sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4820: Notas de leitura (15): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte II) (Luís Graça)



Guiné > Região do Oio > Bissá e Porto Gole > CART 1661 1967/68) > Imagens do destacamento de Bissá, no tempo em que lá esteve o Abel Rei, com o o 3º Gr Comb... Na foto de baixoi, tirada em Porto Gole, o Abel Rei está escrever algumas linhas do seu diário, mais transformado em livro.

Foto: © Abel Rei (2002). Direitos reservados


Abel de Jesus Carreira Rei – Entre o Paraíso e o Inferno: De Fá a Bissá: Memórias da Guiné, 1967/1968. Prefácio do Ten Gen Júlio Faria de Oliveira. Edição de autor. 2002. 171 pp. (Execução gráfica: Tipografia Lousanense, Lousã. 2002).

Notas de leitura > II Parte (*)

por Luís Graça

A morte do Capitão de 2.ª Linha, o balanta Abna Na Onça, em Bissá

Entretanto, alguns dias depois da ocupação de Bissá, em 7/4/67, que passou a ser um destacamento, guarnecido por um pelotão (-) da CART 1661 e uma companhia (-) da Polícia Administrativa de Porto Gole, o dia 15 de Abril de 1967 seria um “dia trágico”: um ataque do PAIGC a Bissá, de duas horas, na noite de 14 para 15 de Abril de 1967, fizera sete mortos e cinco feridos . Na sequência deste desastre, o destacamento foi abandonado…

Pela primeira vez o autor não esconde que lhe vieram “as lágrimas aos olhos” (p. 69). A tragédia abatera-se sobre Bissá e Porto Gole:

“Houve choro de todos, com gritos e desmaios das mulheres, como que adivinhando o que aconteceu, entraram de rompante, dentro do destacamento, numa altura em que procedíamos à pesagem de peixe frecso, chegado do rio… Tinha morrido um capitão de 2ª linha, mais seis nativos, todos da Polícia Administrativa, e todos eles com as famílias cá na Tabanca de Porto Gole. Morria o homem em quem se tinham fortes esperanças para acabar com a guerrilha inimiga na zona – o capitão Abna Na Onça por ser corajoso e respeitado por negros e brancos”.

E sobre a importância deste aliado, balanta, das autoridades portuguesas, acrescenta o Abel Rei: “Um homem que, desde o início da guerra, vinha enfrentando, com máxima inteligência, aqueles que o fizeram sofrer, matando-lhe toda a família; perseguindo [o Inimigo], matando, capturando armas. Este foi o seu fim, só porque estava do nosso lado". (15/4/67, Porto Gole, pp. 69/70).

Em 20 de Abril de 1967, uma força, comandada pelo próprio Cap da CART 1661, e composta pelo 1º Gr Comb e pelo Pel Caç Nat 53, partiram para Bissá, com a intenção de reocupar o destacamento, que na altura pertencia ao sector do BCAÇ 1888 (Bambadinca).


No Inferno de Bissá

Em 13 de Maio de 1967, o Abel (integrado no seu Gr Comb, o 3º) é destacado para Bissá (onde permanece 15 dias).

É “um destacamento composto por oito casernas-abrigos, vedado com arame farpado e iluminado com (…) petromaxes” (14/5/67, Bissá, p. 84)…

E acrescenta o autor:

“Está cercado por tabancas cujos habitantes são de raça balanta, das quais foram queimadas as mais próxmas para melhor defesa do mesmo. Fica rodeado de bolanhas (terrenos planos cobertos de capim) a nascente, sul e poente, e matas pelo norte – o ponto mais perigoso, e pelo qual os turras têm possibilidades de nos atacar. Há imensas árvores, e de grande porte, que foram deixadas mesmo dentro do aquartelamento”…

A força ali destacada era composta por um grupo de combate da CART 1661 e duas secções de polícia administrativa. “Está cá uma secção de sapadores que, além de vedarem o destacamento e armadilharem o s pontos mais estratégicos, fizeram um forno para cozer o pão, e estão a fazer um refeitório e cozinha” (pp. 84/85).

A fonte de abastecimento de água é um charco: “Pelas cinco horas, vou habitualmente tomar banho, a uma poça com água da cor de barro, acinzentada, mas que constitui a nossa única base para limpeza, e também onde vamos buscar água para beber” (17/5/67, Bissá, p. 87).

