terça-feira, 11 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4813: (Ex)citações (38): Resposta a J. Mexia Alves (António J. Pereira da Costa)

1. Resposta de A.J. Pereira da Costa (*), Coronel, comandante da CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74, ao poste P4680 de J. Mexia Alves (**), enviada ao Blogue no dia 10 de Agosto de 2009:

Caro Camarada
Aqui vai a resposta:

Primeiro quero dizer que para além da guarda das memórias temos o dever de interpretar o que sucedeu. Temos o dever de o analisar fria e logicamente, mesmo que as conclusões não sejam aquelas que mais nos agradariam. Julgo que é isto que o blog pretende ao dizer que temos que falar antes que outros o façam por nós. Enquanto intervenientes, mesmo “a quente”, teremos uma perspectiva mais correcta do que os vindouros, mesmo bem intencionados, que só poderão especular sobre o que possa ter acontecido. Já hoje aparecem por aí umas teses de mestrado e doutoramento, escritas por amadores que terminam por conclusões absolutamente inaceitáveis. Podemos estar certos de que o tratamento de que seremos alvo vai ser muito mais boçal, insensível e injusto do hoje, quando, entre nós, uns dizem que sim, outros que não, outros que talvez, outros que possa ter sido de outro modo ou nem tanto... Temos uma vantagem: mesmo com uma visão sempre parcial, quiçá imperfeita, anima-nos a experiência e essa não se transmite.

Começava por pedir que consultasses o POST 4801 (***) da autoria do Vitor Junqueira que trata dos que fugiram e explicita bem o que eu quis dizer no meu post.

Curiosamente, o número de desertores[1]é surpreendentemente baixo, quer se considerem os que o fizeram já nos TO, quer se considerem os que desertaram ainda nas unidades de Portugal (faço apelo à vossa memória para que se recordem quantos desertaram efectivamente nas unidades onde foram prestando serviço). Não estou a incluir nestes os que desertavam – especialmente praças – para trabalhar e ganhar algum dinheiro, para manterem as famílias no limiar da sobrevivência e que, depois se apresentavam. Tive casos destes. Os jovens – adolescentes, às vezes – que saíam do país antes ou depois de terem “dado o nome” (e foram bastantes, não sei quantos) não desertaram fugiram e, muitos deles talvez tenham saltado da frigideira para o fogo…

Por outro lado, quem se opõem a qualquer coisa pode optar por se afastar, simplesmente, ou hostilizar e lutar contra essa coisa de modo mais ou menos empenhado. Temos exemplos como do Ten. Veloso da FAP que desertou, em Moçambique, com avião, mecânico e tudo… É também uma forma de valentia. Não creio que a apresentação às autoridades e, com lealdade e valentia, informá-las de que se não faz isto ou aquilo tivesse sido uma solução. As “autoridades” eram desonestas e viciosas na sua acção e além de distorcerem o acto e de o apresentaram como algo de ignóbil, triturariam o idealista que se dispusesse a desafiá-las. Não tenho conhecimento de alguém que o tenha feito e se no no estrangeiro o fizeram alguma vez… aqui tal não era possível. Não nos esqueçamos dos tempos que então se viviam. Às vezes parece que as pessoas se esquecem. Os povos têm má memória, mas também não abusemos…

Quando analisamos o desfeche de uma guerra, temos de ser objectivos e aceitar o sucedido. Hipoteticamente podemos determinar causas. No nosso caso particular, estou convencido de que aquilo a que chamamos “guerra” foi um fenómeno sociológico que decorreu em Portugal e que terminou com a independência de várias fracções do país relativamente ao poder central. Talvez fosse boa ideia perguntarmo-nos porque é que havia um “poder central” e se este era parte da solução ou do problema? Qual a relação desse poder com as diferentes possessões? Porque é que mil escudos valiam mil e cem “pesos”/escudos e mil pesos valiam apenas 900 escudos? E outras questões que, na altura, começámos a levantar, uma vez em contacto coma realidade. Porque será que, ainda hoje, com o português como língua oficial, na Guiné, só 16% da população fala e escreve português (correctamente?)?.

