Na "nossa guerra" (e o adjetivo possesssivo "nossa" já dá logo para se começar a espadeirar entre as nossas tropas, uns contra os outros...) também se podia dizer, sem ofensa, "presunção e água cada um toma(va) a que quer(ia)"!...
O problema é que o pobre do amanuense, lá na Chefia de Serviço de Justiça e Disciplina do Quartel General do Comando Territorial Independente da Guiné, não podia dar-se ao luxo de (de)lirar (entenda-se: dedilhar a lira)...
Contavam-lhe um "conto", mas ele não podia acrescentar nem mais uma vírgula nem mais um ponto... E, no fim, as contas tinham que bater certo...Nas hostes, de cada lado, havia muitos "trovadores": não faltava gente para (de)lirar, dedilhar ou tocar a lira...
Parece ser esse o sentido desta "peça" (antológica) que vamos (re)publicar na série "Humor de Caserna"... Pelo menos, é o que o nosso editor de serviço, acabadod e chegar das vindimas nortenhas, deduz do título original (e do seu conteúdo): "Um Herói à Minha Porta: Bazófia Militar", publicado há muitos anos na série "Um amanuense em terras de Kako Baldé"...
Fanfarras e fanfarrões sempre os há e haverá em todos as guerras e revoluções. O eng Amílcar Cabral teve os seus, fanfarrões e fanfarras. . O gen António Silva teve os dele... Enfim, nós tivemos os nossos, o PAIGC teve os dele... Parafrasendo o Abílio Magro, o nosso cronista pícaro (do tempo dos últimos soldados do Império), pode-se também dizer (sem ofensa para ninguém)...
Cada "cruzada" com o seu "Mata-mouros"...
por Abílio Magro
Eu prestava serviço na CSJD/QG/CTIG - Chefia de Serviço de Justiça e Disciplina do Quartel General do Comando Territorial Independente da Guiné, onde, como Furriel Miliciano Amanuense, coadjuvava um Alferes Miliciano na Secção de “Doenças”.
Esta Secção tratava dos processos de doenças, acidentes, ferimentos e mortes (em campanha, em serviço ou em combate) e a minha principal tarefa, para além dos registos, controle e arquivo, era a de verificar se os mesmos estavam devidamente instruídos, isto é, se continham todos os documentos obrigatórios (ficha do militar, testemunhos, relatórios médicos, etc.) e devolvê-los às unidades instrutoras, se fosse caso disso.
Como devem calcular, durante a minha comissão militar na Guiné, passaram-me pelas mãos inúmeros processos daqueles, proporcionando-me um bom conhecimento do que, oficialmente, sucedeu em muitas das acções em que as NT sofreram baixas (ferimentos ou mortes) por acção direta ou indireta do IN.
Sendo o território da Guiné-Bissau muito pequeno (com uma área equivalente ao nosso Alentejo), qualquer “embrulhanço” (ataque IN) sofrido pelas NT, era rapidamente conhecido em Bissau e os respectivos pormenores eram transmitidos facilmente de boca em boca.
Contudo, à boa maneira portuguesa (onde “quem conta um conto, acrescenta um ponto”), as notícias chegavam quase sempre exageradas, com algumas bravatas e inúmeras baixas à mistura, factos que não eram minimamente confirmados nos processos que, em havendo feridos ou mortos, mais tarde me vinham “parar às mãos”.
Num determinado dia em Bissau, constou ter havido um “embrulhanço” às portas da cidade, sofrido por uma qualquer coluna de reabastecimento que dali saíra.
Falava-se então, à boca cheia, entre militares, ter sido esse “embrulhanço” fruto de uma acção muito violenta do IN e onde teriam morrido alguns militares e muitos outros ficado feridos.
Nestes casos mais “mediáticos”, eu tinha por hábito registar a notícia no meu “disco duro” e ficar a aguardar os eventuais processos referentes aos feridos e mortos, se os houvesse.
E houve! Não mortos, mas apenas dois ou três feridos ligeiros e os respetivos processos lá me vieram parar às mãos mais tarde e, se bem me lembro, o que afinal acontecera terá sido o seguinte:
Era uma pequena coluna de reabastecimento cujo destino já não me recordo. Lembro-me que na frente seguia um Unimog com milícias, no meio da coluna duas ou três viaturas com a carga, e, a fechar, outro Unimog, mas com militares.
A data altura rebenta um pneu da viatura da frente, o pessoal atira-se de imediato para o chão e desata a disparar a torto e a direito.
Resumindo: na queda, um milícia partiu um pé, outro deslocou um braço e acho que foi só isso que aconteceu…
Passaram-me pelas mãos muitos processos do género, mas também muitos em que os nossos militares foram gravemente feridos ou mortos em circunstâncias horríveis. Muitos deles por falta de assistência, principalmente após a introdução na guerra, por parte do PAIGC, dos misseis Strela, que impediam a Força Aérea de prestar o apoio célere que até aí prestava às forças terrestres.
