver.
Quando anoitece,
Bate a lua no caminho,
E eu lá dentro, tão sozinho,
Fico pensando em você.
Vive tão triste, o coitado,
Que dá pena até de ver.
Quando anoitece,
Bate a lua no caminho,
E eu lá dentro, tão sozinho,
Fico pensando em você.
Pego a viola p'ra esquecer a minha mágoa
E os meus olhos, rasos d' água,
Que não cansam de chorar.
Eu vou cantando o soluço e a saudade,
Porque a felicidade,
Hoje, eu não posso cantar.
Que não cansam de chorar.
Eu vou cantando o soluço e a saudade,
Porque a felicidade,
Hoje, eu não posso cantar.
E o ranchinho continua aqui tristonho,
Acabou-se o antigo sonho,
Veio a tristeza morar. Em seu lugar só restou essa viola
Que a minha dor consola
Quando, às vezes, me vê chorar.
Pego a viola p'ra esquecer a minha mágoa,
E os meus olhos, rasos d' água,
Que não cansam de chorar.
Eu vou cantando o soluço e a saudade,
Porque a felicidade,
Hoje, eu não posso cantar.
Quando, às vezes, me vê chorar.
Pego a viola p'ra esquecer a minha mágoa,
E os meus olhos, rasos d' água,
Que não cansam de chorar.
Eu vou cantando o soluço e a saudade,
Porque a felicidade,
Hoje, eu não posso cantar.
1. Meu pai, meu velho, meu camarada... Faz hoje um mês que nos deixaste... Os confrades da tua confraria da Nossa Senhora dos Anjos, na Lourinhã, mandaram-te rezar uma missa. Pela tua alma. Para que descanses em paz. Para que continues a sorrir-nos, com o teu sorriso lindo, lá da outra margem do rio invisível e intransponível que nos separa...
Tenho pena, mas não posso ir à tua missa, hoje, aí na Lourinhã... Estou a trabalhar a essa hora. Mas eu e o João (que está de férias, na Índia) estaremos lá contigo, em espírito... Tens lá a Joana,e a Alice, as tuas filhas Graciete e Zairinha, e alguns dos teus netos, e demais família... A Béu, a tua caçoila, também não poderá ir, está no Fundão, mas rezará por ti...
Temos muitas saudades tuas, pai. Este pequeno vídeo é uma forma de mitigar a nossa dor... Lembras-te ? Era uma das tuas canções favoritas. Estava na moda em Lisboa, quando partiste para Cabo Verde, em 1941... Sempre te a ouvi cantar pela vida fora... Você deixou o nosso ranchinho abandonado, /Vive tão triste o coitado / Que dá pena até de ver... Não, não é uma morna, é uma canção sertaneja, lá do Brasil... De João Aparício, o "poeta do sertão" que morreu em 1998, completamente esquecido...
Pois é, agora foi a tua vez de deixar o teu/nosso "ranchinho abandonado"... Sempre nos protegestes ao longo da tua vida, o melhor que sabias e podias... Agora é a nossa vez de experimentar esse estranho sentimento de orfandade que tu conheceste tão cedo, na tua vida, logo aos dois anos... Nunca soubeste, pela vida fora, o que era o doce amor de mãe... ("Quanto é doce quanto é bom / No mundo encontrar alguém / Que nos junte contra o peito / E a quem nós chamemos mãe"... cantava o poeta e músico Zeca Afonso),
A tua, a minha avó, foi-se cedo desta vida, ceifada pela tuberculose, em 1922, logo a seguir à epidemia da pneumónica (1918-19), de que me falavas tanto, embora ainda não fosses nascido quando foi o pico da pandemia. (Recordo-me de me dizeres que "quem se safou, era quem bebia aguardente"...).