Teremos que aceitar razões tácticas e todas as outras: estratégicas, económicas, políticas (seria a guerra possível na conjuntura mundial actual) sociológicas e até antropológicas. Estamos a analisar um fenómeno. Estamos no campo da História e não no campo da moral ou no divã do psiquiatra.

Tê-la-ão perdido os políticos, tê-la-ão perdido uns quantos militares… Claro camarada! Mas a “guerra” é um fenómeno total e os países funcionam com políticos que servem o poder económico e determinam a actuação dos dignitários do sistema (de todas as condições, tipos e níveis) que, à medida que se desce na hierarquia fazem, os trabalhos de cada vez mais maior pormenor, com tudo o que esta expressão possa significar de bom e de mau.

A História faz-se quando os factos começam a ficar frios e, por isso mais exactos e compreensíveis. Ainda agora andamos a re-estudar as Invasões Francesas, ocorridas há exactamente 200 anos, e temos chegado à conclusão que foram tudo menos um jogo Portugal – França a contar para a Taça dos Países com Guerra…

Claro que os opinadores não podem ser aceites, especialmente aqueles que, não tendo estado no terreno, vêm agora explicar como é que se devia ter feito. Como se os povos reagissem “na maior ordem” nas alturas de tensão e crise e as sociedades funcionassem de acordo com as “directivas superiores”… (Se assim fosse a vida dos sociólogos era uma monotonia…) Onde é que isso aconteceu? Não te esqueças que nos degladiávamos havia 13 anos e, por vezes de forma muito dura.

Ter estado e com grande entrega não é, por si só, uma vitória na guerra. É apenas a conduta própria dos homens jovens, por isso mais generosos. E a entrega é própria de quem tem certezas, não esqueças. Nós talvez as tivéssemos, pois nunca tínhamos tido tempo para as questionar, digo eu, claro…

Não creio que alguma vez tenhamos deixado de olhar para o inimigo como inimigo, nem vejo que a recíproca não seja verdadeira, nem havia razões para que assim não fosse. Suponhamos que o Inimigo não passava de um bando de terroristas criminosos. Ao serem capturados deveriam ter sido julgados e condenados, nem que fosse num julgamento imperfeito e tendencioso. E foram-no? Não. Eles eram soldados inimigos. Claro que há maneiras e “maneiras” de tratar o inimigo, mas isso não cabe aqui e agora… Não considero que tenhamos vencido porque hoje realmente não vemos aquele povo e aquela Nação como inimiga. Era imoral e irracional se assim fosse. Devemos vê-la como uma Nação e um povo que gostaríamos – e até gostamos – de ajudar a ser mais fraterna, mais solidária, mais coesa e sobretudo mais feliz. Mas isso não nos dá a vitória. Custa-nos, ver tantos mortos de um lado e de outro, e afinal não vemos um povo mais independente, um povo mais feliz. É o nosso comportamento de homens civilizados a funcionar e nada mais. Claro que a culpa não é só deles, mas também daqueles que não souberam fazer tudo o que estava ao seu alcance para que a Nação se construísse na paz e no progresso. Esta afirmação aplica-se a qualquer outro povo/país flagelado com lutas fratricidas e assolado pelas diferentes formas de miséria, mas convém não esquecer que quem ganha uma Bandeira e uma forma independente de estar no mundo é responsável a partir daí.

Já agora, camarada, lembro-te que as Bandeiras ganham-se contra alguém e é muito raro que essas vitórias não sejam acompanhadas de violência. A História prova-o. Daqui que eu não possa aceitar que nós ganhámos a guerra e que o PAIGC ganhou a guerra.

