segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4806: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (11): Filho da p... de barrote queimado...... Ou as sobras do rancho


1. Continuação da publicação das memórias do Cherno Baldé, menino e moço em Fajonquito (1970/75), hoje quadro superior da administração pública da República da Guiné-Bissau (*):


Os amigos conhecem-se pelo volume da dádiva, ou....das sobras


Após a última partida [de futebol] da tarde e depois do toque da corneta das 19H30, voltava para o meu cantinho no quartel[,em Fajonquito,] a fim de recolher as sobras do jantar.

O meu barulhento patrão, o Dias, raramente trazia alguma coisa do refeitório, ele comia tudo e nem sequer se lembrava de pedir uma segunda dose, ocupado em pôr pitadas nos mexericos e conversas alheias, brigando as vezes quando tomava alguns copos de tinto a mais. Mas, mesmo assim, era ele que ordenava aos outros para me trazerem a comida, assegurava-me prontamente, atirando o seu prato no chão ainda por lavar.

Felizmente o Teixeira, um fino e aprumado lisboeta, mecânico-auto, vinha sempre atrás para salvar a situação. Ele trazia o prato cheio de comida que solicitava especialmente para mim no refeitório. De todos, era o mais calmo e ponderado, parecia também ser mais instruído. A destoar, todavia, era um pouquinho de nada loiro e muito solitário, passando a maior parte do tempo ocupado em leituras de jornais e revistas com figuras de mulheres semi-nuas, claro, quando o Dias estava a dormir ou se ausentava do quarto.

Ele não nos podia salvar de todos os perigos naquela concentração de jovens soldados endiabrados e mal humorados mas, à sua frente, nunca ninguém se atrevia a dar-nos um pontapé, ele intervinha de imediato, claro, quando o podia fazer. Era ele que se encarregava de recolher o meu salário ao fim do mês, 2 escudos e cinquenta centavos cada um (?), dinheiro que entregava à minha mãe quando não deixava perder no caminho. Não precisava daquele dinheiro para nada, pois, para mim bastava haverem as batatas, os frangos e o bacalhau que, de resto, pelo tamanho e qualidades, nunca mais voltei a encontrar em sítio nenhum.

Havia também o Silva, muito mais novo que os outros, moreno, óptimo futebolista e bom comilão, no dia em que se preparava um guisado de carne ou cozido à portuguesa, ele não trazia nada e encarregava-se, também, de lavar o seu prato.

O quarto homem, o Magalhães, era um empata-fodas de merda, sorriso amarelo e riso solto, sem amigos, sem princípios morais, trazia ou não trazia mas mandava-me lavar o seu prato na mesma e quando demorava a fazê-lo levava ainda um pontapé que fazia cair os óculos ao meu bom e gentil alfacinhas (Teixeira) em cima da sua cama.
- Filha-da-puta-barrote-queimado, ainda a resmungar!...

Ele estava bêbado a maior parte do tempo e não era a mim que ele se dirigia, seguramente. Não, ele dirigia-se a algo, invisível, que estava para lá de mim. De algo que o tinha obrigado a estar ali naquele cu-de-galinha-de-merda, como gostava de repetir, onde certamente não devia estar àquela hora do dia, do mês, do ano...e sei que mais.

Era uma revolta interior contra si mesmo e contra a sua impotência de mudar as coisas na sua maldita vida de soldado raso debaixo daquele calor tropical. Apesar dos momentos de mau humor frequentes, era bom profissional, conduzia um Unimog sempre limpo e impecável e nunca faltava às missões da coluna para Bafatá que tinham lugar uma vez por semana. Ao seu lado ia o Alferes Maia, chefe da missão.

Cherno Baldé

__________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 8 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4802: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (10): Futebol: ser do Benfica ou do Sporting, eis a questão

4 comentários:

Anónimo disse...

Cherno, os teus pontos de vista surpreendem sempre pela originalidade e pela optima escrita.

Antº Rosinha

Hélder Valério disse...

Caro Cherno
A tua capacidade de observação permitiu-te captar as características tipificadores de muita espécie de pessoas, e tu consegues dar público conhecimento do resultado dessa aprendizagem.
Sinceramente acho que ganhaste bastante com essa tua atitude.
Hélder S.

Anónimo disse...

Texto lindo, Cherno: 4 rabiscos/4 personagens, mas vê-se lá atrás força para as desenhares com os pormenores, os tiques, as idiosincracias de cada uma. Só precisas de vontade para fazer essa pintura.
Alberto Branquinho

MANUEL MAIA disse...

CARO CHERNO,
PALAVRAS PARA QUÊ?

ÉS UM ARTISTA PORTUGUÊS,EMBORA GUINÉU.
COM QUE FACILIDADE TRAÇAS O PERFIL DOS QUE TE RODEARAM,DAQUELES COM QUEM CONVIVESTE.

MAIS UMA VEZ, PARABÉNS.

UMA ABRAÇO
MANUEL MAIA