sábado, 16 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4361: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (14): Um mês complicado (3) O osso

1. Mensagem de Luís Faria, ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72, com data de 14 de Maio de 2009:

Caro Vinhal

Com um abraço extensivo ao Luís, Briote e pira M. Ribeiro, envio-te um novo bilhete de Viagem… que ficou no estaleiro da vontade à espera de transporte no escaler da disponibilidade para transbordo no grande Paquete das Recordações que nos leva num cruzeiro ao Passado, com a vossa ajuda como
Timoneiros.

Um abraço também aos Passageiros das Recordações
Luís Faria


Bula – Um mês complicado (3)
O "osso"


Conforme já tinha referido, o mês de Fevereiro de 1971 foi complicado. Para além do trabalho do 2.º GCOMB, de ter assumido durante uns dias o comando do 1.º GCOMB por o Alf Mil Op Esp Quintas ter saído da Companhia e o novo Alf Mil Freitas Pereira ainda não se ter apresentado, também me calhou, a par com operações, serviço rotineiro de emboscadas e patrulhamentos, participar na montagem de armadilhas e minas ao longo da estrada Bula –S. Vicente, aumentando o campo instalado. Só serviço ao quartel é que o meu grupo, ao que recordo não fez. Andávamos um bocado estourados e perguntávamo-nos porque éramos quase sempre os mesmos a chuchar os ossos em vez de também comer carne!!

Assim, a 26 do mês fomos de novo chuchar ossos à zona de P. Matar, só que desta vez, a chucha foi-nos mais madrasta e o osso comeu-nos carne e bebeu-nos sangue !

Talvez devido a informação que desconheço, tomaram parte os 1.º e 2.º GCOMB da Força e um Grupo de Milícias, dando a perceber que o osso podia ser duro para chuchar. O 3.º GCOMB estava na emboscada rotineira à estrada de S. Vicente, na que chamávamos curva do café (não faço ideia da origem do apelido) lá pelo Km 10, sob o comando do Alf Gomes (indiano) e dos Furs Almeida e Ferreira.

O amanhecer não tardaria muito quando deixámos a estrada e entrámos no desmatado, avançando em longa bicha de Pirilau para a mata e continuando numa progressão atenta, ziguezagueante e tanto quanto possível silenciosa, atendendo ao número de elementos, com o objectivo de detectar e interceptar um grupo IN presumivelmente numeroso, que por lá se movimentaria.

Não tardou muito que isso viesse a acontecer.

Atravessamento do desmatado da estrada em bicha de pirilau

Foto: © Luís Faria (2009). Direitos reservados


Ao que recordo, ainda cedo da manhã e a relativa pouca distância em linha recta da estrada, rebenta o fogachal danado. O matraquear das Kalash, as chicotadas, as explosões dos RPG e morteiro, sucedem-se. A zona de morte parece extensa e apanha-me(nos) em sítio arborizado alto e de pouca folhagem. A potencialidade dos RPG acentua-se e mete medo, tal a quantidade de explosões, denotando que havia de certeza mais do que duas dessas armas - para mim temíveis – o que devia significar que o grupo IN seria bastante numeroso.

Respondemos com tudo o que tínhamos e é feito pedido de apoio aéreo. O comandante saíra a dar uma volta na DO que estava estacionada em Bula, deixando-nos sem PC durante uma boa meia hora e consequentemente sem qualquer informação útil à situação. O combate parecia não querer abrandar e muito menos terminar!

A meu lado está o Cancelo com o seu morteiro e por me aperceber que os turras estão a curta distancia, peço-lhe o morteiro e faço um disparo de ângulo elevado, que, não posso esquecer-me (nos), podia ter sido fatal, já que ao sair, a granada embate lateralmente na ponta de uns galhos secos… mas consegue seguir viagem sem nos cair em cima, graças a Deus.

Os tiros e rebentamentos continuam, temos feridos, os Enfermeiros acorrem, a DO não aparece nem outro apoio aéreo.