Sabes, escrevi uma pequena nota biográfica sobre ti para o jornal da nossa terra, o "Alvorada"... Vou-ta reproduzir aqui, para os meus camaradas lerem, no blogue, de que tu eras (e continuarás a ser) membro... Eles estimavam-te e consideravam-te como um "mais velho"... Agora resta-nos o Armando Lopes, cabo verdiano, pai do Nelson Herbert, e que chegou a ser craque da bola na Guiné, com a alcunha de Búfalo Bil... Ainda esteve contigo no Mindelo, em 1943... É da tua idade,,,
Publico também uma foto tua com a Maria da Graça, quando ainda estavas todo janota, aos 70 anos ... Sabes, estive este fim de semana no Lar, e pude dar-me conta de quanto ela sente a tua falta, mesmo que não já possa expressar as suas emoções... Ela sente a tua ausência, e fixou muita atentamente o artigo do jornal onde vem a vossa foto, de abril de 1991.
Se não te importas, nunca me despedirei de ti, vou falando contigo, à minha maneira. Assim como hoje... Entretanto, vamo-nos encontrando por aí e aqui, às vezes com uma lágrima furtiva ao canto do olho... LG
Morreu o Luís Sapateiro (1920-2012), uma figura muita popular e querida da nossa terra
Luís Henriques, mais conhecido por Luís Sapateiro, ou simplesmente por Ti Luís:
Temos muitas saudades tuas, pai. Este pequeno vídeo é uma forma de mitigar a nossa dor... Lembras-te ? Era uma das tuas canções favoritas. Estava na moda em Lisboa, quando partiste para Cabo Verde, em 1941... Sempre te a ouvi cantar pela vida fora... Você deixou o nosso ranchinho abandonado, /Vive tão triste o coitado / Que dá pena até de ver... Não, não é uma morna, é uma canção sertaneja, lá do Brasil... De João Aparício, o "poeta do sertão" que morreu em 1998, completamente esquecido...
Pois é, agora foi a tua vez de deixar o teu/nosso "ranchinho abandonado"... Sempre nos protegestes ao longo da tua vida, o melhor que sabias e podias... Agora é a nossa vez de experimentar esse estranho sentimento de orfandade que tu conheceste tão cedo, na tua vida, logo aos dois anos... Nunca soubeste, pela vida fora, o que era o doce amor de mãe... ("Quanto é doce quanto é bom / No mundo encontrar alguém / Que nos junte contra o peito / E a quem nós chamemos mãe"... cantava o poeta e músico Zeca Afonso),
A tua, a minha avó, foi-se cedo desta vida, ceifada pela tuberculose, em 1922, logo a seguir à epidemia da pneumónica (1918-19), de que me falavas tanto, embora ainda não fosses nascido quando foi o pico da pandemia. (Recordo-me de me dizeres que "quem se safou, era quem bebia aguardente"...).
Sabes, escrevi uma pequena nota biográfica sobre ti para o jornal da nossa terra, o "Alvorada"... Vou-ta reproduzir aqui, para os meus camaradas lerem, no blogue, de que tu eras (e continuarás a ser) membro... Eles estimavam-te e consideravam-te como um "mais velho"... Agora resta-nos o Armando Lopes, cabo verdiano, pai do Nelson Herbert, e que chegou a ser craque da bola na Guiné, com a alcunha de Búfalo Bil... Ainda esteve contigo no Mindelo, em 1943... É da tua idade,,,
Publico também uma foto tua com a Maria da Graça, quando ainda estavas todo janota, aos 70 anos ... Sabes, estive este fim de semana no Lar, e pude dar-me conta de quanto ela sente a tua falta, mesmo que não já possa expressar as suas emoções... Ela sente a tua ausência, e fixou muita atentamente o artigo do jornal onde vem a vossa foto, de abril de 1991.
Se não te importas, nunca me despedirei de ti, vou falando contigo, à minha maneira. Assim como hoje... Entretanto, vamo-nos encontrando por aí e aqui, às vezes com uma lágrima furtiva ao canto do olho... LG
Morreu o Luís Sapateiro (1920-2012), uma figura muita popular e querida da nossa terra
Luís Henriques, mais conhecido por Luís Sapateiro, ou simplesmente por Ti Luís:
(i) Nasceu na Lourinhã em 1920. Homem de fé, morreu no passado domingo de Páscoa, dia 8 de abril, na Atalaia, no Lar e Centro de Dia de N. Sra da Guia, onde vivia desde 2008 com a esposa, Maria da Graça. Morreu em paz, consigo, com os seus descendentes (4 filhos, 12 netos, 5 bisnetos), com Deus e com o mundo.
