1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Maio de 2019:
Queridos amigos,
António Coelho Ferreira foi alferes miliciano na Guiné entre 1963 e 1965. Terá vivido, pelo menos, em Ingoré, S. Domingos, Bissorã, Mansoa, Olossato, Mansabá, foi ao Morés, depois esteve em Bolama, Canchungo e Madina do Boé. Um farto currículo portanto, era esperável um rico caderno de memórias. Esquissou uma viagem de barco, metaforicamente uma viagem de retorno às memórias. Magicou serões a bordo do "Ana Mafalda", um comandante, dois alferes e duas senhoras, um formato Xerazade a contar façanhas, encontros e desencontros, sempre histórias para o dia seguinte. Cedo vem o desnorte da trama, acotovelam-se situações, misturam-se tempos, é uma desordem completa a que não falta o kitsch do nosso alferes entender estar numa atmosfera propícia para falar dos 500 anos da presença portuguesa na Guiné, a tudo falta nervo substituído por estirador e compasso, um desastre, mais do que incompreensível.
Bom seria que António Coelho Ferreira se ressarcisse e voltasse à Guiné para nos contar a verdade dos factos, mesmo sob o manto diáfano da fantasia.
Um abraço do
Mário
As Papaias da Guiné, por António Coelho Ferreira
Beja Santos
Ficamos com alguns dados do autor de
“As Papaias da Guiné”, António Coelho Ferreira, Chiado Books, agosto de 2018: nascido em 1941, foi oficial miliciano, esteve na Guiné de 1963 a 1965, licenciou-se em História, foi funcionário bancário, tem experiência autárquica e associativa. Pelo que escreve no seu romance, sabemos que esteve no Ingoré, percorreu Olossato, Farim, Mansabá, terá estado em Madina do Boé. Organizou a trama do seu romance numa viagem de regressos, finda a sua comissão, na falta de transporte aéreo, o alferes Ricardo (alter-ego do autor) viu-se na contingência de viajar no Ana Mafalda. É nesta embarcação, e numa viagem de Bissau que passa por Cabo Verde, que uma tempestade leva até Lanzarote e depois Lisboa, que haverá, como nos contos de Xerazade, diante de uma assistência restrita, onde pontificava o comandante do navio, a narrativa guineense, nesse círculo despontarão amores de circunstância. Se a ideia inicial era uma viagem de regressos, em termos literários o leitor será confrontado com uma trama mal cozida, um desnorte de peripécias, uma pastelada de exposições de um pseudónimo caricatural de erudição, em suma, um extraordinário desastre, incompreensível.
O alferes Ricardo embarca cheio de memórias de Ingoré, S. Domingos, Bissorã, Mansoa, Olossato, Mansabá, do Morés, Bolama, Canchungo, das colinas de Madina do Boé. Perfizera 26 meses de atividade operacional. E quando se espera um desfilar de operações, de afetos construídos, sai-nos pelo caminho uma escrita atropelada, aparece o alferes Pimenta que se dizia surdo mas era tudo mentira, o capitão-comandante do navio apresenta duas companheiras de viagem, Benilde e Beatriz, o comandante anuncia paragens na Praia, ilhas de Santiago e Sal e S. Vicente, 18 dias, será este o tempo do romance. O enredar da escrita também não ajuda, já estamos no cotejo de memórias, vamos ouvir o alferes Ricardo:
“Para ali transportado de emergência para assumir o comando, apelou à autoexperiência de 18 meses de guerrilha para que o guiasse, sem cometer erros irreparáveis.
Era uma evidência que o inimigo retornaria mais refinado e com redobrada força.
Preventivamente, era necessário proceder à abertura de trincheiras, organizar a defesa, reestruturar abrigos para onde se passaram as enxergas, as metralhadoras e respetivas munições.
Situado numa encosta ao lado da fonte de Madina de belíssima água potável, o aquartelamento era o que restava da escola local. A guarnição, cerca de 50 homens entre europeus e africanos.
Acontecera que, dias antes, um pretenso habitante aparecera perante a tropa a anunciar que os do PAIGC estavam na estrada de Dandum, onde aguardavam pelos do exército.