Diz-me mais tarde o Fur Almeida que era tal e tão próximo o foguetório, que quis vir em nosso auxílio com o 3.º GCOMB, mas não teve autorização. Posteriormente pensei se o objectivo IN não teria sido o 3.º GCOMB ?!!

Lá nos aguentámos. À minha beira e do Cancelo, cai ferido com gravidade um dos meus Homens que me pede para dizer aos Pais… ao que respondi, (apostando uma grade de cerveja) não ser preciso porque se iria safar! O 1.º Cabo Lopes, um pouco mais afastado, fica ferido e acaba por morrer, infelizmente. Há mais quatro feridos para além dos da Milícia, um destes com um estilhaços na cabeça.

O Alf Barros (guineense), no comando do meu 2.º GCOMB, perde momentaneamente o controlo, atira com a G3 para o chão e corre em direcção aos turras, chamando-lhes algo como f.d.p. e cabrões, sendo preciso correr para o ir buscar e acalmar. Sorte os turras já estarem em debandada! Entretanto o apoio chega, a contenda acaba.

Os Enfermeiros não têm mãos a medir. É feita a segurança para o héli aterrar enquanto o canhão e a DO volteiam sobre a zona.

A minha atenção recai nos feridos e nas evacuações a serem feitas. Uma destas tem uma história (com h) extraordinária que talvez venha a referir um dia mais tarde, não sei se com ou sem nomes. Se bem me recordo, o héli foi por duas vezes buscar feridos, transportando os menos graves para Bula, (a três ou quatro minutos) e os restantes para Bissau.

Não sei se para defesa da nossa estabilidade emocional (talvez o Luís Graça possa dar uma achega), no meio do caos aconteciam por vezes situações que, sem razão aparente, nos captavam a atenção, talvez por parecerem surreais no contexto e no momento, mas que de certo modo nos aliviavam e distraíam, acabando por ficar armazenadas no subconsciente, aflorando por via de um qualquer estímulo.

Recordo o milícia com estilhaços na cabeça a ser tratado pelo seu Enfermeiro que, para o desinfectar (?) lhe esfregava a cabeça com tal sem parcimónia que me fez intervir chamando-lhe a atenção para o facto, ao que me respondeu algo do género, de não doer!!

No meio de todo este cenário sombrio não esqueço o quadro de Esperança pintado pelo João, natural de Braga (dizia ser meu vizinho, por eu morar no Porto!!) que, subindo para um bagabaga, abre os braços em toda a extensão e com a G3 segura na mão, dirige-se em voz bem alta à sua namorada distante dizendo “… (não recordo o nome) Amo-te do fundo do curaçom “ !!! . (A imagem parecia a do Apocalipse now na cena de despedida quase no final).

Lembro a Enfermeira Pára (gostava de saber o nome), que mais me pareceu uma Deusa do Olimpo a descer do héli da Esperança, morena, com calças camufladas e T-shirt branca, começar a fazer a triagem de embarque aos feridos que lhe eram levados, já que dado o número, tinha de haver prioridades no transporte.

Inspeccionada a zona de emboscada que nos indicou termos de certeza comido carne IN e bebido do seu sangue (informações posteriores confirmaram 4 mortos e alguns feridos) e feitas as evacuações, regressámos a Bula, cansados mas não desmoralizados e preparados para a certeza de em breve nos darem mais uns ossos para chuchar!

Para a Tertúlia, um abraço
Luís Faria
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4218: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (13): Um mês complicado (2) Emboscada bem montada

3 comentários:

António Matos disse...

Amigo Luís, muito boa esta tua retratação desse combate !
"Platoon", "Nascido para matar", "Vietnam" ou o incomparável Apocalypse Now" não levam a melhor na teatralização da cena.
Parabéns por isso.
Um grande abraço,
António Matos

Anónimo disse...

Aqui anda um dos bandos na sua reserva de caça.

Tudo isto dentro do arame farpado????

Um abraço.
BSardinha

Unknown disse...

Boa noite
Li com interesse a sua historia, e sei de onde vem a origem do nome "curva do cafe".

Vou tentar convencer um dos que a baptizaram (meu pai) a juntar-se á vossa tertulia e contar a história.