(ii) Tinha raízes, pelo lado do pai, Domingos Henriques, no Montoito, e pelo lado da avó materna, Maria Augusta de Sousa, em Ribamar (clã Maçarico). Sua mãe, Alvarina de Jesus, morreu jovem, em 1922, de tuberculose, fato que o marcou para toda a vida: a mãe nunca lhe pôde dar um beijo!... E nos seus três últimos dias de existência, em que eu tive o privilégio de o acompanhar no seu leito de morte, evocou o nome da mãe Alvarina, por mais de um vez. Tinha uma enorme afeição por ela.
(iii) Viveu nos primeiros anos de infância com a nova família do pai, que casou pela terceira vez. Ao todo teve uma dúzia de irmãos. Fez a instrução primária (na época quatro anos de escolaridade) na velha Escola Conde de Ferreira (demolida pelo camartelo camarário antes do 25 de abril), sob a direção Professor José António, que ainda conheci na minha infância, pai do meu conterrâneo e amigo Jorge Pedro.
(iv) O seu primeiro emprego foi como marçano, ou melhor, como “máquina registadora e de calcular”, na loja do fotógrafo e comerciante Manuel Lourenço da Luz, que veio da Praia da Vieira para a Lourinhã, na primeira ou segunda década do séc. XX, e que foi pai do fotógrafo António José da Luz (Foto Luz). A loja, na Rua Miguel Bombarda, vendia uma miscelânea de artigos fotográficos, vidraria, molduras, papelaria e bijuteria. O meu pai era muito rápido e fiável a fazer contas. [Vd. foto à esquerda, cortesia da bisneta do Manuel da Luz, a Ana Luz Pignatelli].
Terá trabalhado para o seu primeiro patrão, na Lourinhã e na Praia da Areia Branca, a troco apenas da alimentação e de algumas gorjetas, durante cerca de 4 anos. O meu pai tinha recordações muito nítidas da época balnear, na loja da praia. Além da fotografia, o negócio do Manuel da Luz incluía o comércio de equipamento para caça e pesca. À segunda feira, ia com o patrão para a caça de patos, perdizes e coelhos ao longo do rio Grande…
(iii) Viveu nos primeiros anos de infância com a nova família do pai, que casou pela terceira vez. Ao todo teve uma dúzia de irmãos. Fez a instrução primária (na época quatro anos de escolaridade) na velha Escola Conde de Ferreira (demolida pelo camartelo camarário antes do 25 de abril), sob a direção Professor José António, que ainda conheci na minha infância, pai do meu conterrâneo e amigo Jorge Pedro.
(iv) O seu primeiro emprego foi como marçano, ou melhor, como “máquina registadora e de calcular”, na loja do fotógrafo e comerciante Manuel Lourenço da Luz, que veio da Praia da Vieira para a Lourinhã, na primeira ou segunda década do séc. XX, e que foi pai do fotógrafo António José da Luz (Foto Luz). A loja, na Rua Miguel Bombarda, vendia uma miscelânea de artigos fotográficos, vidraria, molduras, papelaria e bijuteria. O meu pai era muito rápido e fiável a fazer contas. [Vd. foto à esquerda, cortesia da bisneta do Manuel da Luz, a Ana Luz Pignatelli].