Há uma hostilidade passiva por parte da população local, agravada pela atitude de suspeição dos militares portugueses em relação aos balantas: (…) “Fui apanhar alguns mangos, e dar os bons dias a quatro bajudas (…) que andavam a carregar com feixes de palha à cabeça, mas que se limitaram a olhar-me com curiosidade, não respondendo nada!”… Comentário (ingénuo) do autor: “Não entendo como é que a nossa cultura, que há meio milhar de anos se espalhou por estas terras, nunca os ensinou a falar a nossa língua?!” (18/5/67, Bissá, p. 88).

No dia seguinte, numa coluna de duas viaturas a Porto Gole, para ir buscar o correio e levar um “soldado castigado” para a sede do comando da companhia, o Abel e os seus camaradas encontram treze bajudas e dois homens: “Estavam munidos de catanas e machados” (…) e “quando nos viram, largaram logo a fugir (sendo o mais natural que tivessem ido fazer algum ‘serviço’ aos turras). Fizemos um cerco, e apanhámos o ‘bom pessoal’ (termo usado em relação aos civis nativos, que jogam com os dois lados) – que disse andar à lenha! (…).

Em Setembro de 1967, o Abel voltou para Bissá com o seu Gr Comb. No dia 3 há um primeiro contacto com o IN que faz uma flagelação a um tabanca das proximidades, Funcor, em pleno dia, às 14h… Os de Bissá respondem com morteiro 81/ mm; o PAIGC riposta com morteiro 60/mm (p. 105). A 6 de Setembro, uma força da guerrilha (estimada, com evidente exagero, em 180 elementos, segundo a história da unidade, citada pelo Abel), entra na tabanca de Bissá e flagela o destacamento. Há uma baixa mortal, confirmada, entre os atacantes, sendo enterrado dentro do arame farpado:

“Foi a primeira vez que vi de perto, um turra fardado (embora morto!). Tratava-se de um homem forte e tipo da raça balanta” (6/9/67, Bissá, pp. 105/106). Estava equipado com uma espingarda semi-automática Simonov M21, devendo por isso ser um milícia popular do PAIGC e não propriamente um guerrilheiro das FARP (reorganizadas no final de 1967)… A 8 de Setembro há uma nova flagelação a Bissá, com morteiro 82 e armas automáticas… Aumentam as dificuldades de abastecimento do destacamento, devido à chuva, às minas e às emboscadas…

Setembro e Outubro de 1967 vão ser dois meses negros para a CART 1661. O primeiros morto da companhia devido a explosão de anti-carro, ocorre a 16 de Setembro de 1967, com oito meses de comissão, quando uma coluna auto seguia de Porto Gole para o cruzamento da estrada para Mansoa onde se iria encontrar com forças de Bissá, para entrega de géneros alimentícios.

“Balanço: quatro mortos, sendo dois brancos e dois pretos, e mais treze feridos graves; uma viatura em pedaços; e diversos materiais estragados!” (…) (16/5/67, Bissá, p. 110).

Os mortos, todos do Pel Caç Nat 54 (com excepção do condutor), foram o Fur Mil Álvaro Maria Valentim Antunes, casado, natural de Portalegre, comandante da coluna, e os soldados guineenses Mamadu Jamnca e Adulai Sissé. O condutor era o Sold da CART 1661, Manuel Pinto de Castro.

Esta ocorrência é referida pelo José Brandão, no seu livro Cronolohia da Guerra Colonial: Angola, Guiné, Miçambique, 1961-1974 (Lisboa: Prefácio, 2008, p. 165): 16/9/1967: “Morrem em combate na Guiné 4 militares do Pelotão de Caçadores 54”.

No dia seguinte ao tentar recuperar a viatura sinistrada, as forças de Porto Gole sofrem um emboscada…

A 2 de Outubro Bissá volta a ser atacada, durante três horas… Eram 9h3o quando rebentou a primeira roquetada… O Abel escrevia dentro da enfermaria, “onde durmo, e estava a ouvir rádio”…A história da unidade fala em 150 elementos IN, os quais raptaram seis elementos da população e destruíram várias moranças…

A 5 de Outubro, uma viatura saída de Porto Gole em direcção a Bissá faz accionar outra mina A/C. Balanço: 1 morto e 26 feridos. A 6, uma nova mina (desta vez incendiária!) com emboscada (por um grupo calculado em 80 elementos), junto ao local do rebentamento da mina anterior, faz 10 mortos e mais de duas dezenas de feridos, “com queimaduras, todos evacuados para a Metrópole”…

Diz-nos o Abel, em nota de rodapé, que “para estas evacuações, foi preciso um avião especial de emergência que, ao chegar a Lisboa, fez correr a notícia de que Bissau tinha sido bombardeada, simultaneamente ‘boatado’ pelo inimigo)” (p. 114).

