terça-feira, 11 de agosto de 2009

Guiné 63/74 – P4808: Estórias do Zé Teixeira (37): “A vala, salva vidas” (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

1. Mais uma estória do nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, enviada em 8 de Agosto de 2009: 

A VALA, SALVA VIDAS

(do meu Diário)

Buba, 1968 - Julho, 22

…Chegado a Buba, toda a gente correu para os poucos chuveiros existentes, formando fila. Enquanto uns se molhavam, outros esfregavam o sabão, fazendo um rodopio. Os restantes, completamente nus, esperavam pacientemente uma vaga, quando o IN apareceu a baptizar a Companhia atacando de canhão sem recuo, morteiro e "costureirinha". De repente um estrondo lá longe. Logo se ouviu a frase mágica que eu nunca mais vou esquecer - “Aí estão eles” - vinda de vários lados.

Numa fracção de segundos, o tempo da vida ou da morte, toda aquela gente desapareceu da vista.

Depois, bem depois, foi ouvir uma música muito estranha, de granadas de canhão e de morteiro a rebentar por perto. Armas ligeiras a vomitar fogo, rebentamentos a distância originários das nossas armas pesadas. Enfim, uma festa. Terrível festa. Os guerrilheiros atacaram com canhões sem recuo de dois sítios diferentes, segundo dizem, causando ainda mais confusão. Felizmente caíram todas fora do arame farpado, não deixando mazelas. Tentaram durante alguns minutos arrasar Buba, o que não conseguiram por fraca pontaria.

Em simultâneo com o ataque desabafa uma tempestade de chuva.

Deitado na vala e a aguentar a chuva e a metralha, completamente nu, com o corpo cheio de sabão, assim esperei que acabasse a "festa", para me ir vestir pois o sabão do corpo saiu por si, graças à chuva.

Que espectáculo! Centenas de corpos (muitos nus) encharcados, mas alegres, saíam calmamente da vala. O chuveiro rapidamente se encheu de novo, como nada tivesse acontecido. A vida continuava porque mais uma vez escapámos.

Perante esta dantesca cena, rendi-me à necessidade de me recolher, encostado à parede da caserna e dar graças a Deus, pela vida que sentia palpitar no coração, a recuperar de um grande susto.

VALA BENDITA

Estranho ruído ao cair da noite escura.
Quebra o silêncio expectante,
Atira-me para a vala,
Abrigo sem cobertura.
Salva-me a vida, naquele instante.
Tenebroso e longo momento.
Angustiante.
O coração bate como nunca senti.
Eu também fugi,
Ao ouvir, “aí estão eles”.
Que algum camarada gritou,
Quando, ao longe o estrondo da “saída”
Para o perigo o alertou.
Porém,
A granada que ali tão perto rebentou,
Mais uma vida levou.
Ah Vala!
Trincheira do medo,
Trincheira da sorte.
Vala bendita,
Que nos escondes da morte.
Momentos.
Minutos que são horas.
Tanto tempo…
Em que a vida não acontece.
O silêncio dos rebentamentos,
Impera.
O corpo estremece,
O medo entorpece.
Alguns, talvez poucos,
Dirigem a Deus uma prece
No tempo da catequese aprendida
Desordenada,
Remendada.
Há muito tempo esquecida.
Mas bem sentida.
Na esperança que a bala a si destinada,
Seja pela mão de Deus
Desviada.
E não lhe roube a vida.

Um abraço,
Zé Teixeira
1º Cabo Enf

Fotos: © José Teixeira

5 comentários:

Hélder Valério disse...

Boa, Zé Teixeira!
Uma recordação daquilo que se pode chamar "um bom começo", com o seu quê de dramático e angustiante, no momento, e algo capaz de agora nos provocar um sorriso malicioso ao imaginar "as molhadas" nas valas...
Tambám quero felicitar-te pelas tuas magníficas reflexões, tão bem transmitidas no teu poema.
Um abraço
Hélder S.

mario gualter rodrigues pinto disse...

caro camarada e amigo J. Teixeira

Bela descrição a tua dum Pira em Buba.
Ao transportar as minhas recordações para o tempo de 69, em BUBA, lembro-me de ver as mesmas valas cheias de vidros de garraas de cerveja que o pessoal inavertidamente para lá mandava, o que causava mais ferimentos que o IN.
Por falares em banho no meu tempo Buba, tinha um depósito de água no meio do quartel junto às camaratas que jorrava do alto uma água ferriginosa e vermelha.

Um abraço

Mário Pinto

Zé Teixeira disse...

Caro Mário Pinto.
Imagina que o referido depósito ainda lá está no mesmo sítio. Testemunho meu de 2005, quando tive o enorme prazer de ver a minha caserna adaptada a uma escola em pleno funcionamento. Onde eu pude brincar com os putos reguilas de agora, ensinando-lhe uma canção em português.
Zé Teixeira

MANUEL MAIA disse...

CARO ZÉ TEIXEIRA,

COM ESTE TEU ESCRITO BEM CONDUZIDO QUE NOS COLOCA FÁCILMENTE NA ACÇÃO,FIZESTE COM QUE ME LEMBRASSE DE UM EPISÓDIO SEMELHANTE NO CANTANHEZ,DEPOIS DE UM ATAQUE AO ARAME POR VOLTA DAS CINCO DA MANHÃ.

FINDO O MESMO LÁ FOMOS PARA OS CHUVEIROS DE CAMPANHA,(EM LONA...)
QUE LEVAVAM 5LITROS DE ÁGUA,UM GARRAFÃO...
QUANDO SAÍAMOS DO BANHO UM DOS ELEMENTOS DO IN,NA DESPEDIDA,DISPAROU UM RPG QUE NOS OBRIGOU A DEITAR DE NOVO NO MEIO DA LAMA INTENSA...

IMAGINA O QUE ERA ENQUANTO NÃO TINHAMOS BIDONS PARA O CHUVEIRO,TOMAR BANHO(DOIS GRUPOS DE COMBATE) COM UM SIMPLES CHUVEIRO DE CAMPANHA...
PERDIA-SE A MOCIDADE À ESPERA DE VEZ.

UM ABRAÇO
MANUEL MAIA

Anónimo disse...

Zé Teixeira
Parabens e mais parabens.

Pela excelente descrição que,como diz o Manuel Maia "nos coloca fácilmente na acção" Pelos vistos chegada a Buba foi uma tragi-comédia,que felizmente acabou bem.

Estou a imaginar os nús ensaboados quiçá com os carregadores à cintura e uma faca no bolso ,a voarem para o mergulho na vala.

E aquela passaagem "...O chuveiro rápidamente se encheu de novo, como nada tivesse acontecido..."?

Era mesmo assim !

Por vezes espantava-me com a frieza(?)ou ligeireza com que se encaravam situações por vezes graves,e a facilidade ou simplicidade com que se assumia ou adoptava o " a vida continua"!!

Estou em crer que era uma auto-defesa psicológica,que nos ajudava a superar aqueles "estilos" de vida.

Um abraço
Luis Faria