Terá trabalhado para o seu primeiro patrão, na Lourinhã e na Praia da Areia Branca, a troco apenas da alimentação e de algumas gorjetas, durante cerca de 4 anos. O meu pai tinha recordações muito nítidas da época balnear, na loja da praia. Além da fotografia, o negócio do Manuel da Luz incluía o comércio de equipamento para caça e pesca. À segunda feira, ia com o patrão para a caça de patos, perdizes e coelhos ao longo do rio Grande…
(v) Aos 13 anos, o meu pai terá uma nova família de acolhimento, a do seu tio materno, Francisco de Sousa (Fofa), músico e industrial de sapataria. Aprende o ofício de sapateiro. É criado com os seus primos António Francisco Sousa, Carlos Sousa e Milu (esta felizmente ainda viva; e todos eles com excelentes dotes musicais: o António tocava saxofone e fundou a primeira "banda de jazz" da terra, o conjunto Sol Do Ré Mi; o Carlos era um especialista em prata na banda da Lourinhã; e a Milú uma bela menina de coro).
(vi) Aos 20 anos assenta praça no RI 5, Caldas da Rainha. Em 1941 parte para Cabo Verde, como expedicionário, com o posto de 1º Cabo Inf da 3ª Companhia do 1º Batalhão do RI 5. Tinha memórias muito vivas (incluindo registos fotográficos) dos difíceis tempos que passou no Mindelo, Ilha de São Vicente (26 meses, entre julho de 1941 e setembro de 1943; nos últimos 4 meses esteve hospitalizado, por problemas pulmonares, entre maio e agosto de 1943).
A saudade da terra era mitigada pela presença de diversos lourinhanenses, o António Correia Caxaria, o Boaventura Horta, o Jaime Filipe, o Leonardo, e outros - naturais da vila, da Atalaia, da Serra do Calvo... - que pertenciam à mesma unidade (RI 23, constituído na Ilha de São Vicente, 1941/44) (*).
Numa época de elevado analfabetismo, sacrificava os seus tempos livres escrevendo dezenas de cartas por semana em nome de muitos dos seus camaradas. Aos 91 anos ainda se lembrava dos números de tropa de alguns dos seus camaradas, e até das moradas para onde enviava as cartas. Em nome do Fortunato Borda d'Água, do Cercal, Azambuja, por exemplo, chegava a escrever 22 cartas por semana... O Fortunato tinha duas namoradas, "uma que chorava ao pé da mãe dele, e outra que se ria, em plena rua"... O meu pai um dia teve que o ajudar a decidir-se:
- Ó Fortunato, afinal de quem é que tu gostas mais ? Com queres casar ? Da que se ri, na rua, ou da que chora no ombro da tua mãe ?...
- Ó Luís, claro que é da que chora...
Numa época de elevado analfabetismo, sacrificava os seus tempos livres escrevendo dezenas de cartas por semana em nome de muitos dos seus camaradas. Aos 91 anos ainda se lembrava dos números de tropa de alguns dos seus camaradas, e até das moradas para onde enviava as cartas. Em nome do Fortunato Borda d'Água, do Cercal, Azambuja, por exemplo, chegava a escrever 22 cartas por semana... O Fortunato tinha duas namoradas, "uma que chorava ao pé da mãe dele, e outra que se ria, em plena rua"... O meu pai um dia teve que o ajudar a decidir-se:
- Ó Fortunato, afinal de quem é que tu gostas mais ? Com queres casar ? Da que se ri, na rua, ou da que chora no ombro da tua mãe ?...
- Ó Luís, claro que é da que chora...
(vii) A seca e a fome que assolaram Cabo Verde nessa época, e que fizeram dezenas de milhares de mortos, tiveram impacto na sua consciência de bom português e bom cristão. O seu "impedido", o Joãozinho, que ele alimentava com as suas próprias sobras do rancho, também ele morreu, de fome e de doença, em meados de 1943. Comove-se ao dizer-me que deu à família do miúdo todo o dinheiro que tinha em seu poder (c. de 16$00) - na altura, estava hospitalizado -, para ajudá-la nas despesas do enterro. Lembro-me de ele me dizer que um cabo ganhava na época qualquer coisa como 130$00 por mês... De volta à metrópole, não terá mais do que 200$00 ou 300$00 no bolso. Para ele o dinheiro nunca foi fêmea...