‘Ele, arauto, fora obrigado, sob ameaça de morte, a cumprir aquela ordem expressa’.
Os nossos, numa decisão de imprudência, em pequeno número, meteram-se numa berliet e foram-se a eles, como quem se mete nas goelas do leão. – Apenas um furriel e um cabo tiveram a sorte de, tarde e más horas, regressarem ao quartel, em tempos desencontrados”.
Só mais adiante voltamos ao cerne da questão, a remodelação do quartel, e estamos nisto e chega-se à Praia, logo se passa a falar do Tarrafal, do tráfico de escravos, seguem-se divagações, agora a memória salta da estrada de Bissorã para Encheia. No serão, no tal corolário das mil e uma noites, Ricardo irá perorar sobre os primeiros séculos da administração portuguesa na Guiné, a companhia feminina parece encantada com os elevados conhecimentos do denudado alferes. E, súbito, começa-se a falar de mangos e de papaias, chegou o momento de tentar entender o título da obra, o autor dá uma ajuda:
“As papaieiras, com o corpo em forma de coluna grega, os capitéis adornados de papaias douradas com tons esparsos esverdeados, como se fossem peitos de bajuda, e a folhagem, a cabeça, ocupam posições estratégicas. – Na dianteira, onde começa o caminho, ladeado de arbustos até à entrada, como a receber quem chega; em frente, a alegrar as conversas na frescura da varanda; ou para trás, cautelosas, vigilantes por quem, no silêncio e na escuridão, pode acarretar perigo aos residentes, em horas de inseguro repouso.
Papaieiras feiticeiras! São as mulheres da Guiné!”
Em Bolama, Ricardo tentou o seu pé de alferes, mais conversa erudita sobre os quinhentos anos da presença portuguesa na Guiné, conversa puxa conversa, ergue-se a primeira fortaleza em Cacheu, em 1753 foi estabelecida a capitania de Bissau, temos depois as campanhas da pacificação, estamos outra vez a bordo, fala-se de guerra mas os dois alferes já sentem uma certa atração por aquelas duas senhoras, a seguir fala-se em emboscada de abelhas, em minas, não estamos em Bissorã nem no Olossato, estamos em Nova Lamego, depois fala-se de Hélio Felgas, de um nobre, valoroso, intrépido e destemido capitão, Luís de Atayde, ficamos a saber que Ricardo tem noites de insónia, de vez em quando temos direito a um poema do autor, há derriços no serão entre Ricardo e Benilde e Pimenta e Beatriz.
Como o desnorte é enorme, avassalador, castigue-se o leitor com estas “Papaias da Guiné”, estas conversas desconchavadas, a viagem prossegue, uma das senhoras foi denunciada à PIDE, os alferes são cavalheiros, Pimenta foge com Beatriz, Ricardo tem paixão assolapada, mas tudo vai correr mal, cada uma das meninas parece ter uma maldição, andam perseguidas pela guerrilha, aqui e acolá, umas vezes em sonho, outras vezes em conversa, fala-se de operações, do muito sofrimento, das penas de África e da sua História, voltamos ao Homem do Neandertal, aos povos do Nilo, ao Saara, ao Império do Gana, ao Império do Mali, já não sabemos se é na conversa de serão se resulta de um apontamento improvisado, apanhamos de chofre com a História de Portugal em África, os motivos da exploração da costa africana, voltamos à questão da PIDE, é invocado o capitão Saraiva que encarnava a bravura de Mouzinho de Albuquerque e a experiência de um contestável… Há fugas entre vários países e regressos a Santa Apolónia, para coroar todo este devaneio até surge o Doutor Ricardino, é melhor não falar dele nem no mangueiro cretcheu… Não há ponta por onde se pegue, e a desilusão é muitíssimo maior quando era previsível a autenticidade, o vigor e o distanciamento de um depoimento de alguém que combateu na Guiné entre 1963 e 1965. Que António Coelho Ferreira se redime e escreva novo romance para nos falar da verdadeira história da sua comissão, de quem não se duvida da importância e do fôlego do testemunho.
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Nota do editor
Último poste da série de 7 de junho de 2019 >
Guiné 61/74 - P19869: Notas de leitura (1184): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (9) (Mário Beja Santos)