Só havia dois beligerantes: nós (Portugal) e a Guiné (representada pelo PAIGC). Não entendo como é que quem veio a perdeu total e completamente. Os poderes guineenses independentes só teriam que conquistar o respeito do seu povo – o que é o mais lógico – e os poderes portugueses não eram, e bem, chamados a intervir, para além da ajuda que lhes fosse pedida. Esta sim deveria, talvez, ter sido dada com o estatuto de Nação “mais favorecida”. Mas já passaram 35 anos…
Estou absolutamente de acordo quando afirmas que neste espaço, nos convívios, encontramos espaço para falar do que não falávamos e isso é a razão porque nos devemos manter unidos à volta deste mais que projecto, que nos une até nas divisões próprias do pensar de cada homem, mas que nos leva a fazer a história, feita das nossas histórias, que um dia poderá ser a verdadeira história da guerra da Guiné e não aquela que alguns que sobre ela escrevem querem que seja, por razões que apenas lhes assistem a eles, e com isto não me estou a referir a ninguém em particular, que fique bem expresso.

Também a mim me resta-me deixar-te o abraço de quem contigo viveu momentos que nunca esquecerá e a todos os que os viveram também por aquela Guiné dos nossos sonhos.

Um Abraço do
António Costa
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 12 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4672: Blogoterapia (117): Quem somos nós? (António J. Pereira da Costa)

(**) Vd. poste de 13 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4680: Resposta ao amigo Pereira da Costa (J. Mexia Alves)

(***) Vd. poste de 8 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4801: (Ex)citações (37): Propaganda (Vítor Junqueira)

2 comentários:

Anónimo disse...

É,quanto a mim, um escrito que marca este Blogue. Concordemos ou não. Concordo plenamente, completamente de acordo, é um modo de nada dizer ou, dizendo, nada acrescentar.Aqui não.Quanto a este escrito claro. Depois de o ler certamente somos levados a reler, a nos questionarmos sobre certas afirmações, certa análise e o modo de abordar certos temas aqui,antes, tão maltratados ou tratados emotivamente ou com tão pouca tolerância num espaço plural.
Marca porque,não digo que ponha ponto final, mas,com toda a subjectividade claro e assumo,deve levar certos Camaradas a reflectirem. Certamente depois de o fazerem constatarão que a discussão serena,divergente como convém,aceite em pluralidade é, não perca de tempo ou pior que isso, mas sim o caminho a contribuir para o relato que interessa. Relato em verdade, em divergência na busca do consenso e, no futuro a ser trabalhado pelos historiadores e não só e não só.Estivemos lá...
Quebrei um jejum ao comentário. Só que teve que ser assim e tanto ficou no "tinteiro"...
Um abraço do Torcato

Anónimo disse...

Bom artigo para análise!

Que fazer?

Reflectir!

Mas para não alongar uns pequenos pontos:

A conquista de uma Bandeira!

Os anos 60, a Africanidade e a Guerra Fria.

Não era única a do PAIGC! Veja-se o que aconteceu após o golpe "Nino".

Só havia dois beligerantes!

Portugal e a Guiné (representada pelo PAIGC)

Oh sr. Coronel, vamos lá por os pontos nos "iis":

Portugal incluia Cabo-Verdeanos, Guinienses e até Sirianos que existiram na mílicia do João Bacar Jaló oficial do Exército Português galardoado com a Torre Espada.

Voltamos ao principio, os que levaram o tiro na nuca e aos que as mãos foram amputadas, não tinham direito a essa Bandeira?

Guiné (representada pelo PAIGC) por pouco tempo como vimos. Mas... e qué de os outros?

É ficção? Guiné Conakri, Senegal, OUA, Suécia e os seus milhões e já me esquecia Cuba! Mas esses não estiveram lá.

Caro camarada é repetido mas volto ao assunto:
É imperioso ler "Ficheiros Secretos da Descolonização de Angola" de Leonor Figueiredo.

Depois da leitura só peço uma infíma comparação com os "Retornados e os Abandonados" dá que pensar lá isso dá.

Só uma questão quantos Portugueses há com dulpa nacionalidade e Guineenses com dupla nacionalidade incluindo a Portuguesa.

São os que são presenteados com duas bandeiras!?

Como sempre o velho abraço do tamanho do Cumbijã,

Mário Fitas