(viii) Do Mindelo escreve à sua namorada, futura noiva e esposa, e minha mãe, Maria da Graça:
Maria, minha cachopa,
Não me sais do pensamento,
Tão logo eu saia da tropa,
Trataremos do casamento…
De regresso à Lourinhã, em setembro de 1943, vinha cheio de saudades… de comer uvas. "Vinte e seis meses sem comer uvas, sabes o que é ?", interpelava-me ele, nas nossas conversas sobre Cabo Verde, no Bar dos Cinco Paus, na Praia da Areia Branca...
Faz sociedade com o seu irmão Domingos Severino, dois anos mais novo, meu padrinho de batismo, já falecido. Abrem a sua própria oficina de sapataria, na Rua Miguel Bombarda. Chegam a ter bastantes empregados. Na época ainda não havia produção industrial de calçado.
Casa, entretanto, em 2 de fevereiro de 1946 com a Maria da Graça, natural do Nadrupe, filha de camponeses, criada de servir de senhores e senhoras de Lisboa, da Praia da Areia Branca e da Lourinhã, desde tenra idade (9/10 anos). Como rapariga que era, naquela época, só tinha a 3ª classe, tirada numa professora particular, mas sabia muito bem ler, escrever e contar. Sei que houve lagosta na festa do casório, a que assistiram amigos e parentes. Na época, a festarola terá ficado por 800$00 (se a memória não me atraiçoa).
A 29 de janeiro de 1947 nasci eu. Até 1964, a Maria da Graça dará à luz ainda mais três raparigas: Graciete, Maria do Rosário e Ana Isabel.
Maria, minha cachopa,
Não me sais do pensamento,
Tão logo eu saia da tropa,
Trataremos do casamento…
De regresso à Lourinhã, em setembro de 1943, vinha cheio de saudades… de comer uvas. "Vinte e seis meses sem comer uvas, sabes o que é ?", interpelava-me ele, nas nossas conversas sobre Cabo Verde, no Bar dos Cinco Paus, na Praia da Areia Branca...
Faz sociedade com o seu irmão Domingos Severino, dois anos mais novo, meu padrinho de batismo, já falecido. Abrem a sua própria oficina de sapataria, na Rua Miguel Bombarda. Chegam a ter bastantes empregados. Na época ainda não havia produção industrial de calçado.
Casa, entretanto, em 2 de fevereiro de 1946 com a Maria da Graça, natural do Nadrupe, filha de camponeses, criada de servir de senhores e senhoras de Lisboa, da Praia da Areia Branca e da Lourinhã, desde tenra idade (9/10 anos). Como rapariga que era, naquela época, só tinha a 3ª classe, tirada numa professora particular, mas sabia muito bem ler, escrever e contar. Sei que houve lagosta na festa do casório, a que assistiram amigos e parentes. Na época, a festarola terá ficado por 800$00 (se a memória não me atraiçoa).
A 29 de janeiro de 1947 nasci eu. Até 1964, a Maria da Graça dará à luz ainda mais três raparigas: Graciete, Maria do Rosário e Ana Isabel.
(ix) Continua a jogar futebol, como atleta amador, e ao mesmo tempo participa na vida associativa das diversas coletividades da sua terra, desde o Sporting Club Lourinhanense (SCL) até aos bombeiros, a banda de música e a misericórdia. É mordomo de festas (como a da Sra dos Anjos e de São Sebastião). Quando morreu, era de há muito o sócio nº 1 do SCL, coletividade que de resto sempre o acarinhou e o homenageou, tanto em vida como na morte. Foi treinador de gerações de miúdos, das camadas juvenis, sempre ao serviço do SCL. Comprava-lhes as sandes para o pequeno almoço e arranjava-lhes as botas e aos domingos percorria o distrito de Lisboa, nos torneios de futebol...
Era um bom lourinhanense, muito querido e estimado por toda a gente. Espirituoso, bem humorado, com jeito para o improviso poético, definia assim a sua terra:
Lourinhã,
uma vila catita,
bonita, sem vaidade,
tem montras como uma cidade.