Nesse dia, Abel estava em Bissá, fazendo contas à vida de ‘cabo vagomestre’, sem comer para dar ao pessoal… mas no dia 8/10/67 fez o balanço desta “série negra” que fez de Bissá “o pior aquartelamento” (p. 166) da Guiné, nessa época.

“Tanto na mina como na emboscada, foi precisa imediata colaboração da aviação, que desta vez chegou de pronto, vindo dois bombardeiros que ajudaram os helicópteros a localizar o acidente” (8/10/67, Bissá, p. 115).

O José Brandão, na sua Cronologia da Guerra Colonial, limita-se a referir que no dia 5/10/1967 “morrem em combate na Guiné 2 militares da CART 1661”, o 1 Cabo José Andrade Couto Pinto, natural de Santo André, Bustelo, e o Sold Manuel, natural de Lixa, Fornos. E que no dia seguinte morrem mais cinco: 1º Cabo Abel Carvalho Martins (Montalegre), 1º Cabo Antónoo Ribeiro Machado Sousa (Mato, Ataíde), Sold Artur Rodrigues Alves (Sabuzedo, Mourilhe), Sold João Pimentel Fernandes (Boi Morto, Oriz, São Miguel), Sold José Coelho do Nascimento (Cepelos)…

O Abel Rei fala em 7 mortos. A história da unidade fala em 10 mortos, algumas das mortes tendo provavelmente ocorrido já no hospital… Até na contabilidade das nossas baixas mortais na guerra colonail, há critérios divergentes…

O rol de desgraças não se fica por aqui: “(…) em Bissá, se não temos mortos, os vivos não têm que comer. Há mais de oito dias que não temos vinho, cerveja ou outros líquidos que se bebam”… Por seu turno, “o comer acabou: estando-se a comer, ora carne de vaca, ora bacalhau com pão e… água!” (p. 115/116). A 1 de Novembro de 1967, come-se peixe miúdo, “pescado nas poças da bolanha” (p. 117).

Em conlusão, Bissá “cá sabi”… A 11 de Novembro, o Abel regressa a Porto Gole, sendo rendido o seu Gr Comb. “Lá ficaram as piores recordaçõs e… um pedaço de cada um” (p. 118).


‘Apanhado pelo clima’

Com menos de 3 meses de Guiné, o autor interroga-se se não estará já “apanhado pelo clima” (25/4/67, p. 75). Os fantasmas do álcool voltam a aparecer no seu diário: “ de há uns dias para cá, tem sido bebedeira certa; não sendo ninguém prejudicado com isso, talvez só eu!”…

A 30 de Março de 1967, o Abel comemorado, como devia ser, o seu 22º aniversário de nascimento: “À noite, e depois de várias misturas, emborrachei-me” (…) (p. 59).

Porto Gole não tem ainda electricidade: em 4/4/67, o Abel passa a ficar encarregue da manutenção e reparação dos ‘petromaxes’ em serviço na tabanca. Como se não bastasse já a ‘chatice’ de ser cabo, passa também a desempenhar as funções de ‘vagomestre’ (competindo-lhe adquirir e distribuir os géneros no rancho) (12/4/67).

Não esconde a conflitualidade entre camaradas, em especial dentro da sua secção, com destaque para o relacionamento com o seu furriel: “Quem nos obriga a andar cá, não olha às ‘qualidades’ dos que comandam, e somos nós os que sofremos consequências. Esse meu registo, gostaria um dia passar uma ‘esponja’ sobre tudo isto!” (9/4/67, p. 65).

Em Bissá, as relações com o seu alferes, um antigo seminarista, também foram tensas: é obrigado a trabalhar de pá e pica, sob um sol escaldante (15/5/1967, Bissá, pp. 85/86).

(Continua)
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Nota de L.G.:

(*) 12 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4815: Notas de leitura (14): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte I) (Luís Graça)

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