Mas havia também muita bazófia e esta julgo que se estendia aos três TO (Teatros de Operações), Angola, Moçambique e Guiné. E era usada mais frequentemente e provavelmente por quem, naquelas guerras, levou uma vida sossegada.
Um dos militares mais condecorados do Exército Português, o famoso Alferes Graduado Comando e guineense Marcelino da Mata (mais tarde, Tenente-Coronel), embora reconhecidamente um grande guerreiro, exagerava imenso nos relatos das suas façanhas, referindo algumas vezes ter enfrentado e derrotado, com reduzido número de efectivos, um número elevado de elementos IN, verificando-se posteriormente em relatórios oficiais que nem o seu grupo era tão reduzido, nem o grupo IN tão elevado. Por vezes referia também árvores com mais de cem metros de altura [??].
Se mesmo aqueles cujos actos heróicos eram reconhecidos gostavam de acrescentar uns “pontos”, imaginem os outros que nunca se viram na necessidade de dar um tiro.
Recordo-me que, já depois do 25 de Abril e numa das minhas vindas de férias à Metrópole, ter-se passado comigo um pequeno episódio ao qual me lembrei de dar o título de : “Um herói à minha porta”.
Morava eu então na cidade do Porto, na Rua Aníbal Cunha onde, perto da minha residência, estava instalada a DORN (Direção da Organização Regional do Norte) do PCP.
Estávamos no mês de agosto ou princípios de setembro de 1974 (estva de férias) e houve uma tentativa de assalto àquela sede do PCP, com tiros à mistura, pelo que havia dois cordões militares; um junto à Rua da Torrinha e outro junto à Faculdade de Farmácia (portanto, um no início e outro quase no final da rua) para impedir a passagem de pessoas.
A mim deixaram-me passar por ser morador, mas fiquei por ali, junto à porta de entrada da minha residência, a ver o evoluir dos acontecimentos.
Acalmados os ânimos e abrandada a segurança, chega-se junto a mim um camarada da Guiné, dali daquelas Unidades Militares perto do QG/CTIG e que por cá se encontrava de férias, como eu, ou tinha terminado a comissão (não me recordo) e, acompanhado da respectiva namorada ou mulher, começa com esta conversa:
- Ó Magro, estes gajos aqui a brincar às guerrinhas! Queria vê-los lá na Guiné, como nós, a aguentar aqueles ‘embrulhanços’!
Claro que não tive coragem para desmascarar o “herói do ar condicionado” junto da namorada, ou mulher, mas aquela narrativa era bem demonstrativa da bazófia que alguns dos nossos camaradas usavam junto de familiares e amigos para se arvorarem em bravos combatentes, ainda que muitos deles não tivessem dado qualquer tirito.
Provavelmente “arrumavam com eles à chapada”! Nunca se sabe…, ele há “heróis” para tudo…!
Acalmados os ânimos e abrandada a segurança, chega-se junto a mim um camarada da Guiné, dali daquelas Unidades Militares perto do QG/CTIG e que por cá se encontrava de férias, como eu, ou tinha terminado a comissão (não me recordo) e, acompanhado da respectiva namorada ou mulher, começa com esta conversa:
- Ó Magro, estes gajos aqui a brincar às guerrinhas! Queria vê-los lá na Guiné, como nós, a aguentar aqueles ‘embrulhanços’!
Claro que não tive coragem para desmascarar o “herói do ar condicionado” junto da namorada, ou mulher, mas aquela narrativa era bem demonstrativa da bazófia que alguns dos nossos camaradas usavam junto de familiares e amigos para se arvorarem em bravos combatentes, ainda que muitos deles não tivessem dado qualquer tirito.
Provavelmente “arrumavam com eles à chapada”! Nunca se sabe…, ele há “heróis” para tudo…!
(Revisão / fixação de texto, título: LG)
____________
Nota do editor:
Último poste da série > 15 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27222: Humor de caserna (212): Dura lex sed lex!...Guarda de Honra ao tribunal millitar (Abílio Magro, ex.fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG, Bissau, 1973/74)
1 comentário:
cruzada
(cru·za·da)
nome feminino
1. Expedição guerreira para libertar Jerusalém do poder dos muçulmanos.
2. [Por extensão] Expedição de católicos contra não católicos.
3. [Figurado] Esforços em favor de uma ideia generosa.
4. Parte do primeiro estômago dos ruminantes.
5. Operação de cruzar os fios no fabrico dos tecidos de seda.
etimologia Origem: cruz + -ada
"cruzada", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2025, https://dicionario.priberam.org/cruzada.
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