Mas
também ninguém nos engana:
ao fim de semana,
sem sol, sem bola e sem missa,
é uma terra de preguiça…
Ou noutra variante, mais mordaz:
Lourinhã tem três entradas,
três saídas, três igrejas, três ermidas,
três moinhos
de vento
e... ladrões em todo o tempo!
(x) Trabalhador por conta própria, deu trabalho a muita
gente, numa época em que o emprego era escasso e mal remunerado… Viu muita gente (incluindo os seus empregados) partir para os EUA, o Canadá, a França, a Alemanha, nos anos 50 e 60... Tinha inúmeros
clientes, quer da vila, quer das aldeias mais a norte do concelho (do Sobral a
São Bartolomeu) e até fora do concelho (Bufarda, por exemplo). Terá percorrido, na sua vida, muitas dezenas de milhares de quilómetros, de bicicleta, levando e trazendo calçado dos seus
“fregueses”, que muito o estimavam. Aos 90 anos ainda tinha um coração de atleta...
O seu negócio teve altos e baixos, e
conheceu vários sócios e vários locais. A sua última oficina , onde esteve mais de 30 anos, foi na Praça Cor António Maria Batista, nº 9, na Lourinhã (junto ao beco que liga à Rua João Silva Marques).
Daí também o seu desabafo,
sob a forma de parlenda popular:
À segunda, o
trabalho abunda;
à terça, dor de cabeça;
à quarta, trabalho à farta;
à quinta,
dança a pelintra;
à sexta, o patrão é uma besta;
ao
sábado, o patrão arreliado… passa-se para o outro lado!
(xi) Foi, além disso, um bom pai e um avô carinhoso. Tinha orgulho nos seus filhos [, na foto, à esquerda, os dois mais velhos, Luís e Graciete, c. 1950], netos e bisnetos, os quais, por sua vez, tiveram a rara felicidade de estarem junto dele na hora, difícil, da sua partida deste mundo.
Viveu pobre e morreu pobre. Morreu com dignidade, vítima de doença prolongada. Tinha 12 netos e 5 bisnetos. Escreveu,por sugestão minha, um diário (cerca de 500 páginas manuscritas) entre 2008 e 2011.
Viveu os seus últimos quatro anos no Lar e Centro de Dia de N. Sra da Guia, onde
encontrou uma segunda família. Em 30/10/2008
escrevia no seu diário:
“(…) nesta nova família que nos arranjaram, fico triste
pelos que se encontram piores do que eu. Não tenho culpa de ter nascido assim.
Por tudo isto, sou feliz, embora pobre,
mas alegre, e gosto de conviver com todos. É esta a minha política: esquecer as
minhas dores lembrando dos que se encontram
bem piores do que eu (…)”.
(xii) Os seus familiares e amigos mais próximos lembrá-lo-ão sempre como um homem simples mas único, que irradiava alegria de viver e boa disposição. Não deixa “obra feita”, como sói dizer-se. Mas o seu exemplo de generosidade, bondade e otimismo perdura para além da morte. É o património (imaterial) que nos deixa. Para os seus filhos, netos e bisnetos, foi um privilégio tê-lo como pai e avô. Para eles, foi e será sempre o melhor pai e avô do mundo.
(xiii) Uma palavra muito especial de agradecimento é
devida à direção do SCL e ao Lar e
Centro de Dia da Atalaia (na pessoa da sua diretora técnica dra. Ana Caetano,
do médico dr. Rui Martins e dos demais profissionais - grandes profissionais, grandes mulheres! - que cuidaram do meu pai,
até à sua morte, com uma inexcedível competência,
dedicação e humanidade). Mas também aos seus parentes, amigos, conterrâneos e
vizinhos que se interessaram pelo seu estado de saúde e que o acompanharam até
à sua última morada na terra.
Por fim, um xicoração muito especial aos elementos do Coro Municipal da Lourinhã, Rui Mateus, Moura (grande companheiro do meu pai nas jogatanas de damas), Quim Zé e Ana Mateus que no cemitério cantaram para ele e para todos nós a famosa e sublime canção alpina “Signore delle cime”, composta em 1958 pelo italiano Giuseppe de Marzi:
Por fim, um xicoração muito especial aos elementos do Coro Municipal da Lourinhã, Rui Mateus, Moura (grande companheiro do meu pai nas jogatanas de damas), Quim Zé e Ana Mateus que no cemitério cantaram para ele e para todos nós a famosa e sublime canção alpina “Signore delle cime”, composta em 1958 pelo italiano Giuseppe de Marzi:
Un nostro amico hai chiesto alla montagna.
Ma ti preghiamo, ma ti preghiamo:
Su nel Paradiso, sul nel Paradiso
lascialo andare per le tue montagne.
Santa Maria, Signora della neve,
Copri col bianco soffice mantello,
Il nostro amico, nostro fratello,
Su nel paradiso, su nel paradiso
Lascia lo andare per le tue montagne.
Dio del cielo, l’alpino chè caduto,
Ora riposa nel cuor della montagna.
Ma ti preghiamo, ma ti preghiamo.
Una stell’alpina, una stell’alpina
Lascia cadere dalle tue montagne.
Lourinhã > Abril de 1991 > Maria da Graça (n. 1922) e Luís Henriques (1920-2012)
Portugal > Cadaval > Adão Lobo > 18 de junho de 1950 > Equipa de futebol do Sporting Clube Lourinhanense (SCL) no campo de jogos do Adão Lobo. O segundo da primeira fila, da esquerda para a direita, assinalado com um círculo a vermelho, é o meu pai, Luís Henriques, então com 29 anos... Esteve toda a vida ligada ao futebol, quer como jogador quer como dirigente e treinador de futebol das camadas mais jovens...
Esta foto foi tirada no dia em que o Benfica (seu clube do coração) ganhou a Taça Latina, disputada no Estádio Nacional do Jamor, um dos ícones do Estado Novo. Como dizem as crónicas da época, foi o primeiro feito internacional do S.L. Benfica, e pôs o país a vibrar de emoção: primeiro, o Benfica eliminou a Lázio nas meias-finais, por 3-0; depois empatou com o Bordéus, por 3-3,na final, em 11 de junho; e na finalíssima, uma semana depois, venceu os franceses por 2-1.
Esta foto é também uma homenagem à geração do meu pai para quem o futebol foi uma paixão... Aqui ficam os nomes dos jogadores do SCL, identificados um a um no dia em que o meu pai festejou os seus 90 anos (tinha uma memória de elefante!):
"De pé, da esquerda para a direita, o filho do Vitor Pedro, o Miranda (Alfaiate), o Jorge Tarofa (ou Jorge Serralheiro), o José Costa (que haveria de morrer em Angola), o José Miguel, o Américo Russo, o Manuel Swing, o António Serralheiro; na primeira fila, da esquerda para a direita, o Vitor Pedro, o Luís Henriques, o António Zé da Graça [, guarda-redes], o Manuel Dias (Néu), o Artur Borges, e o João Borges". E acrescenta o meu pai: "Perdemos 3 a 2. Nesse dia faltaram três ou quatro dos nossos melhores jogadores: o Gino (ou Higino), o Mário Pepe, o Manuel Ferrador, o António Costa"...
Esta foto foi tirada no dia em que o Benfica (seu clube do coração) ganhou a Taça Latina, disputada no Estádio Nacional do Jamor, um dos ícones do Estado Novo. Como dizem as crónicas da época, foi o primeiro feito internacional do S.L. Benfica, e pôs o país a vibrar de emoção: primeiro, o Benfica eliminou a Lázio nas meias-finais, por 3-0; depois empatou com o Bordéus, por 3-3,na final, em 11 de junho; e na finalíssima, uma semana depois, venceu os franceses por 2-1.
Esta foto é também uma homenagem à geração do meu pai para quem o futebol foi uma paixão... Aqui ficam os nomes dos jogadores do SCL, identificados um a um no dia em que o meu pai festejou os seus 90 anos (tinha uma memória de elefante!):
"De pé, da esquerda para a direita, o filho do Vitor Pedro, o Miranda (Alfaiate), o Jorge Tarofa (ou Jorge Serralheiro), o José Costa (que haveria de morrer em Angola), o José Miguel, o Américo Russo, o Manuel Swing, o António Serralheiro; na primeira fila, da esquerda para a direita, o Vitor Pedro, o Luís Henriques, o António Zé da Graça [, guarda-redes], o Manuel Dias (Néu), o Artur Borges, e o João Borges". E acrescenta o meu pai: "Perdemos 3 a 2. Nesse dia faltaram três ou quatro dos nossos melhores jogadores: o Gino (ou Higino), o Mário Pepe, o Manuel Ferrador, o António Costa"...
Quase todos estes lourinhanenses já morreram, com uma exceção ou outra: o Jorge Tarofa, por exemplo, ainda está entre nós; o Jorge Borges, não tenho a certeza.
Cabo Verde > S. Vicente > Mindelo > "Junho de 1943. Alguns internados do depósito dos convalescentes. Entre eles, estou também eu, sentado, lendo [o livro ] Os Bastidores da Grande Guerra. Luís Henriques , 1º Cabo nº 188/41, 1º Batalhão Expedicionário, R.I. nº 5. S. Vicente. C. Verde" [ O meu pai é o primeiro da 1ª primeira fila, do lado direito, assinalado com um círculo a vermelho; esteve internado cerca de 4 meses, já no final da comissão, por doença de pulmões; a morbimortalidade entre os expedicionárias era elevada; o livro em, questão podia o ser de Adolfo Coelho, Nos bastidores da grande guerra, documentário, editado em 1934, em Lisboa, pela Livaria Clássica Editora].
Texto, fotos e legendas: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados
Uma versão mais curta deste texto foi publicado no jornal Alvorada, [Lourinhã,] nº 1103, 20 de abril de 2012, p. 26. E pode ser lida aqui também, no blogue A Nossa Quinta de Candoz.
_____________
Nota do editor:
Último poste da série > 14 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9744: Meu pai, meu velho, meu camarada (28): O RI 23, (re)constituído na Ilha de S. Vicente (agosto de 1941/dezembro de 1944): a unidade a que pertenceram Luís Henriques, Ângelo Ferreira Sousa, Porfírio Dias e Armando Lopes (José Martins)
Cabo Verde > S. Vicente > Mindelo > "Junho de 1943. Alguns internados do depósito dos convalescentes. Entre eles, estou também eu, sentado, lendo [o livro ] Os Bastidores da Grande Guerra. Luís Henriques , 1º Cabo nº 188/41, 1º Batalhão Expedicionário, R.I. nº 5. S. Vicente. C. Verde" [ O meu pai é o primeiro da 1ª primeira fila, do lado direito, assinalado com um círculo a vermelho; esteve internado cerca de 4 meses, já no final da comissão, por doença de pulmões; a morbimortalidade entre os expedicionárias era elevada; o livro em, questão podia o ser de Adolfo Coelho, Nos bastidores da grande guerra, documentário, editado em 1934, em Lisboa, pela Livaria Clássica Editora].
Texto, fotos e legendas: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados
Uma versão mais curta deste texto foi publicado no jornal Alvorada, [Lourinhã,] nº 1103, 20 de abril de 2012, p. 26. E pode ser lida aqui também, no blogue A Nossa Quinta de Candoz.
_____________
Nota do editor:
Último poste da série > 14 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9744: Meu pai, meu velho, meu camarada (28): O RI 23, (re)constituído na Ilha de S. Vicente (agosto de 1941/dezembro de 1944): a unidade a que pertenceram Luís Henriques, Ângelo Ferreira Sousa, Porfírio Dias e Armando Lopes (José Martins)